A pejotização está liberada?

No texto “O Carf e a pejotização”, publicou-se nesta coluna em setembro de 2024 que:

O Carf, ao seguir as diretrizes do STF, tem mostrado uma abordagem mais pragmática, reconhecendo a validade da pejotização desde que não haja a caracterização de “intuito de fraude”. No entanto, a questão não está totalmente pacificada e diversos casos concretos revelam grande complexidade. Nesse cenário, o critério da hipossuficiência pode servir como balizador importante para avaliar a legitimidade da pejotização, porém, adverte-se, que essa questão carece de mais debates aprofundados entre os conselheiros[1].

Convido-me a participar do debate proposto pelos ilustres conselheiros da 2ª Seção, pois também enfrento, no mesmo andar (literalmente), os desafios de se conciliar os deveres previdenciários com direitos trabalhistas e a liberdade de negociação.

É corrente a opinião dos juristas[2] de que as decisões do Carf e do TST não estão aderindo à posição assentada do STF sobre o tema da pejotização[3].

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O raciocínio é: a prática da contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas foi julgada como lícita pelo STF (Tema 725, de 04/12/2023), porém grande parte das decisões ainda reconhecem vínculo empregatício nestes casos – cobrando, consequentemente, as contribuições previdenciárias.

A ideia de que a “pejotização está liberada” me remete a um dos pais do pragmatismo: William James. Em seu escrito A vontade de crer, afirma que acreditar pode ser a melhor opção, desde que a crença possa levar a experiências e resultados positivos[4]. Mesmo que não haja prova cabal, um lastro definitivo para que se tenha uma certeza, é melhor crer com as evidências que se tem, desde que estejamos de olho nas consequências.

E é fácil entender o porquê de o fundador da psicologia moderna justificar a aposta da comunidade jurídica na crença da “liberação da pejotização”. Desde a Lei 11.196/2005, que trata da prestação do serviço intelectual e artístico por PJ, temos sido levados a acreditar que há um caminho irreversível a tratar a relação trabalhista não como uma substância – detectada pelas quatro características “habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação” – mas como uma forma livre de escolha entre quem paga e quem presta o serviço.

Daí tivemos a Lei 11.442/2007, que regula o transporte rodoviário de cargas em moldes próximos. E a 13.352/2016, Lei do Salão Parceiro, que regula a autonomia dos cabelereiros e manicures em relação aos salões de beleza. Finalmente, a nova CLT, reforma trabalhista trazida pela Lei 13.467/2017[5].

O STF, por sua vez, foi continuamente reconhecendo a constitucionalidade destes dispositivos legais. A ADC 66/DF reconhece a do artigo 129 da Lei 11.196/2005. A ADPF 324/DF, a terceirização da atividade-fim. A ADC 48/DF, a da contratação, sem vínculo, de PJ para transporte de cargas. A ADI 5.625/DF, a da Lei do Salão Parceiro[6]. E a Reclamação 65.484/DF afasta acórdãos que reconhecem vínculo entre emissora e artista. É claro que, com estas evidências, o Tema 725 do STF iria ser entendido como o grande validador da pejotização.

Todavia, o STF não me parece ter, ainda que defendendo a liberdade de iniciativa e a necessidade de haver segurança jurídica quanto à eficácia das escolhas empresariais dos contribuintes, legalizado a precariedade das relações trabalhistas.

Com a nova realidade em que a relação com pejotização mudou o modal deôntico de proibido para permitido, no caso dos Tribunais do Trabalho, ganha força a validade por hipersuficiência, conceito definido pela reforma trabalhista:

CLT, Art. 444 – As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

Se o trabalhador é capaz de decidir seus interesses, se não há vício no seu consentimento e – afinal – não necessita da proteção trabalhista nos moldes tradicionais, não haveria pejotização ilícita. Passa a compor o definiens do hipersuficiente uma certa dose de elitismo: ser trabalhador “com nível superior”, que “auferia rendimentos superiores à grande maioria da população brasileira”, ou mesmo “profissional altamente gabaritado”[7].

A caracterização é casuística, mas é possível inferir, a partir do hábito revelado pelos julgados, que se o trabalhador for médico a expectativa é de que seja considerado hipersuficiente[8]. Mas e se for um representante comercial? Um técnico de informática? A presunção da escolaridade e da renda, em oposição à hipossuficiência, precisa estar demonstrada e provada nos fatos.

