Retrocesso da governança global

É impossível não ficar preocupado com a notícia de que Donald Trump suspendeu medidas anticorrupção em negócios de empresas dos EUA com o exterior. Isso ocorreu por meio de uma ordem executiva em fevereiro alterando os comandos previstos no Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), ou Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior dos Estados Unidos.

Trump não tem poder para revogar a lei, mas, como chefe do Executivo, pode mudar o jeito como ela é aplicada e executada, direcionando recursos para outras prioridades no Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), principal órgão responsável pelas investigações e aplicação de sanções contra os infratores do FCPA. Sua ordem estabelece uma pausa de 180 dias em todas as investigações em curso, assim como impede a abertura de novos processos apuratórios.

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Para tanto, argumenta que sua administração precisa de tempo para desenvolver um novo guia anticorrupção “razoável”, que demonstre como garantir a eficácia do FCPA sem colocar as empresas americanas em desvantagem nas suas atuações no exterior. Como se houvesse realmente uma desvantagem.

Mas por que a preocupação é grande?

Na década de 1990, as corporações multinacionais atuavam, em regra, em um ambiente praticamente desregulado e com baixo controle interno e externo. Esse quadro tinha sido potencializado na década anterior (os anos 1980), em que a competição sem limites éticos era a máxima do mundo corporativo. Os Yuppies ditavam as regras. Ou melhor, afastavam do mercado as poucas regras que tinham restado do período de forte crescimento econômico nos Estados Unidos e na Inglaterra, no qual foram promovidas políticas de desregulação financeira e houve um “boom” no setor de serviços, especialmente em finanças e tecnologia.

Naquela época, os trabalhadores americanos estavam juntando suas economias para a tão sonhada aposentadoria na Flórida e compravam ações de uma próspera empresa de energia do Texas, a Enron. Acontece que a conta chegou nos anos 2000.

Sem um controle efetivo das práticas ilícitas, inúmeras empresas, de setores variados, foram pegas em fraudes contábeis, financeiras, por pagarem propinas a agentes públicos. Elas estavam acostumadas a cometer vários atos ilegais, mas que eram, de certa forma, institucionalizados ou tolerados. Isso deu origem a uma sequência de escândalos que abalou a reputação e a credibilidade do mercado. Sem falar da grande crise do setor financeiro de 2008, que simplesmente varreu do mapa bancos centenários um pouco depois da primeira onda de fraudes vir à tona.

Enron, WorldCom, Tyco, Madoff, Lehman Brothers, HealthSouth, Arthur Andersen, Adelphia, Parmalat, Satyam e Fannie Mae são exemplos de empresas que deixaram de existir ou tiveram a sua imagem totalmente devastada por mentirem e enganarem a sociedade.

O americano de classe média que economizava para se aposentar na Flórida viu suas ações acumuladas ao longo de uma vida toda virarem pó, assim como a Enron. O senso comum e as autoridades apontavam na direção de que era preciso fortalecer a governança das empresas e proteger a sociedade. Do contrário, seria muito difícil convencer as pessoas a acreditar no mercado de ações.

A expressão ESG (Environmental, Social and Governance) começa a ganhar força neste período a partir de 2000. Passou a ficar claro que as organizações de alta performance deveriam ter negócios sustentáveis, olhar para “stakeholders” de uma forma ética, íntegra, diversa, equitativa e inclusiva, bem como respeitar a lei e adotar um conjunto de procedimentos, princípios e regras aplicáveis à sua gestão, monitoramento e direção. Não bastava mais o resultado a qualquer preço. Se antes a regra era lucrar a qualquer custo, agora o “como” isso ocorre passou a importar.

Foi nesse espírito que, sob o aspecto contábil, foi criada a Lei Sarbanes-Oxley (Sox), aprovada pelo Congresso americano em 2002, que visa a proteger os investidores e demais agentes do mercado dos erros das escriturações contábeis e práticas fraudulentas, aprimorando a governança e a prestação de contas das empresas.

Também como ferramenta de controle contábil, mas com foco nos crimes relacionados à corrupção e ao suborno, houve o fortalecimento do FCPA. A partir dos anos 2000, tanto o DOJ como a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC) passaram a perseguir implacavelmente as fraudes e os subornos sob o FCPA, justamente a lei que Trump agora resolve “pausar” por 180 dias. Foi nesse ambiente com Sox e FCPA forte que ocorreu uma enorme transformação na governança das empresas multinacionais que atuam aqui no Brasil. E para melhor.

À frente do jurídico e da conformidade em toda a América do Sul na maior empresa química do mundo de 2008 até junho do ano passado, desenvolvemos e implementamos um programa robusto de conformidade, visando ao respeito à legislação e aos valores internos da empresa germano-americana, tendo como base justamente o FCPA.

O programa tinha, principalmente, cinco módulos: antitruste, negócios com a administração pública/contratos públicos, combate a suborno, combate a conflito de interesses e combate a assédios sexual e moral. Todos os países hispânicos adotaram o programa, já que os órgãos de controle locais (agências antitruste, bancos centrais, alfândegas, receitas federais etc.) intensificaram suas ações. Treinamentos presenciais para todos os colaboradores, certificações obrigatórias, formação de comitês pela alta gestão, nomeação de pontos focais nas unidades, desenvolvimento de cartilhas e criação de um “Dia da Conformidade” foram algumas das inúmeras iniciativas do programa.

O FCPA é importante nesse cenário porque prevê a possibilidade de multas civis e criminais, a restituição dos lucros obtidos com as práticas corruptas, a adoção de um interventor na empresa fraudadora, descontinuidade de negócios e, bingo, penalidades para os executivos envolvidos nos escândalos, incluindo multas e prisão. Na prática, o FCPA faz com que o crime não compense.

Com o fortalecimento do FCPA e com a possibilidade real de ser preso e pagar uma multa milionária, o executivo americano passou a tomar mais cuidado com as práticas fora dos Estados Unidos, sejam aquelas realizadas por ele diretamente ou sua equipe.

E é inegável a influência americana ao redor do globo. Após o reforço no FCPA surgiu o UK Bribery Act – a lei anticorrupção britânica de 2010 – e a Lei Anticorrupção brasileira (Lei 12.846/2013), editada em meio a diversos escândalos envolvendo estatais que ajudaram a levar multidões às ruas para protestar. Todos lembram como acabou essa história.

A transformação foi lenta, tijolo a tijolo, mas firme e constante. Não se muda cultura corporativa da noite para o dia ou com palavras. É preciso o exemplo da liderança: em conformidade, a alta gestão é quem dá o tom. Além disso, são necessários altíssimos investimentos em recursos financeiros, humanos, tecnológicos, em processos e em qualificação.

Ao afastar a eficácia do FCPA, Trump passa para o mercado dúvidas sobre quais os passos a seguir. Serão jogados no lixo todos os esforços e investimentos realizados pelas organizações em prol de um mundo corporativo mais ético e seguro para investir? Ele vai também afetar a Sox?

Os netos daquele americano que esperava se aposentar na Flórida – agora adultos da nova geração Z – terão um ambiente seguro para aplicar as suas economias em ações de empresas americanas ou perderão suas reservas para organizações inescrupulosas, como aconteceu com seu avô?

Somente o tempo dirá, mas não podemos assistir a isso sem apresentar argumentos concretos e sólidos contra o retrocesso que se avizinha, simplesmente porque fazer a coisa certa é o certo a se fazer.

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