Cláusula de eleição de foro: legislação e jurisprudência nos 10 anos do CPC

Sob a ótica material e processual, a cláusula de eleição de foro representa a autonomia privada para a alteração ou influência da dinâmica processual antes da existência do litígio, proporcionando maior previsibilidade ao processo judicial.

Consolidada há décadas, essa prática não teve mudanças conceituais significativas entre o Código de Processo Civil (CPC) de 1973 e o de 2015, sendo as principais regras sobre o assunto: (1) a cláusula deve constar em contrato escrito e referir-se a um negócio jurídico específico; (2) pode ser declarada ineficaz se for considerada abusiva antes da citação, remetendo os autos ao foro de domicílio do réu; (3) o réu deve alegar a abusividade na contestação, sob pena de preclusão; e (4) a previsão de nulidade dessa cláusula em contratos de adesão, prevista no CPC/73, foi extinta.

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Com o CPC 15, a alteração mais debatida sobre o assunto foi a inclusão do art. 63, § 3º, pois, de um lado, o sistema privilegia o contraditório processual, de modo que as partes deveriam poder se manifestar antes da declaração de ineficácia da cláusula – inclusive porque poderiam ratificá-la. De outro, a dispensa de intimação pode afetar a autonomia privada. Apesar disso, as alterações promovidas foram bem recebidas, embora tenham surgido controvérsias e debates sobre as cláusulas de eleição de foro.

Entretanto, a Lei 14.879/2024, que altera os §§ 1º e 5º do art. 63 do CPC/15, trouxe uma mudança de paradigma. Agora, o foro eleito pelas partes deverá guardar alguma “pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor” (§1º).

Além disso, constitui prática abusiva o ajuizamento de ação em juízo aleatório, definido como “aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda”, justificando-se o declínio de competência de ofício pelo juiz (§5º).

Com essa alteração, as discussões sobre o tema ganharam novas perspectivas, como a possibilidade de declaração de abusividade da cláusula de eleição de foro e a inserção dessa cláusula em contratos de adesão.

Da análise do CPC/15 e da jurisprudência, tem-se a possibilidade de declaração de abusividade da cláusula de eleição de foro quando causar desequilíbrio ou hipossuficiência entre as partes, e quando dificultar o acesso à justiça de uma das partes. Essa questão foi amplificada a partir da Lei 14.879, que passou a obrigar uma relação de pertinência entre o foro escolhido e os contratantes ou o local de cumprimento da obrigação – exceção feita à relação consumerista, quando a eleição do foro for favorável ao consumidor.

A Lei 14.879 foi justificada a partir de dois controversos pilares: (1) limitação do exercício da autonomia privada a partir do interesse público, pois a eleição de foro deveria ser usada com lealdade processual, sob pena de ser considerada abusiva; e (2) a aleatoriedade na escolha do foro sobrecarregaria tribunais sem pertinência com o contrato em detrimento de outras jurisdições, buscando-se combater o “forum shopping” (prática de eleição de foros aleatórios, que pode ocasionar desequilíbrio entre as partes).

Ambas são criticáveis. Isso porque a possibilidade de o juiz negar vigência à cláusula de eleição transformou competência relativa em absoluta, passível de revisão a qualquer tempo, afrontando a liberdade das partes e as premissas da cláusula. A Lei 14.879 também ofende os princípios da jurisdição e da indisponibilidade das competências, conferindo ao juiz a liberdade de concluir o que ele pode ou não julgar, distribuindo a demanda a outro juízo que lhe pareça mais competente[1].

Além disso, desconsidera características específicas dos diferentes tipos de contratos. Em contratos empresariais, ignora-se a presunção de igualdade de condições, a capacidade empresária das partes e os princípios da liberdade econômica, da livre iniciativa e da livre concorrência. Também são ignorados fatores extraprocessuais e extrajurídicos a partir dos quais as empresas estabelecem suas estratégias para minimizar custos e aumentar eficiência.

O tema ganha tons mais preocupantes quando se verifica que já há decisões[2] determinando a aplicação imediata dessa Lei, inclusive a contratos anteriores à sua vigência, em violação à segurança jurídica. Não se nega a existência de julgados que concluíram pela prevalência da autonomia privada em contratos celebrados anteriormente à Lei[3] e pela manutenção da competência de juízo eleito em ações ajuizadas antes da referida Lei[4]. No entanto, a questão está longe de ser pacificada, e a construção de um entendimento comum sobre o tema será essencial para dirimir as controvérsias já existentes sobre a Lei 14.879.

