Tendência à ‘plataformização’ não afasta relação de emprego, diz procurador-geral do Trabalho

Mesmo com a crescente “plataformização” das relações de trabalho, impulsionada pelo uso de aplicativos digitais em diversas áreas, o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, afirmou, em entrevista exclusiva ao JOTA, que esses novos modelos mantêm características essenciais do vínculo empregatício.

Segundo ele, apesar da modernização, a subordinação continua existindo — não da forma tradicional, mas de maneira algorítmica. Isso significa que existe um controle dos trabalhadores, que podem ser beneficiados por maior produtividade, enquanto aqueles que recusam demandas podem sofrer punições.

Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo

Para Lima, os modelos de negócios dessas plataformas são bastante similares. “O algoritmo é utilizado por empresas como Uber, 99 e iFood. Hoje temos empresas de transporte sem frota própria, empresas de alimentos sem restaurantes e plataformas de aluguel sem escritórios físicos. Essas mudanças são parte da modernidade”, afirma. No entanto, ele reforça que as empresas devem ser responsabilizadas e garantir direitos aos trabalhadores.

Nesta frente, diz que o MPT deve levar adiante as oito ações civis públicas movidas contra aplicativos, que pedem o reconhecimento de vínculo de emprego e indenizações por danos morais coletivos.

As decisões judiciais, até o momento, têm sido divergentes. O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), em São Paulo, condenou Rappi e iFood a registrar os trabalhadores e pagar indenizações, enquanto, no caso da 99, o vínculo foi negado. Já a ação contra a Uber foi extinta pelo TRT2, que considerou que o MPT não teria legitimidade para atuar no tema, revertendo uma condenação bilionária da empresa. Os processos agora seguem para o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e podem chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para o procurador, essas divergências são naturais e, quando houver decisões definitivas, elas serão cumpridas.

O procurador-geral do Trabalho também destacou a necessidade de melhor regulamentação do trabalho remoto e híbrido, especialmente no que diz respeito à responsabilidade das empresas pelo ambiente de trabalho em home office. Ele apontou que a fiscalização é um desafio, pois, diferentemente do ambiente corporativo, onde auditores podem verificar condições de ergonomia, a inspeção domiciliar é limitada e fragmentada.

Receba gratuitamente no seu email as principais notícias sobre o Direito do Trabalho

Lima também ressaltou a importância do combate ao trabalho escravo no Brasil —com mais de 65 mil trabalhadores resgatados nos últimos 30 anos — e a responsabilidade das companhias em verificar toda sua cadeia produtiva. O procurador-geral, por fim, também tratou da necessidade de se coibir o assédio eleitoral.

José de Lima Ramos Pereira, procurador-geral do Trabalho nos biênios 2021/2023 e 2023/2025, ingressou na carreira do Ministério Público do Trabalho em 1993. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com especializações em Direito Processual Civil. Em 2017, concluiu mestrado em Direito pela Universidade Católica de Brasília, e, em dezembro de 2024, doutorado em Direito pela Uninove.

Confira os principais pontos da entrevista

O Ministério Público do Trabalho (MPT) moveu oito ações civis públicas contra aplicativos, como Uber, 99 e Rappi, em 2021, pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício e indenização por danos morais coletivos. Qual é a principal argumentação nesses processos e como o senhor vê a atuação dessas empresas?

José de Lima Ramos Pereira: O mundo hoje está totalmente plataformizado e praticamente todas as atividades estão passíveis de serem feitas por plataformas digitais. A relação trabalhista exige principalmente uma subordinação jurídica, ou seja, você dá ordem a alguém que obedece. Isso transforma uma relação de trabalho em uma relação de emprego. No caso dessas plataformas, elas não podem ser consideradas plataformas de tecnologia, mas de transporte, porque o objetivo é transportar as pessoas de um lugar ao outro. Inclusive nas suas inscrições de registro da marca, no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) fica claro que são empresas de transporte. Neste caso, está muito claro que existe uma subordinação moderna, que é a subordinação algorítmica.

Como seria essa subordinação algorítmica?

