O governo Hamlet: ser ou não ser coerente?

A desoneração da folha de pagamento tem sido, há mais de uma década, um instrumento fundamental para a manutenção da competitividade de setores intensivos em mão de obra no Brasil. Em sua essência, este mecanismo permite que empresas de 17 setores estratégicos da economia substituam a contribuição previdenciária de 20% incidente sobre a folha de salários por uma alíquota reduzida sobre a receita bruta.

Tal política, para além de seu aspecto arrecadatório, representa um importante incentivo à formalização e à geração de empregos em setores que empregam milhões de brasileiros.

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O mais recente capítulo dessa novela jurídico-tributária teve início com a aprovação da Lei 14.784/2023, que prorrogava a desoneração até 2027. Contudo, em abril de 2024, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, acolhendo argumentação da Advocacia-Geral da União (AGU) na ADI 7633, suspendeu trechos da referida lei especialmente sob a alegação de ausência de demonstração adequada do impacto orçamentário, requisito constitucional para renúncias fiscais.

Após intensas negociações entre Executivo e Legislativo, foi promulgada a Lei 14.973/2024, estabelecendo um modelo de reoneração gradual para os anos de 2025 a 2027, acompanhada de medidas compensatórias que visavam equilibrar as contas públicas. Esta nova lei, fruto de diálogo institucional e aparente consenso, parecia encerrar a controvérsia. Ledo engano.

A AGU agora parece empreender uma nova ofensiva jurídica, utilizando-se da mesma ADI 7.633 para, de maneira oblíqua, questionar a eficácia das medidas compensatórias previstas na nova legislação, a qual, ironicamente, o próprio governo ajudou a formular.

Essa orquestrada valsa jurídica, em que o governo avança, recua e gira em torno de suas próprias posições, revela um verdadeiro dilema hamletiano: ser ou não ser coerente com os próprios compromissos, eis a questão existencial que parece afligir a AGU em sua abordagem sobre a reoneração.

Tal postura merece uma análise mais detida, não apenas por seus aspectos processuais e constitucionais, mas também por suas implicações para a segurança jurídica e o equilíbrio institucional do país.

É preciso destacar a singularidade do processo que culminou na Lei 14.973/2024. Após a decisão liminar do ministro Zanin, instaurou-se um cenário de incerteza para os setores afetados, que viam iminente o risco de retorno abrupto à tributação integral sobre a folha de pagamento. Foi nesse contexto que governo e Congresso Nacional engajaram-se em negociações intensas, buscando uma solução que pudesse conciliar a necessidade de arrecadação do Erário com a preservação da competitividade empresarial.

A nova lei representa o produto desse esforço dialógico. Não foi uma imposição unilateral do Legislativo, tampouco uma concessão graciosa do Executivo. Tratou-se de uma construção coletiva, na qual o governo participou ativamente, manifestando suas preocupações fiscais e chegando a um denominador comum com os parlamentares.

O modelo de reoneração gradual emergiu justamente como esse ponto de equilíbrio: as empresas teriam tempo para se adaptar ao retorno paulatino da tributação sobre a folha, enquanto o governo veria gradualmente restaurada sua base de arrecadação.

As medidas compensatórias incluídas na lei foram apresentadas como instrumentos aptos a mitigar o impacto da desoneração nas contas públicas. É digno de nota que tais medidas não foram impostas ao governo à revelia; foram discutidas, aprimoradas e, ao final, chanceladas pelo próprio Executivo.

A Lei 14.973/2024 corporifica, portanto, não apenas um acordo legislativo, mas um verdadeiro pacto institucional, celebrado com a aquiescência dos Poderes constituídos e sob o escrutínio da opinião pública. Representou uma solução para um impasse que ameaçava tanto a saúde fiscal do Estado quanto a sustentabilidade econômica de setores intensivos em mão de obra.

Eis que, após celebrar o pacto legislativo e comprometer-se com sua implementação, o governo federal, por meio da AGU, parece agora empenhado em uma curiosa manobra jurídica: questionar a eficácia da nova lei que ele próprio ajudou a elaborar, e fazê-lo por meio de uma ADI originalmente ajuizada contra diploma legal diverso, já revogado. Seria cômico, não fosse trágico.

