A sobrevivência de crianças e territórios indígenas nas mãos do STF

Três relatorias da Organização das Nações Unidas (ONU), publicaram, recentemente, um comunicado rechaçando os riscos de retrocessos decorrentes dos novos andamentos da Comissão Especial de Conciliação nas ações no Supremo Tribunal Federal que discutem a constitucionalidade da Lei 14.701/23, sobre o marco temporal e outras providências relacionadas aos ritos de demarcação e exploração econômica em terras indígenas no Brasil.

A proposta apresentada pelo ministro Gilmar Mendes é permissiva ao avanço da mineração, além de fragilizar a garantia de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas, o que é compromisso do Estado brasileiro perante organismos internacionais.

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O processo em curso de interpretação do artigo 231 da Constituição tem se revelado uma verdadeira travessia constitucional no que se refere aos direitos dos povos indígenas, comparável à Constituinte de 1988, quando uma ampla mobilização social levou à positivação de marcos históricos no reconhecimento aos territórios tradicionais indígenas (artigo 231) e à proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), um direito expressamente de titularidade das presentes e futuras gerações. 

Há tempos, a sociedade civil vem alertando sobre a relação entre as ameaças de retrocesso nessa pauta e a proteção das infâncias brasileiras. O artigo 227, ao determinar a prioridade absoluta da proteção integral de crianças e adolescentes, consagra a responsabilidade compartilhada pela prevenção a situações de ameaças à sua integridade física e bem-estar. No contexto histórico do Brasil, de desigualdades estruturais, os direitos fundamentais de crianças indígenas estão intrinsecamente relacionados à possibilidade de existência e demarcação efetiva de suas terras. 

Para que as crianças indígenas possam ter direito à figura criada pelos não-indígenas da dignidade humana é preciso garantir que suas terras sejam protegidas dos interesses econômicos, conforme leciona a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A dignidade humana dos povos indígenas só é plena quando as florestas permanecem vivas, pois nelas está a essência de sua existência, bem como a de toda a humanidade.

Nesse sentido, a proposta apresentada pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes corrobora com uma política de degradação das condições climáticas em nosso país, uma vez que abre as áreas mais preservadas da Amazônia para a exploração predatória de minérios. Ainda, a apresentação de proposta de lei por um gabinete de um ministro do STF é algo que não possui precedentes em nossa história constitucional.

Afinal, como será possível realizar o controle de constitucionalidade de uma proposta de lei oriunda da própria Suprema Corte? Nos parece um contrassenso ao Estado democrático de Direito, com riscos de fragilizar o papel contramajoritário do tribunal, o que é essencialmente a missão de Cortes Constitucionais. 

Com isso, um novo regime jurídico de exploração econômica em territórios indígenas poderá ser inaugurado, tendo como reflexo a desproteção dos territórios, associada ao desmatamento, ao garimpo ilegal e à negligência sanitária, causas principais para os altos índices de mortalidade infantil entre indígenas.

Trata-se de um quadro sistêmico de racismo ambiental, em que as condições climáticas e socioambientais mais desfavoráveis são impostas às populações racializadas, aquelas que menos contribuíram historicamente para as mudanças climáticas, mas que enfrentam seus efeitos mais severos.

É exemplo desse cenário a situação ainda grave de proliferação de doenças, desnutrição e óbitos por causas evitáveis entre crianças nas terras indígenas Yanomami e no Vale do Javari. Os casos foram levados ao conhecimento do Supremo, no âmbito da ADPF 709, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, ação que monitora processos de desintrusão e proteção à saúde em terras indígenas e que representa, na contramão da condução das ações do marco temporal, um reconhecimento histórico do STF aos direitos indígenas.  

A proteção das infâncias é intrínseca à própria proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. É o que reconheceu o Supremo no julgamento da chamada pauta verde, conjunto de ações ambientais que estabeleceu um novo paradigma em relação ao alcance das prerrogativas constitucionais para políticas ambientais e climáticas no Brasil.