Existem situações em que essas empresas conseguem direcionar escolhas do motorista, interferindo na produtividade e na facilidade ou dificuldade de localizar passageiros. Um exemplo, se o motorista rejeitar, muitas vezes, ele tem penalidades. Em função disso, passa a não ser escolhido nas melhores áreas. Fica como se fosse um game, um jogo. Se eu conseguir atender mais as regras, eu sou beneficiado com maior ponto. Eu tenho uma pontuação maior, eu tenho facilidades que os outros não vão ter. Agora, não é possível dizer que esse empregado é autônomo, e empreendedor. Muitos desses motoristas alugam carro. Nem carro tem. Aí tem que trabalhar mais, porque vai ter que pagar o aluguel do carro, vai ter que pagar gasolina, pneu. Eu não estou ainda entrando na mais complicada situação desses aplicativos. A segurança. Se você somar tudo isso, vai verificar que a atividade deles tem subordinação, tem um patrão, só que é realmente uma atividade moderna, diferente.

O senhor acredita que precisa haver uma melhor regulamentação dessa atividade?

Precisa regulamentar sim, independentemente do reconhecimento do vínculo, temos que tratar da seguridade social, da previdência social, da saúde do trabalhador ou trabalhadora nesses aplicativos. Isso é urgente. Quando eu falei da segurança, é porque é corriqueiro, ocorrer a morte de motorista de aplicativo. Como fica a família? Então, previdência social tem que ser analisada, segurança social, tudo tem que ser analisado. E vamos lá, quanto ganha no mundo uma empresa dessa? Aí vem me dizer que ela não pode ser responsável por quem opera? Mas vamos tratar a realidade nossa brasileira. Tirando esses motoristas não tem transporte. Evidentemente que existem situações onde motoristas usam a atividade como complemento de renda. Mas isso não afasta a responsabilidade da empresa, porque a legislação permite que se tenha mais de um vínculo. Na área de saúde, por exemplo, isso já acontece. Então, o fato do motorista trabalhar para vários aplicativos é uma moderna relação de trabalho, mas não afasta a responsabilização da empresa.

O TRT de São Paulo já começou a julgar recursos nessas ações civis públicas movidas pelo MPT contra esses aplicativos. Por enquanto, o TRT está bem dividido. O que o senhor acha dessas decisões divergentes? Só o TST ou o STF é que vão pacificar o tema?

Nós sabemos que a instrução é feita no primeiro grau, onde se analisam as provas. É importante o início da decisão judicial, podendo ser formada ou mantida pelo regional ou indo até o TST. E hoje, costumeiramente, até o Supremo. Não há nenhuma surpresa ou nenhuma insatisfação porque existem decisões divergentes. Ao contrário, existe um motivo para ter, pela liberdade que o juiz tem de julgar. E na hora que tiver uma decisão transitada em julgado, ela tem que ser cumprida. Não há aqui nenhuma ideia de desobediência às decisões. O que a gente quer é ajudar, colaborar nessa construção, mostrando a nossa posição. E, para isso, a gente precisa dar a nossa manifestação, as nossas justificativas, os nossos dados. Nós trabalhamos muito com dados.

E o que esses dados obtidos nas investigações do MPT apontam?

Os dados são alarmantes. O que nós precisamos é preservar a dignidade desses trabalhadores, seja no reconhecimento do vínculo ou, não reconhecendo o vínculo, que seja preservado, no mínimo, a seguridade e previdência desses trabalhadores, porque é até uma proteção para a sociedade, na hora que você começa a fazer esse tipo de responsabilização dessas empresas. E, evidentemente, deve chegar o Supremo Tribunal Federal, o TST, e são decisões que vão ter que ser obedecidas.

O modelo de negócio dessas empresas é muito parecido? Ou essas diferenças é que podem ter gerado alguma divergência nas decisões?

Não, os modelos de negócio são muito parecidos. Você vê que o algoritmo é usado, seja pela Uber, 99, iFood. Hoje você tem várias plataformas, tem empresa de transporte sem carro, empresa de alimentos sem restaurante, empresa de aluguéis de imóveis, sem ter nem escritório. Então, essas plataformas são uma modernidade. Agora, a Constituição Federal, muito sabidamente, prevê automação. Isso tudo é uma questão da automação. Isso é um efeito da modernização. Apenas o que a gente tem que se preocupar é como é feita essa transição para que as pessoas que estão trabalhando não percam também todos os seus trabalhos e atividades remuneradas. Por isso que o grau da informalidade aumentou muito. E precisamos proteger a todos, os trabalhos formais e informais.

