Novo fato gerador do século 21 na ‘Matrix’ do Comitê Gestor do IBS/CBS

Reforma tributária: novo fato gerador automatizado?

Exsurge com a reforma tributária (EC 132) novo fato gerador ex vi do art. 4º da LC 214/2025? Como, onde e quando ocorre a constituição definitiva do “crédito tributário do fisco”? Quando este crédito torna-se exigível?

E, em relação ao “crédito tributário do contribuinte”, advindo da não cumulatividade plena ex vi do art. 40 da LC 214/2025, em face do direito ao crédito encontrar-se vinculado ao pagamento e da aplicação da nova tecnologia do “split payment” ex vi do art. 31 da LC 214/2025, como, onde e quando este crédito torna-se disponível ocorre a constituição definitiva do “crédito tributário do contribuinte”?

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

Ainda sobrevivem as categorias de lançamento de ofício, por homologação e por declaração, previstas no Código Tributário Nacional, nos anos 1960 do século passado? Como se relaciona a Lei 5.172/1966 (CTN) e a LC 214/2025, pelo critério cronológico (lex posterior derogat priori) e pelo critério hierárquico (lex superior derogat legi inferiori)? Os novos conceitos da LC 214/2025 alteram o modelo proposto pelo CTN? Onde ocorre o fenômeno da incidência tributária: na realidade, no processo cognoscitivo do intérprete CBS/IBS ou no ambiente informatizado do ecossistema do Comitê Gestor?

As respostas a estas perguntas irão governar a aplicação prática da LC 214/2025, no início de 2026, primeiro ano de teste da CBS/IBS, e também irão orientar o momento da exigibilidade dos respectivos créditos (do fisco e do contribuinte), determinando o funcionamento efetivo da não cumulatividade, bem como para definição, mediante aplicação de simples regra de três, da alíquota referencial que será aplicada para a instalação da CBS, em 2027, sem aumento da carga tributária (mantendo o mesmo nível de arrecadação do PIS/Cofins).

A efetiva previsão da realização da arrecadação do Sistema CBS/IBS (cerca de R$ 1 trilhão e 500 milhões, valor da arrecadação do Sistema ISS, ICMS, PIS/Cofins e IPI) depende da resolução concreta de tais indagações, ou seja, é de interesse imediato de 20 milhões de empresas, 5.570 municípios, 27 estados, da União e de 210 milhões de brasileiros que serão os efetivos “contribuintes de fato” do Sistema CBS/IBS, incidente sobre o consumo.

Não é possível entender o novo fato gerador CBS/IBS sem assimilar toda tecnologia que separa a edição do CTN (Lei 5.172/1966) e a LC 214/2025: uma vez que a grande marca do século 20 foi a tecnologia de informação que ganhou escala mundial, encurtando o espaço e acelerando o tempo.[1]

As novas plataformas de informação criadas com o advento da internet (protocolo TCP/IP, em 1969) permitiram uma virada na noção de objetividade para além do surgimento da comunicação oral, da invenção da escrita e da “Galáxia de Gutenberg” (invenção da imprensa): (i) a combinação do hiperlink, (ii) a magnífica expansão da capacidade de armazenamento das memórias em nuvem e (iii) as modernas ferramentas de videoconferência (Zoom, Skype, Teams e Google Meet, por exemplo).[2]

O direito é Matrix. Na primeira e melhor versão do filme (1999), Neo (Keanu Reeves) segue o mestre Morpheus (deus dos sonhos) que lhe ensina as artes marciais e habilidades para lutar contra os guardiões de Matrix, no espaço virtual em que tempo, espaço e gravidade são apenas representações do real. Matrix atualiza a alegoria da caverna, em que Platão[3] mostra que as percepções sensoriais são formas imperfeitas do conhecimento, em relação à verdade plena da “realidade”.

