Geolocalização como fonte de prova na Justiça do Trabalho – parte 1

Salve, caro leitor! Tudo bem por aí?

Vamos com a coluna do mês, voltando a um tema que discutimos aqui meses atrás: o das provas digitais. Trataremos deste assunto também na próxima coluna; logo, teremos sessenta dias para a nossa completa reflexão, querido companheiro de jornada. 

Quanto cuidei do assunto pela primeira vez, falei dos prints de WhatsApp (e de outros aplicativos de mensageria instantânea) e de seu uso como prova nos processos judiciais, você se lembra? Hoje (e na próxima coluna), vamos falar de geolocalização, pedindo a sua compreensão, com escusas antecipadas, pelo excesso de estrangeirismos e expressões em língua inglesa ao longo do texto. 

É, aliás, algo quase inevitável quando estamos a tratar desses temas tão modernosos… E como diríamos, afinal, em português? Prints de WhatsApp seriam “impressos do aplicativo”. E aê?… Enfim, paciência.  

A isto. 

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A crescente digitalização das relações sociais e laborais tem impactado diretamente a produção de provas no âmbito do processo trabalhista. A geolocalização surge como uma espécie de prova digital capaz de registrar com boa fidedignidade, por exemplo, a presença ou ausência de indivíduos em determinados locais e horários. 

Nessa ordem de ideias, convém entender, à partida, que provas digitais – a exemplo daquela obtida por geolocalização (que é essencialmente documental e pode ser pericial) – são “qualquer tipo de informação, com valor probatório, armazenada [em qualquer dispositivo de armazenamento digital] ou transmitida [em sistemas e redes informáticas ou de comunicações eletrônicas, privadas ou publicamente acessíveis] sob a forma binária ou digital” (RODRIGUES,  2009, p. 39). 

Logo, a  expressão “prova digital” identifica, a rigor, um tipo de fonte de prova (e não propriamente um meio de prova), exceto se tomarmos como sinonímia “prova digital” e “documento eletrônico” (neste caso, meio de prova especificamente regulado no CPC/2015: artigos 439 a 441), o que também seria reducionista.

Ainda se devidamente classificada, porém, a prova por geolocalização segue a padecer com incompreensões de toda sorte. Na verdade, o uso da geolocalização envolve um complexo embate entre o direito à privacidade e a necessidade de produção de provas idôneas. Neste contexto, analisaremos criticamente os aspectos jurídicos e técnicos da geolocalização como fonte de prova – e não “meio” –  no processo trabalhista brasileiro, com base na jurisprudência e na legislação em vigor.

Começamos por remarcar que a admissibilidade da geolocalização como prova nos processos trabalhistas decorre, como em todos os outros casos, da necessidade de se garantir a veracidade dos fatos alegados em juízo. 

Segundo decisões recentes do TST, a obtenção desses dados deve respeitar os princípios da proporcionalidade e da legalidade, que permitem inclusive restringir a admissibilidade desse tipo de prova (v., e.g., TST, ROT 00658-34.2021.5.12.0000, ROT 22168-91.2022.5.04.0000 e ROT 00658- 34.2021.5.12.0000).

O artigo 369 do Código de Processo Civil, com efeito, permite a utilização de meios atípicos de prova, desde que idôneos; e essa regra obviamente se estende ao processo laboral (artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho). Nada obstante, a utilização da geolocalização deve observar a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e a necessidade de consentimento dos interessados e/ou autorização judicial para tanto.

No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais trouxe novas diretrizes para a obtenção e utilização de informações pessoais em processos judiciais, incluindo dados de geolocalização. A normativa exige que o tratamento de tais dados ocorra de forma transparente e em conformidade com princípios de necessidade e adequação. Assim, a aplicação da geolocalização como fonte probatória precisa estar alinhada com os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos, garantindo que seu uso não seja abusivo ou desproporcional.

De outra parte, os desafios técnicos também devem ser considerados ao se avaliar a confiabilidade da geolocalização como meio de prova. Embora os dispositivos modernos ofereçam um alto grau de precisão, fatores como condições meteorológicas, interferências eletromagnéticas e limitações na captação do sinal de GPS podem comprometer a exatidão dos dados coletados. Por esse motivo, a própria valoração dessas provas deve ser feita de forma criteriosa, evitando a aceitação irrefletida de informações potencialmente imprecisas.

Mais recentemente, o TST adotou, a respeito da admissibilidade das provas por geolocalização, o entendimento de que, porque não há direitos absolutos (STF) – nem mesmo o direito à intimidade e à vida privada –, é de rigor ponderar in concreto os princípios da proteção de dados pessoais e do contraditório, para então se decidir se estamos ou não diante de prova ilícita. 

Nessa ordem de ideias, em decisão recente (TST, SBDI-2, ROT 23218-21.2023.5.04.0000) da relatoria do ministro Amaury, entendeu-se que a prova por geolocalização pode ser produzida, admitida e valorada para fins de aferição da jornada de trabalho sob controvérsia, devendo, porém, ser limitada aos horários alegados pelo trabalhador e utilizada de forma criteriosa para evitar violação à intimidade. Trata-se – embora o acórdão não o diga textualmente – da aplicação, à hipótese, do conceito de concordância harmônica tão bem desenvolvido na doutrina alemã (Konrad Hesse).

Quanto ao ROT 23218-21.2023.5.04.0000, vale bem transcrever a emenda (j. 14/5/2024):

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PRODUÇÃO DE PROVA DIGITAL. GEOLOCALIZAÇÃO DO TRABALHADOR. JORNADA DE TRABALHO. COLISÃO DE PRINCÍPIOS. PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS. (CF, ART. 5º, LXXIX). DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. MEDIDA ADEQUADA, NECESSÁRIA E PROPORCIONAL PARA OBTENÇÃO DA VERDADE PROCESSUAL. 