Afinal, que espécie de governo negocia, endossa e sanciona uma nova lei, que inclusive altera substancialmente o antigo modelo de desoneração (para uma situação muito menos vantajosa), para depois, sem cerimônia, insinuar que a negociação não serve? A postura revela uma incompreensível falta de sintonia interna. O absurdo da situação pode trazer novamente graves implicações para a credibilidade institucional e para a segurança jurídica.

Do ponto de vista estritamente processual, a pretensão da AGU esbarra em um obstáculo intransponível: o modelo de desoneração da Lei 14.784/2023, objeto original da ADI 7.633, já foi revogado pela Lei 14.973/2024. Estamos, portanto, diante de inequívoca perda de objeto da ação direta, uma vez que o ato normativo impugnado não mais integra o ordenamento jurídico. 

Aliás, é bom relembrar que, em situação praticamente idêntica, o Supremo Tribunal Federal julgou prejudicada a ADI 6.632 que questionava dispositivos que haviam prorrogado a desoneração da folha de pagamentos para o ano de 2021, estabelecendo precedente cristalino sobre a impossibilidade de prosseguimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade quando ocorre a perda superveniente de seu objeto.

Como bem destacado pelo relator, ministro Ricardo Lewandowski naquele julgado, “a jurisprudência desta Suprema Corte é firme no sentido de que o exaurimento da vigência da norma impugnada – ou a sua revogação –, após o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, acarreta a perda superveniente do seu objeto, independentemente da existência de efeitos residuais concretos dela decorrentes“. Em outras palavras, a tentativa atual da AGU de ressuscitar uma ADI dirigida contra lei já revogada colide frontalmente com a orientação consolidada da própria Corte Suprema.

Mas ainda que se admitisse, por hipótese, a possibilidade de “conversão” da ADI para abranger a nova lei, remanesceria o paradoxo de ver o próprio autor da ação questionando norma com a qual expressamente concordou. Tem-se, aqui, a figura do governo que busca invalidar ato jurídico que ele mesmo legitimou por sua conduta anterior, criando contradição manifesta entre suas próprias ações.

É como se o Executivo quisesse o bônus de demonstrar compromisso com o equilíbrio fiscal ao questionar a desoneração original, o bônus de aparecer como conciliador ao negociar a reoneração gradual, e agora, o bônus de alegar responsabilidade fiscal ao questionar a eficácia das medidas que ele próprio referendou. Uma verdadeira quadratura do círculo jurídico, que desafia não apenas a lógica processual, mas o próprio senso comum de coerência institucional.

Além disso, a tentativa governamental de questionar a Lei 14.973/2024 por via oblíqua transcende a mera discussão processual e adentra o delicado território da segurança jurídica, princípio basilar do Estado democrático de Direito. Não se trata apenas de uma controvérsia técnico-jurídica, mas de um ataque frontal à previsibilidade que deve nortear as relações entre Estado e sociedade.

Empresários dos 17 setores contemplados pela desoneração, após meses de incerteza e volatilidade normativa, finalmente haviam encontrado um horizonte de planejamento, mesmo considerando o cenário menos vantajoso da nova norma que implicou na reoneração, ainda que gradual, da folha de pagamento.

Orçamentos foram elaborados, projeções de custos ajustadas, planos de investimento recalibrados –  tudo com base na premissa de que o acordo legislativo, chancelado pelo próprio Executivo (e que, repita-se, trouxe um formato de desoneração menos vantajoso) seria respeitado. A súbita mudança de posicionamento do governo, ao sugerir a insuficiência das medidas compensatórias que ele mesmo avalizou, introduz um elemento de imprevisibilidade tóxico para o ambiente de negócios.