A realidade jurídica instaurada pelo Sistema do Comitê Gestor

O Sistema do Comitê Gestor é a Matrix do Sistema CBS/IBS. Surge da formidável combinação entre: (i) as tecnologias inovadoras desenvolvidas pelos auditores fiscais brasileiros (NFe, SPEED e o advento das declarações “pré-preenchidas”), (ii) o alvorecer da Sociedade da Informação[4], (iii) e da noção de “governança em rede”[5] e (iv) do conceito de “regulação responsiva” (responsive regulation).[6]

Segundo Castells, as transformações sociais recentes conformaram novo cenário: a tecnologia da informação e a internet possibilitaram a ampliação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária, e também a ação que leva a uma mudança de percepção e valores sobre o poder. Interessa-nos especialmente atentar para o fato de que Castells insiste que, por meio de novos sistemas de mobilização, ligas da sociedade civil mais orgânicas e flexíveis podem se infiltrar e modificar a rigidez da organização do Estado[7].

John Braithwaite trouxe as teses de Castells para o campo do direito tributário. Além disso, criou poderosa teoria para lidar com problemas concretos. Importante destacar que as teses de Braithwaite orientaram as reformas realizadas na Administração Fiscal australiana na década de 2000, as quais se tornaram referência mundial, seguidas por Reino Unido e Nova Zelândia, que inspiraram fortemente o modelo de IVA proposto pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) na redação final da PEC 45/2019.[8]

O modelo adotado pela PEC 45 foi profundamente inspirado nas ideias de Braithwaite e sua Teoria da Democracia conectada às noções de “governança em rede”[9] e “regulação responsiva” (responsive regulation)[10]. Tais ideais inspiraram novas respostas republicanas para os dilemas do atual sistema tributário brasileiro.

Em oposição às concepções de democracia em que os “vigilantes dos vigilantes”, em última análise, são sempre parte do Estado, as ideias de Braithwaite sobre governança em rede abrem a possibilidade de discutir formas de responsabilização deliberativa e circular em que atuam atores estatais e não estatais. A ideia central foi permitir que todos sejam capazes de responsabilizar a todos e cada organização possa ser responsabilizada por indivíduos que dela participam.

Responsividade (responsiveness) significa sensibilidade à integridade de práticas e autonomia de grupos. Trata-se de pensar como o direito pode responder (responder não significa submeter-se) a modos de regulação os quais emergem nas relações sociais. Importa lembrar o trilema regulatório de Teubner: (i) normas jurídicas que ofendem uma cultura de negócios correm o risco de se tornarem irrelevantes; (ii) normas jurídicas que destroem regras que emergem naturalmente no mundo dos negócios podem suprimir as virtudes destas regras; (iii) normas jurídicas que deixam as regras dos negócios tomarem conta de seu espaço podem destruir suas próprias virtudes[11].

Trata-se, portanto, de romper a lógica e a hipercomplexidade do Sistema ISS, ICMS, PIS/Cofins e IPI, hidra com cerca de 6.000 cabeças (e bocas) que funcionam como focos ejetores de normas[12] gerais e abstratas que se dirigem não ao contribuinte-cidadão (agente último para o exercício da legalidade), mas sim a nós, técnicos e profissionais do direito tributário, pois exclui a possibilidade do exercício democrático de deliberação do cidadão-eleitor, uma vez que os indivíduos não são motivados pela lei tributária porque não são capazes de compreendê-las nem as aplicar sem a necessidade de uma tradução especializada.[13]

Essa ruptura de comunicação entre o fisco e os contribuintes não é um problema menor, mas sim uma grave ameaça à legitimidade do Estado. Um Estado que renuncia deliberadamente à comunicação com seus contribuintes não os trata com a devida consideração e respeito, sujeitando-os a uma situação de incapacidade. Um Estado que gera tal nível de alienação, distanciando-se comunicacionalmente de seus cidadãos, tornando-os dependentes de tutores que lhes orientem em seus planos de vida, apartando-se do ideal de Estado de Direito.[14]

A EC 132 procurou romper com a crise de legitimidade do atual Sistema ISS, ICMS, PIS/Cofins e IPI mediante a institucionalização da simplicidade e da transparência como princípios-estruturantes (art. 145 § 3º) do Sistema Tributário Nacional. As regras fundantes do novo Sistema CBS/IBS, institucionalizadas nos artigos 149-B, 156-A e 156-B da EC 132, retiram o combustível que alimenta a complexidade e a indústria do contencioso atual.