E sobre o trabalho remoto, como tem sido a fiscalização do Ministério Público do Trabalho? O que o órgão tem observado com relação a isso? Jornada de trabalho, questões ergonômicas? O que tem despertado mais atenção?

O trabalho remoto teve uma forte demanda na pandemia, quando quase todas as pessoas tiveram que trabalhar de casa. O principal problema do trabalho remoto é a perda, por exemplo, da proximidade social. Você se afasta do seu vínculo de trabalho. Você dificulta, fragmenta a atuação dos sindicatos e o trabalhador começa também a ter problemas psicológicos, em função dessa atuação, só em casa. Acredito que o melhor hoje é fazer um híbrido. Mas as empresas, inclusive as privadas, estão voltando 100%. Então, tudo isso é uma questão de fases e adaptações. Tem atividades que funcionam bem no híbrido, tem atividades que funcionam bem no remoto. E existem outras que não funcionam de jeito nenhum nesse modelo, como, por exemplo, segurança patrimonial, medicina.

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!  

Ainda existem alguns pontos do trabalho remoto, do trabalho híbrido, que precisam ser melhor regulamentados?

Sim, um dos pontos, é a responsabilidade das empresas pelo ambiente de trabalho em home office. O MPT, a fiscalização do Ministério do Trabalho, age principalmente por meio de denúncias. Na empresa, um auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego, consegue fiscalizar, pode verificar a ergonomia. Já em casa é complicado, existe toda uma restrição para entrar nas casas. Então, tudo é muito mais difícil e fragmentado. Você tem 800 empregados numa empresa e todos trabalham em casa, não dá para fiscalizar 800 casas. Então, até nisso, você tem que se preocupar. Já no híbrido, você consegue identificar como essa empresa está tratando os funcionários.

Existem outros pontos que precisam ser melhorados na legislação com relação ao trabalho remoto?

Precisamos tratar do Direito à Desconexão. No remoto, as pessoas tendem a trabalhar muito, de repente até de madrugada. Em geral, no remoto, as pessoas trabalham 20% a mais. Então, você começa a se preocupar sobre o pagamento de horas extras. Entendemos que esses funcionários têm direito a hora extra, a conexão é fácil de ser provada. Todo mundo tem um login para entrar. Então, ali começa a contar o seu tempo de trabalho. Mas aí tem a desconexão importante para a pessoa respirar e poder trabalhar tranquilamente. Por outro lado, esse trabalho remoto não pode ser confundido com uma folga, que a pessoa não precisa produzir.

Ao mesmo tempo que existem todas essas novas modalidades de trabalho, aqui no Brasil ainda existem muitas denúncias de trabalho escravo ou trabalho análogo à escravidão. Como se caracteriza esse trabalho escravo moderno e como tem sido a atuação do MPT com relação a isso?

No Brasil já são mais de 65 mil trabalhadores resgatados nos últimos 30 anos. Primeiro ponto, existe trabalho escravo ou trabalho em condição análoga à escrava. Então nós temos várias formas contemporâneas de escravidão e nós temos também vários órgãos atuando. O Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal, Rodoviária Federal, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e a Justiça do Trabalho, que recebe todas as nossas ações. Essa série histórica de recordes de resgates não é boa. Demonstra que tem fiscalização, é claro, mas demonstra também que nós estamos atuando muito de forma repressiva. A gente tem que atuar também de forma promocional, convencendo os empregadores que aquilo que ele faz está prejudicando todo o segmento.

E o que tem sido feito neste sentido?

O Ministério do Trabalho e Emprego, o ministro Luiz Marinho tem feito esse esforço para fazer pactos nacionais com os setores de café, vinho, frutas e verduras. Está havendo uma movimentação, inclusive, para garantir o Bolsa Família para essas pessoas que vão ter registro na carteira, porque tem muita informalidade também. Tudo isso ajuda no combate. As próprias empresas estão também fazendo esse pacto das confederações patronais. Isso é importante. Toda a sociedade envolvida contra o trabalho escravo. E tem o tráfico de pessoas também, porque o trabalho escravo não vem sozinho, ele vem com outros crimes. Então, a gente tem que ter muito cuidado em detectar, combater, e o principal, fazer com que o trabalho escravo seja extinto do Brasil. Não é fácil porque o Brasil tem uma geografia imensa. Mas temos uma atuação muito forte, centenas de ações, milhares de Termos de Ajustamento de Condutas (TACs). E temos que buscar e responsabilizar toda a cadeia produtiva, porque quem se beneficia do cultivo do café, da uva, da laranja, da indústria têxtil? Lá na ponta, tem uma grande empresa, multinacional, que se beneficia desse trabalho.