O ministro Luiz Fux, em seu voto na ADPF 760, que versava sobre a dimensão intergeracional da proteção e preservação da Amazônia, destacou que o impacto dos danos ambientais tem efeito discriminatório sobre certos grupos de crianças, especialmente crianças indígenas, com deficiência e crianças que vivem em ambientes vulneráveis ao clima. 

O STF assinou, em 2024, o Pacto pela Transformação Ecológica dos três Poderes, o que inclui, segundo o documento, a ‘’consideração dos direitos das crianças e das gerações futuras – integração, em todas as etapas da formulação e implementação de políticas públicas e em quaisquer medidas dos três Poderes, dos direitos e interesses das crianças e das gerações futuras, a partir da incorporação da ciência e de avaliações de impacto que considerem o bem-estar das gerações presentes e futuras’’.

Esse conjunto de orientações aponta para o fortalecimento de critérios socioambientais em todas as decisões relacionadas a terras indígenas, com prioridade absoluta para a proteção de crianças. Significa dizer que a relação entre infâncias, meio ambiente e direitos indígenas é não só um fato social, mas também um quadro reconhecido pelo Direito e traduzido em disposições concretas, consubstanciadas em normas nacionais, internacionais e julgados – inclusive da Suprema Corte. 

Crianças e adolescentes não são apenas o futuro, mas, antes de mais nada, o presente, aqueles que têm o direito, hoje, a usufruir com saúde e equilíbrio ambiental da biodiversidade associada aos seus modos de vida e tradições culturais, fundamentais para a preservação de seu direito ao brincar. Isso inclui o respeito às terras indígenas e à natureza, na máxima proteção constitucional, conforme a lógica da maior medida possível, oriunda dos princípios ambientais da prevenção e precaução e do melhor interesse de crianças e adolescentes. 

Vale dizer que qualquer medida que flexibilize o usufruto exclusivo dos povos indígenas de suas terras é uma medida que favorece o modelo econômico predatório responsável justamente por segregar crianças indígenas, desde o período colonial até os dias de hoje. O que assistimos dentro da Câmara de Conciliação do Supremo pode gerar precedentes para configurar um dos maiores retrocessos nos direitos constitucionais indígenas da história constitucional brasileira. 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2024, condenou o Estado do Peru por omissões no controle de atividades metalúrgicas e de mineração no país, que causaram impactos socioambientais inestimáveis à população. A Corte IDH mobilizou o princípio da equidade intergeracional e a Convenção sobre os Direitos da Criança para reconhecer a obrigação dos Estados sob a Convenção Americana em evitar impactos discriminatórios de atividades poluidoras, como é, potencialmente, a mineração.

Já o Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Conanda), aprovou, no mesmo ano, a Resolução 253, que dispõe sobre a aplicação da consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, outro aspecto ameaçado pela proposta em trâmite no STF, a qual retira a autodeterminação dos povos indígenas dos seus efeitos vinculantes à autorização de empreendimentos.

A resolução reafirma que a consulta é um direito fundamental e uma garantia coletiva dos povos indígenas, atribuindo ao Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes uma série de responsabilidades. 

Se a proposta da Comissão Especial de Conciliação for adiante, não apenas o direito dos povos indígenas ao consentimento livre, prévio e informado será violado, mas também os direitos fundamentais das crianças indígenas. A possibilidade de consultas feitas com metodologias diferenciadas, lúdicas e culturalmente adequadas — essenciais para garantir a plena participação infantil respeitando sua identidade e modo de vida — será restringida, enfraquecendo ainda mais a proteção desses sujeitos de direitos.

Fragilizar os marcos legais que protegem as terras indígenas é mais do que um atentado contra os povos originários, significa comprometer a preservação do meio ambiente, a diversidade cultural e o próprio futuro da sociedade brasileira. Destruir as bases que sustentam a vida dos povos indígenas é destruir as bases que sustentam o Brasil.

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