Ou seja, (i) fato gerador com base ampla, (ii) legislação única, (iii) alíquota padrão, (iv) alíquota por fora, (v) proibição de incentivos fiscais, (vi) direito a crédito amplo e (vii) documento fiscal único são, agora, regras-estruturantes constitucionais que condicionam a validade da LC 214/2025, do PLP 108 e que orientarão a institucionalização do Regulamento CBS/IBS.[15]

O Sistema do Comitê Gestor

O Sistema do Comitê Gestor funcionará como espelho digital da realidade tributária, constituindo a realidade jurídica do Sistema CBS/IBS. Ou seja, no modelo tecnológico CBS/IBS, o “mundo do direito” que reúne o conjunto das “normas jurídicas gerais e abstratas” válidas, bem como toda “incidência jurídica”[16] que constitui as “normas individuais e concretas” válidas do direito tributário, confunde-se com a relação de pertinencialidade destas normas internalizadas nos bancos de memória do Sistema do Comitê Gestor.

É importante destacar que o modelo CBS/IBS, orientado pelos princípios da não cumulatividade, da neutralidade e da cooperação, rompe com o tradicional paradigma do crime que opõe interesses entre fiscos e contribuintes. No Sistema CBS/IBS, o ser contribuinte exige enquadramento no “caput” do art. 21 da LC 214 e efetiva inscrição no Cadastro Nacional Único (CNU) de contribuintes CBS/IBS, previsto pelo art. 146 § 1º (EC 132) e instituído pelo art. 21 § 1º da LC 214.

O prof. Vasco Guimarães, que inspirou os primórdios do design legal da PEC 45, chamava este ecossistema de contribuintes previamente cadastrados de “Clube do IVA”: conjunto dos contribuintes formalizados (e privilegiados) que gozam da garantia e proteção da não cumulatividade plena, direito a crédito amplo, devolução preferencial e imediata de créditos acumulados seja no caso de investimento, no caso de exportação ou qualquer outro motivo de acumulação de créditos.

Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!

O modelo CBS/IBS representa, portanto, o fim da tributação setorial. O compromisso forte do Sistema CBS/IBS foi criar segurança jurídica e ambiente de negócios no Brasil. O novo sistema da não cumulatividade CBS/IBS garantirá que não haverá resíduo tributário sobre o setor produtivo. Quem paga CBS/IBS mediante a colaboração dos contribuintes-inscritos são os consumidores brasileiros, no destino: CBS/IBS não devem, nem podem incidir sobre o setor produtivo, incidem, economicamente, sobre o consumo de bens e serviços realizados pelas pessoas físicas.

Na “Matrix” do Sistema do Comitê Gestor e diante deste novel paradigma da conformidade e cooperação entre fisco e contribuinte, o “fato gerador” ex vi do art. 4º da LC 214 surge juridicamente quando é comunicado ao Sistema do Comitê Gestor. Sem a comunicação – que gera, ao mesmo tempo e, automaticamente, o “crédito tributário do fisco” e o respectivo “documento fiscal eletrônico” CBS/IBS (art. 60 da LC 214) – não há fato jurídico tributário, nem crédito exigível (trata-se tão apenas de “evento” fora do mundo jurídico, conforme defendeu Paulo de Barros Carvalho, em sua tese de professor titular da USP)[17].

O “crédito tributário do contribuinte”, advindo da não cumulatividade plena ex vi do art. 40 da LC 214/2025, pressupõe a existência do “crédito tributário do fisco” e extingue-se mediante a compensação ou pagamento realizados pelo fornecedor, dentro do Sistema do Comitê Gestor (SCG). O SCC funcionando como um “Big Brother” permite, ainda, que o pagamento ocorra, automaticamente, no ato da liquidação da operação de direito privado, mediante a eficiente aplicação da nova tecnologia do “split payment” ex vi do art. 31 da LC 214/2025.

O efetivo pagamento ou compensação, formalizados no ambiente do SCC, gera automaticamente o “crédito do contribuinte” que resta formalizado como direito líquido e certo, registrado no SCG na conta corrente individual do contribuinte-adquirente. O contribuinte CBS/IBS inscrito que  apurar saldo a recuperar na forma do art. 45 (LC 214), ao final do período de apuração poderá solicitar seu ressarcimento integral ou parcial perante o SCC.