A seu turno, a inserção de cláusulas de eleição de foro em contratos de adesão sempre foi muito debatida. Diante de documentos editados exclusivamente pelo proponente, é comum que a ausência de negociação ocasione certas restrições. A jurisprudência construiu o entendimento de que a cláusula seria inválida quando a parte aderente, durante a celebração, não tivesse conhecimento suficiente para entender seu sentido e consequências, e quando a sua inserção dificultasse o acesso à justiça e/ou colocasse as partes em desigualdade.

Agora, cria-se mais um elemento para a aferição dessa abusividade: a necessidade de que o foro eleito guarde relação com as partes ou com o local da obrigação. Essa regra – aplicável abstrata e indistintamente a todos os contratos – gerará impactos em escala aos contratos empresariais. Se, de um lado, compreende-se a necessidade de tutela da hipossuficiência e da vulnerabilidade em contratos de adesão no âmbito consumerista, essa não é a realidade dos contratos de adesão no âmbito do Direito Empresarial.

A consolidação da jurisprudência acerca das alterações promovidas pela Lei 14.879 será norteadora para o uso da cláusula de eleição de foro. É possível destacar desde já, algumas questões bastante controversas e que necessariamente terão de ser exploradas pelos tribunais:

  • Cláusulas de eleição de foro em contratos anteriores à Lei 14.879: por se tratar de ato jurídico perfeito, não se deveria cogitar sua alteração, em prestígio à segurança jurídica;
  • Presunção de paridade e simetria em contratos de adesão empresariais: o art. 421-A do Código Civil estabelece essa presunção nos contratos civis e empresariais, até que sejam demonstrados elementos aptos a afastá-la. Essa disposição deve ser analisada conjuntamente com a Lei 14.879, evitando a aplicação abstrata da nova norma e uma intervenção judicial injustificada;
  • A intervenção mínima em contratos entre privados: prevista no art. 421 do Código Civil, também deverá ser considerado conjuntamente com a Lei 14.879;
  • Litigância de má-fé: ao estabelecer que constitui prática abusiva o ajuizamento de ação em juízo aleatório, o art. 63, §5º, do CPC/15 determina apenas a declinação de competência de ofício pelo juiz, mas, considerando que a justificativa da Lei 14.789 é a manutenção da lealdade processual, poderá ser recorrentemente pleiteada a aplicação de penalidades por litigância de má-fé em razão disso.

A cláusula de eleição de foro é extremamente importante nas relações contratuais, pois não configura mera escolha indiferente às partes, mas sim uma medida para o “planejamento processual”, um verdadeiro fator de estratégia. A alteração promovida pela Lei 14.789 coloca em risco toda a construção já feita a esse respeito.

Caberá à jurisprudência o estabelecimento de critérios objetivos para evitar a aplicação abstrata e indistinta dessas novas disposições aos casos concretos, para que não se sepulte a autonomia das partes de elegerem o foro considerado mais adequado para a resolução das disputas decorrentes de seus contratos.


[1] O Instituto Brasileiro de Processo Civil, por exemplo, promoveu duras críticas ao projeto de lei que deu origem à Lei 14.879, referindo que, apesar da longínqua existência da cláusula de eleição de foro, não haveria notícia de problemas práticos relacionados a ela. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9540538&ts=1715721172826&disposition=inline. Acesso em 26/02/2025.

[2] TRF1, CC 1041264-43.2022.4.01.0000, 1ª T., 21/10/2024; TJDF, AgI 0738498-21.2024.8.07.0000, 5ª C.C., 31/01/2025; TJMS, AgI 1030735-79.2024.8.11.0000, 3ª C.D.Priv., 10/12/2024; TJSP, AgI 2321675-72.2024.8.26.0000, 38ª C.D.Priv., 22/10/2024.

[3] TJSP, AgI 2287933-56.2024.8.26.0000, 13ª C.D. Priv., 14/01/2025.

[4] STJ, CC 206933/SP, 2ª S., 10/02/2025.

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