A arte e a história: ‘Ainda estou aqui’ e a denúncia da PGR contra Bolsonaro

A premiação do filme Ainda estou aqui com o Oscar de Melhor Filme Internacional não poderia ter ocorrido em melhor momento. Ela aconteceu duas semanas após o encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, pela Procuradoria-Geral da República, da denúncia criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu grupo mais próximo, recolocando na pauta o atentado ao Estado democrático de Direito no dia 8 de janeiro de 2023.

Dirigido por Walter Salles Jr., o filme tem como contraponto a barbárie da ditadura militar entre 1964 e 1985. Foram duas décadas cinzentas em que militares torturaram e assassinaram pessoas que consideravam adversárias da chamada revolução ou então simpatizantes e protagonistas da esquerda. Uma dessas vítimas foi o deputado Rubens Paiva, que sucumbiu em dependências das Forças Armadas e dos órgãos de segurança e, depois, foi dado como “sumido”.

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Na época, baseando-se numa ética em que os fins – como o interesse nacional e o patriotismo – justificavam quaisquer meios, militares em sua maioria incultos passaram a combater o que qualificavam de subversão. Também propunham a manutenção da ordem a qualquer preço, censuravam a imprensa e suprimiam direitos fundamentais como condição para a conversão do país no que chamavam de “grande potência”.

Apesar desses fatos históricos, dias antes da solenidade de premiação do Oscar vários foram os políticos contemporâneos – dentre eles o novo presidente da Câmara dos Deputados – que criticaram os pedidos de condenação a penas de prisão propostos pela PGR ao ex-presidente Bolsonaro e seu entorno. A justificativa foi que o 8 de janeiro não teria sido um atentado contra as instituições democráticas, mas uma simples baderna protagonizada por irresponsáveis. 

Apesar da depredação às sedes dos Três Poderes e do envolvimento de militares da ativa e da reserva naquele triste acontecimento, a narrativa desses políticos simplesmente deixou em segundo plano a ignorância subjacente ao ódio ideológico e a prepotência dos militares vinculados ao bolsonarismo. Em outras palavras, os fatos históricos ocorridos naquele dia sombrio constituiriam apenas e tão somente algo excepcional na vida política brasileira.

Esses políticos, no entanto, se esquecem de que a ideia de permanência do bolsonarismo no poder já vinha sendo alimentada publicamente em alguns setores militares. Meses antes do pleito de 2022, por exemplo, um grupo de oficiais e intelectuais de extrema direita havia lançado um projeto de nação para o período de 2023 a 2035.

Publicado pelo Instituto General Villas Bôas, pelo Instituto Federalista e pela Sagres Políticas e Gestão Estratégica Aplicadas, o texto tratava, entre outros temas, da “evolução da coesão nacional, do civismo e do sentimento coletivo de Pátria”, tendo como fio condutor a ideia de que a democracia brasileira vinha sendo minada por usurpadores. 

O texto tem 96 páginas. Na página 46, por exemplo, o tal projeto de nação discute “o revigoramento do patriotismo e dos valores morais tradicionais em contraposição a valores sociais reinantes na sociedade brasileira, muitos deles contaminados por ideologias radicais”. Como esse revigoramento deveria ser implementado?

Nesse sentido, chamo atenção para a resposta a essa indagação:

  1. “criar o sentimento coletivo de corresponsabilidade pelo destino do País”;
  2. “neutralizar o poder das correntes de pensamento ideológico radical e utópico, que advogam antivalores culturais brasileiros”;
  3. “combater a revolução cultural promovida pelas correntes ideológicas radicais”; e
  4. “formular estratégias de divulgação e valorização da História e vultos históricos do Brasil sem viés ideológico, a fim de resgatar a identidade nacional”.

Na página seguinte, o documento critica a “revolução cultural” que viria “comprometendo a coesão nacional”. Também adverte para a “tendência à divisão da sociedade, pela crescente submissão dos interesses da coletividade nacional aos que atendem aos anseios de grupos minoritários”. 

Uma das grandes marcas do filme Ainda estou aqui é que ele vai muito além de entreabrir a tosquice e o desatino dessas ideias anunciadas sob o manto das boas intenções, do patriotismo e do interesse nacional. 

Igualmente, o filme de algum modo entreabre o quanto essas ideias estiveram presentes no atentado de 8 de janeiro, ao mesmo tempo em que entreabre a importância da denúncia criminal contra seus coordenadores feita há duas semanas pela PGR. 

Ainda que por coincidência, a premiação do filme deu a dimensão do quanto o encaminhamento dessa denúncia pelo STF e o rigor com que a corte terá de atuar  neste caso são importantes para a preservação do Estado de Direito no Brasil.     

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