  1. De acordo com o Supremo Tribunal Federal, “no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, […], pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (STF, MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, 12-5-2020). Havendo colisão de princípios, um deles deve ceder, realizando-se a concordância prática entre eles, mediante redução proporcional do alcance de cada um, a fim de que a norma atinja sua finalidade precípua. 

  2. Os tribunais internacionais aceitam provas digitais, desde que haja previsão legal (CEDH, Ben Faiza c. France), os objetivos sejam legítimos e necessários em uma sociedade democrática (CEDH, Uzun c. Allemagne) e atendidos determinados critérios de validade (U. S. Supreme Court, Daubert v. Merrell). 

  3. Tanto a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018, 7º, VI), quanto a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011, 21 c/c 31, § 4º) e o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014, 22) possibilitam o acesso a dados pessoais e informação para defesa de interesses em Juízo. 

  4. O escrutínio da validade das provas digitais exige que elas sejam adequadas (aptas ao fim colimado); necessárias (produzidas com o menor nível de intrusão possível) e proporcionais (o grau de afetação de um princípio deve ser diretamente proporcional à importância da satisfação do outro). 

  5. O princípio da “primazia da realidade”, segundo o qual o conteúdo prevalece sobre a forma, não deriva do princípio da proteção, de modo que constitui “via de mão dupla”, podendo ser utilizado tanto por empregados como por empregadores. 

  6. Violaria o princípio da “paridade de armas”, que assegura oportunidades iguais e meios processuais equivalentes para apoiar reivindicações, o deferimento de geolocalização somente quando requerida pelo empregado – pois ele consentiria com o tratamento de seus dados – e não pelo empregador – pois isso supostamente afrontaria o direito à intimidade/privacidade. 

  7. A admissibilidade de provas deve ser concebida a partir de um regime de inclusão, com incremento das possibilidades de obtenção da verdade real, conforme tendência apontada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicaragua). 

  8. A diligência de geolocalização do trabalhador, nos períodos e horários por ele indicados como de trabalho efetivo, só invade a intimidade no caso de ele descumprir o dever de cooperação (CPC, 6º), que exige a exposição dos fatos em Juízo conforme a verdade (CPC, 77, I). 9. Não há violação ao sigilo telemático e de comunicações (CF, 5º, XII) na prova por meio de geolocalização, haja vista que a proteção assegurada pela constituição é o de comunicação dos dados e não dos dados em si ”(STF, HC 91.867, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T., DJe-185 de 20-9-2012), o que tornaria qualquer investigação impossível” (STF, RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 19-12-2006). 

  9. A ponderação de interesses em conflito demonstra que a quebra do sigilo de dados (geolocalização) revela-se adequada, necessária e proporcional, conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ – AgRg no RMS 68.487, 5ª T., 15/9/2022). 

  10. A Justiça do Trabalho acompanha o avanço tecnológico que permite maior segurança na utilização da prova por geolocalização. O programa VERITAS, criado e aperfeiçoado pelo TRT da 12ª Região, possui filtros que permitem reduzir os dados ao específico espaço de interesse judicial, como por exemplo, o local da execução dos serviços do trabalhador (o que afasta completamente a ideia de violação de sigilo, afinal servirá apenas para demonstrar que o trabalhador estava, ou não, no local da prestação de serviços, sendo apenas mais preciso e confiável do que o depoimento de uma testemunha). 

  11. Desenvolver sistemas e treinar magistrados no uso de tecnologias essenciais para a edificação de uma sociedade que cumpra a promessa constitucional de ser mais justa (CF, 3º, I), para depois censurar a produção dessas mesmas provas, seria uma enorme incoerência. 

  12. É tempo de admitir a ampla produção de diligências úteis e necessárias, resguardando, porém, o quanto possível, o direito à intimidade e à privacidade do trabalhador. 

  13. Neste sentido, é preciso limitar a prova de geolocalização aos dias e horários apontados na petição inicial como sendo de trabalho realizado, além de determinar que o processo seja mantido em segredo de justiça, a fim de restringir essas informações às partes e ao juiz da causa. 

  14. Como essas limitações não foram estabelecidas pela autoridade coatora, o provimento do recurso deve ser apenas parcial, de modo a conceder parcialmente a segurança para restringir à produção da prova, conforme acima especificado, bem como determinar que o processo seja mantido em segredo de justiça.

Parece ser, com efeito, uma boa vereda. Não tem cabimento, a bem do contraditório e da ampla defesa – e do amplo direito de prova que promana desse binômio-garantia –, supor que a prova por geolocalização sempre viole desproporcionalmente os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada (CF, art. 5º X), ou o próprio direito à tutela dos dados pessoais (CF, art. 5º, LXXIX, na redação da EC nª 115/2022). Trata-se de uma análise que deve ser procedida casuisticamente, em cada processo, tendo em conta os interesses materiais envolvidos e os procedimentos probatórios adotados.

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Dito isto, o que dizer, em acréscimo, da própria geolocalização? Do que se trata exatamente? Que especiais desafios jurídicos carrega consigo, especialmente na perspectiva do devido processo legal formal? 

É o que nos espera na próxima coluna, prezado amigo. Vá pensando a respeito, porque você é réu do seu juízo. 

Temos então, gentil leitor, tema, local e data para nosso próximo encontro. Espero que o tema lhe seja de interesse; se não for, faço votos de que eu consiga torná-lo interessante. Estou me esforçando. Até lá!

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