O que essas grandes companhias precisam fazer para não serem vinculadas a essas denúncias? Elas precisam fiscalizar essas empresas que elas terceirizam serviços?

Você falou a palavra perfeita. Fiscalizar. Primeiro, escolher bem. E segundo, fiscalizar bem. Quando você não escolhe bem ou não fiscaliza bem, acontece o que acontece. Aí a pessoa diz assim, eu não sabia que na minha fazenda tinha trabalho escravo. Isso é o pior sentimento. O pior que o ódio, a raiva, é a indiferença. Porque a indiferença é a pessoa, não quero saber, eu quero ganhar meu dinheiro. Meu dinheiro está no bolso. E se a fazenda está sendo utilizada para alguma coisa, eu não me importo. Você tem que se importar, porque você tem a responsabilidade.

Qual a função dessa lista do trabalho escravo?

Função pedagógica. E é uma função de pressão mesmo, para que a empresa não entre numa lista. Ela é chamada de lista suja, justamente para pressionar para que ninguém entre nela. Porque realmente não é boa a imagem de uma pessoa que está nesta lista. E é uma forma de pressão legítima. O Supremo já definiu isso. Por outro lado, hoje em dia também já existem selos que podem de certa forma premiar e promover a empresa que faz tudo direito como “aqui não tem trabalho escravo” ou “aqui não tem trabalho infantil”. Também é uma forma de promoção importante. E isso, evidentemente, fica a cargo do Ministério do Trabalho e do Emprego.

Ano passado foi ano de eleições e nós vimos uma atuação grande do Ministério Público do Trabalho contra o assédio eleitoral. Queria que o senhor comentasse um pouco como foi, qual o balanço da fiscalização e dos casos que foram encontrados. E gostaria que comparasse um pouco com o que ocorreu na eleição presidencial.

Quer acompanhar os principais fatos ligados ao serviço público? Inscreva-se na newsletter Por Dentro da Máquina

Em 2022, o Brasil teve uma disputa presidencial muito forte, com a ação de empresários buscando interferir na eleição. Em 2024, percebemos que houve um aumento maior de assédio eleitoral no ambiente da Administração Pública, marcado muito pelo assédio nos serviços públicos. Foram 965 denúncias nas eleições de 2024. E dessas, 420 eram relacionadas à Administração Pública. Dessa vez, a região com maior índice foi Nordeste, diferentemente da eleição de 2022, que foi entre o Sudeste e Sul. O assédio eleitoral é uma realidade no Brasil. Ele permanece. Houve um número maior em 2022. O número diminuiu bastante em 2024. Mas ele continua, no meu ver, ainda alto. O que a gente precisa é manter essa atuação. E principalmente a questão da impunidade. Se você não atuar e não der uma punição, ele vai voltar.

Quais outras frentes de trabalho o Ministério Público pretende priorizar em 2025?

São tantos pontos, são tantos projetos, são tantas atuações, mas a principal ideia é manter a atuação forte do Ministério Público do Trabalho na preservação do próprio direito do trabalho. Fazer uma articulação entre os órgãos, sejam outros ministérios públicos, outros ramos, seja um judiciário. A gente teve uma aproximação muito forte com o MTE. O MPT não tinha uma aproximação na justiça eleitoral, passamos a ter com a eleição de 2022. E aumentar também essa articulação para que as nossas atuações promocionais aumentem, para atuar de forma mais preventiva e evitar novas ações judiciais. Para que o trabalhador e a trabalhadora, quando estiver exercendo a sua atividade, possa ter liberdade, tranquilidade de exercer e ganhar o seu sustento, da sua família. Então a gente existe para isso, para manter o trabalho digno e decente no nosso país. É necessária essa conscientização. E, claro, se não é resolvido, a gente busca a repressão. O que nós sabemos fazer bem e os colegas estão preparados para isso.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.