Que empresário investirá com segurança em um país onde os governantes fazem aparecer e desaparecer normas tributárias ao sabor de suas conveniências momentâneas? Como planejar contratações, expansões ou mesmo a manutenção de postos de trabalho quando o custo da folha de pagamento – um dos principais componentes da estrutura de custos empresariais – torna-se uma incógnita sujeita a reviravoltas processuais?

O impacto econômico desta instabilidade é quantificável e pernicioso. A reoneração abrupta, além de elevar drasticamente os custos trabalhistas, sinalizaria aos agentes econômicos que acordos firmados com o governo estão sujeitos a revisões unilaterais, ampliando o chamado Risco Brasil e encarecendo o crédito e o investimento.

Ironicamente, ao buscar arrecadação adicional por meio do questionamento às medidas compensatórias, o governo pode estar minando as próprias bases de sustentação da arrecadação futura. Afinal, uma economia paralisada pela insegurança jurídica é uma economia que gera menos empregos, menos consumo e, consequentemente, menos receitas tributárias. É o clássico caso de matar a galinha dos ovos de ouro em nome de um suposto ganho imediato.

Ainda, poderia se dizer que a postura do governo ao pretender questionar a Lei 14.973/2024 revela, em sua essência, uma inquietante desconsideração pelo princípio da separação dos Poderes, pedra angular do sistema democrático, afinal, quando o Executivo participa ativamente do processo legislativo, chancela seu resultado e, posteriormente, busca invalidá-lo através do Judiciário, podemos estar diante de um perigoso precedente de instrumentalização das instituições.

O Congresso Nacional, ao aprovar a reoneração gradual após intensas negociações com o próprio governo, exerceu legitimamente sua função constitucional, sendo que a deliberação parlamentar resultou de complexo processo dialético, em que diferentes interesses foram ponderados e compatibilizados. Questionar esse produto legislativo, poucos meses após sua aprovação e sem que fatos substancialmente novos tenham emergido, constitui verdadeiro desrespeito à autonomia do Poder Legislativo.

Igualmente preocupante é a tentativa de utilização do STF como instância de revisão de acordos políticos. Nosso sistema constitucional atribui à Corte Suprema o elevado papel de guardiã da Constituição, não o de árbitra de conveniências governamentais mutáveis. A provocação do STF em matéria já pacificada por acordo interinstitucional também pode transmitir a mensagem subliminar de que o Executivo estaria tentando usar o Judiciário a serviço de agendas contingentes, e não da estabilidade constitucional.

Evidencia-se, portanto, que a pretensão da AGU de questionar, por via transversa, a eficácia da Lei 14.973/2024 transcende a mera discussão jurídico-tributária e instala-se no cerne do funcionamento institucional brasileiro. O episódio pode cristalizar uma perigosa tendência de relativização de acordos formalmente celebrados e a tentativa de instrumentalização das instituições para fins imediatistas.

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A estabilidade de um Estado democrático de Direito repousa, fundamentalmente, sobre a previsibilidade de suas normas e a confiabilidade de seus procedimentos decisórios. Quando o próprio governo demonstra desapego aos acordos que firma e às leis que ajuda a aprovar, corrói-se a confiança cívica que sustenta o pacto social. O resultado é uma democracia fragilizada, em que os cidadãos e as empresas hesitam em planejar o futuro, prisioneiros de um presente perpetuamente incerto.

Em última análise, o que está em jogo não é apenas o regime tributário aplicável a 17 setores da economia, mas a própria credibilidade do Estado brasileiro como fiador de segurança jurídica e estabilidade normativa. É imperioso que o governo reconheça os limites de sua atuação revisional e honre os compromissos assumidos com o Legislativo e com a sociedade, evitando um ciclo de instabilidade que pode prejudicar o desenvolvimento nacional e a confiança nas instituições democráticas.

O Brasil precisa de um compromisso renovado com a seriedade e a estabilidade dos pactos firmados entre os Poderes constituídos de forma a construir mais estabilidade, segurança jurídica e respeito às suas instituições. A reoneração gradual, fruto de um acordo institucional, deve ser preservada. E a ADI 7.633, por ter perdido o seu objeto, deve ser extinta.

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