O prazo para apreciação do pedido de ressarcimento será, por exemplo, de até 30 dias contados ex vi do § 3º do art. 39 da data da solicitação de que trata o caput deste artigo para pedidos de ressarcimento de contribuintes enquadrados em programa de conformidade nacional que serão implantados, conjuntamente, pelo Comitê Gestor do IBS e pela Receita Federal, conforme dispõe o art. 40 (ambos da LC 214). Se não houver manifestação do Comitê Gestor do IBS ou da Receita Federal nos prazos previstos de 30 dias, o crédito será ressarcido ao contribuinte nos 15 dias subsequentes (§ 4º, Art. 39 da LC 214).

Neste novo modelo, é viável que a implementação mediante “lançamento por declaração” e o prazo de decadência  será de cinco anos, a contar do momento em que foi informado o fato gerador para o Sistema do Comitê Gestor.

A competência para instituir a CBS/IBS advém originariamente da EC 132. O objetivo de se eleger, no desenho original da PEC 45, o veículo da “lei complementar” ex vi do art. 59 da Constituição de 1988, foi garantir a rigidez legal que o quórum qualificado que a lei complementar exige, de modo a estabilizar a “regra-matriz de incidência CBS/IBS”.

Além disso, o veículo da lei complementar, na instituição das regras CBS/IBS, colabora no sentido de atualizar os conceitos veiculado pela Lei 5.172/1966 que instituiu o CTN. Portanto, seja pelo critério cronológico (lex posterior derogat priori), seja pelo critério hierárquico (lex superior derogat legi inferior), os novos conceitos legais da LC 214/2025 alteram e atualizam os dispositivos da Lei 5.172/1966.


[1] Cf. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. V. 1. São Paulo: Paz e Terra. 2000.

[2] Cf. Lilia Schwarcz, artigo no UOL “100 dias que mudaram o mundo”  https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/coronavirus-100-dias-que-mudaram-o-mundo/#cover

[3] Livro VII da República p. 317-62.

[4] Cf. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. V. 1. São Paulo: Paz e Terra. 2000.

[5] BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies” in World Development V. 34, n. 5. Elsevier. 2006. pp. 884-898.

[6] Cf BRAITHWAITE, John & AYRES, Ian. Responsive Regulation: Trascending the Deregulation Debate. Oxford University Press, 1995.

[7] Cf. Eurico Marcos Diniz de Santi, Transparência Fiscal & Desenvolvimento (homenagem ao Professor Isaias Coelho), Fiscosoft & Thomson Reuters, 2013.

[8] Cf. Imposto sobre Bens e Serviços, Centro de Cidadania Fiscal: Estatuto, PEC45, PEC BRASIL SOLIDÁRIO, PEC110, Notas Técnicas e Visão 2023, Editora Max Limonad, 2023, pp. 31-54.

[9] BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies” in World Development V. 34, n. 5. Elsevier. 2006. pp. 884-898.

[10] Cf BRAITHWAITE, John & AYRES, Ian. Responsive Regulation: Trascending the Deregulation Debate. Oxford University Press, 1995.

[11] BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies” in World Development V. 34, n. 5. Elsevier. 2006. pp. 884-898.

[12] Que são fontes do direito tal como define Paulo de Barros Carvalho, no Capítulo 3 do Curso de Direito Tributário.

[13] Cf. artigo “São Válidas as Normas Tributárias Imprecisas?”, Pablo E. Navarro e Eurico Marcos Diniz de Santi, Revista Dialética n. 148, p. 73-80.

[14] Idem, ibidem, p. 79.

[15] Cf. artigo “A reforma tributária do Séc. XXI (EC132), corte epistemológico para uma nova Dogmática: novo objeto, novos fundamentos e novos princípios” https://reformatributaria.com/a-reforma-tributaria-do-sec-xxi-ec132-corte-epistemologico-para-uma-nova-dogmatica-novo-objeto-novos-fundamentos-e-novos-principios/

[16] Cf. Paulo de Barros Carvalho, Fundamentos Jurídicos da Incidência, Saraiva, 1996.

[17] Fundamentos Jurídicos da Incidência.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.