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Pois bem. Como bem apontado pelos conselheiros Ana Carolina da Silva Barbosa e Roberto Junqueira de Alvarenga no artigo citado no primeiro parágrafo, tem-se a necessidade de se defender um sistema previdenciário equilibrado. Veja-se, o princípio da solidariedade, plural, pesa de forma diferente da necessidade de proteção do indivíduo trabalhador.

O acordo do empregador e trabalhador, ainda que livre, não poderia prejudicar a seguridade social. Dito isto, é possível que, na mesma relação, haja uma pejotização lícita para fins trabalhistas (julgada no TRT), mas ilícita para fins previdenciários (julgada no Carf)? O tema tem sido discutido, ainda que de forma indireta, na literatura jurídica[9], e no Conselho[10].

Minhas conclusões são de que o STF, ao julgar pela constitucionalidade da terceirização, não acabou com as relações de emprego. A análise não deixou de ser caso a caso. Ainda existe pejotização ilegal, pois, onde houver subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, haverá relação de emprego e, portanto, incidência das contribuições sociais previdenciárias.


[1] BARBOSA, Ana Carolina da Silva; ALVARENGA NETO, Roberto Junqueira de. O Carf e a pejotização. JOTA, São Paulo, 19 set. 2024. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/por-dentro-do-carf/o-carf-e-a-pejotizacao>.

[2] Por todos, vide BARUEL, Ana Paula M. Costa; VIDAL JR., João Luiz. Pacificadas no STF, pejotização e terceirização ainda dividem o Carf. ConJur, São Paulo, 28 abr. 2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-abr-28/pacificadas-no-stf-pejotizacao-e-terceirizacao-ainda-dividem-o-carf/>.

[3] Pejotização é um neologismo a partir da pronúncia de “P.J.” (pessoa jurídica). Ao invés de se contratar uma pessoa física de forma direta, contrata-se através de uma jurídica pertencente à física.

[4] JAMES, William. A vontade de crer e outros ensaios filosóficos. Tradução de Márcia Saavedra de Macedo. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

[5] Curiosamente, com a Reforma Tributária, dado que o IBS recolhido poderá ser abatido no imposto devido pela empresa na prestação do serviço final, diferentemente do que ocorre com a folha de salários, parece representar um incentivo à pejotização.

[6] A própria posição vencedora na ADIN 5.625, de 28/10/2021, de redação do Ministro Nunes Marques, é de que: “1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei n. 13.352, de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores”.

[7] Como visto no TRT da 2ª Região:

Vale dizer que o reclamante é pessoa esclarecida, formado em análise de sistemas com nível superior e auferia rendimentos superiores à grande maioria da população brasileira (R$ 18.900,00), o que o coloca em patamar diferenciado dos demais trabalhadores. (Processo: 1000680-73.2023.5.02.0068; data: 21-03-2024; Órgão Julgador: 9ª Turma – Cadeira 1 – 9ª Turma; relator(a): ALCINA MARIA FONSECA BERES);

E, no caso concreto, o autor possuía plena autonomia para contratar na forma que melhor atendesse aos seus interesses, pois se trata de profissional altamente gabaritado e extremamente bem remunerado, motivo pelo qual não é caso de vínculo de emprego. (Processo: 1001526-96.2019.5.02.0079; Data: 02-05-2024; Órgão Julgador: 15ª Turma – Cadeira 5 – 15ª Turma; Relator(a): JONAS SANTANA DE BRITO).

[8] Como nos Acórdãos nº 2101-002.824, Relator: Wesley Rocha, Julgado em 05 jun. 2024, e nº 2101-002.830, Relator: Wesley Rocha, Julgado em 06 jun. 2024.

[9] SORRENTINO, Thiago Buschinelli. Definição dos critérios decisórios judiciais vinculantes ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF): o caso da “pejotização” vs. Terceirização. In: Estudos Tributários e Aduaneiros – IX Seminário CARF. Brasília: Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), 2024.

[10] Acórdão nº 2201-011.417, Relator: Fernando Gomes Favacho, Julgado em 07 fev. 2024.

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