O pioneirismo da Defensoria Pública na política de cotas para pessoas trans

O direito das minorias identitárias à políticas de inclusão é um tema que já foi bastante trabalhado na produção científica e na jurisprudência e que dispensa maiores apresentações. É corrente a lição de que o direito à igualdade tem a sua vertente material e de que é preciso considerar as diferenças na formulação de políticas públicas para a superação da desigualdade.

Na busca por equidade, as estatísticas ajudam a entender como a diferença se dá na vida das pessoas trans. Conforme dados do Sistema de Informação de Agravos de notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, colhidos entre 2015 e 2017, 11.435 pessoas trans e travestis foram vítimas de violência, uma média de mais de 10 ocorrências por dia de violência.

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Na educação, o cenário também é difícil. Segundo informações do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), a população trans representa apenas 0,3% da população universitária do Brasil.

O dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) publicado em 2024 anota que as pessoas trans enfrentam os maiores índices de desemprego, dificuldade de inserção no mercado de trabalho e têm a menor renda. Ademais, têm maior dificuldade de acesso a serviços básicos, sofrem o maior impacto na precarização de suas vidas e têm a situação socioeconômica mais degradada. Como fruto dessa desigualdade, não se veem pessoas trans em profissões e posições de destaque na política, na iniciativa privada e no serviço público.

Contudo, tem-se um processo histórico de luta para a garantia de direitos igualitários e que atendam às especificidades da população LGBTQIAPN+ diante de tantas mazelas vivenciadas por esse grupo. Em especial, pela população trans. A Defensoria Pública, instituição que é expressão e instrumento do regime democrático, megafone das pessoas vulnerabilizadas, tem assumido o protagonismo na linha de frente por direitos há alguns anos.

As lutas são inúmeras. Vejamos algumas delas: (i) os conhecidos mutirões de retificação de prenome e gênero no Brasil a fora; (ii) a efetivação do direito à saúde como, por exemplo, hormonioterapia e cirurgia de afirmação de gênero à luz da Portaria 2.803/2013/MS; (iii) o combate à homotransfobia; (iv) a presença das DPEs nas Paradas LGBTQIAPN+; (v) a assistência jurídica no reconhecimento de união estável/casamento; (vi) o auxílio jurídico na adoção homoafetiva; (vii) a orientação em relação à inseminação artificial caseira; (viii) os mutirões de doação de sangue após o julgamento da ADI 5.543; (ix) a luta pelo reconhecimento da não-binariedade e (x) a articulação das Conferências 2025 à luz do Decreto Federal nº 11.848/2023 e 12.030/2024.

Ocorre que chega um momento que é preciso olhar para dentro e, institucionalmente, é necessário refletir sobre representatividade. Nessa ordem de ideias, a Defensoria Pública vem cumprindo o seu papel e se posicionando sobre a necessidade de subverter a lógica perversa da cisheteronormatividade em seus espaços. Assim, a política de ações afirmativas para pessoas trans nos concursos públicos de ingresso nas carreiras de defensores/as públicos/as, servidores/as e estagiários/as tem se tornado realidade.

Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), o art. 1º, III, da Deliberação CSDP 400/2022 instituiu 2% de reservas de vagas para pessoas trans. No primeiro concurso com adoção de tal política, já houve frutos: uma candidata trans e um candidato trans foram aprovados para o cargo de defensor/a público/a. O resultado foi publicado no dia 07/03/2024 e pode ser conferido aqui.

Na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), o art. 3º, § 5º da Deliberação CSDP 19/2023 também reservou 2% de vagas para pessoas trans. Há concurso em andamento e grandes expectativas de efetivação da política estabelecida.

Na Defensoria Pública do Estado de Pernambuco (DPE-PE), tem-se o art. 12 da Resolução CSDP 01/2024 que, de igual modo, reserva 2% das vagas. A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por meio do art. 12, III da Resolução CSDPE 13/2024 reservou 1% das vagas às pessoas trans. E especificou: pessoas transgêneras e/ou transsexuais, as pessoas que se entendem como mulheres trans, transsexuais, travestis, não binários, homens trans, transmasculinos e pessoas intersexo e aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando de seu nascimento. Essa normativa é pautada no Decreto 56.229/2021 do Estado do Rio Grande do Sul que prevê política semelhante.

Por fim, a Defensoria Pública da União (DPU), por meio da Resolução CSDPU 222/2024, reservou o percentual de 2% das vagas. Além disso, a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) está debatendo a questão e a Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso (DPE-MT) também. Sem dúvidas, a Defensoria Pública é uma instituição pioneira no âmbito da representatividade da população trans no serviço público.

É essencial pontuar que, em todas as normativas elencadas acima, a força motriz é a autodeclaração. Ademais, há o estabelecimento de critérios para a ratificação de tal autodeclaração. Nessa linha de raciocínio, pessoa trans é aquela que assim se declare no momento da inscrição do concurso e tenha sua autodeclaração ratificada pela banca examinadora.

Para a ratificação da autodeclaração das pessoas inscritas às vagas reservadas a pessoas trans será considerado um ou mais elementos, dentre os seguintes: (i) o reconhecimento social, transição corporal e/ou social de identidade de gênero, assim entendidas como o conjunto de características que compõem a transexualidade e/ou travestilidade vivenciada; (ii) a apresentação da certidão de nascimento de inteiro teor (ou número de protocolo do processo administrativo para retificação) e/ou apresentação de documentos com nome social (carteira de nome social, carteira de identidade profissional, crachás, carteira de estudante, cartão do vale transporte, CNH, Cartão Nacional de Saúde, entre outros), ou outros meios de prova, vedados aqueles que impliquem patologização da identidade trans; e (iii) relato da transição do/a candidato/a feito em entrevista pessoal.

É preciso assumir que, para avançar em cidadania da população trans, é imperativo romper diversas barreiras e ter uma postura proativa. Enquanto isso não ocorrer, a luta trans seguirá relegada à busca por direitos fundamentais básicos, como o direito ao nome, a sair na rua sem medo, de se casar, de usar o banheiro ou transitar pela cidade.

Para reverter os dados da violência e da estigmatização, é preciso entender o papel das políticas públicas afirmativas, bem como o papel da igualdade como reconhecimento. Pessoas trans existem e têm o direito a ocupar os espaços. A começar pela Defensoria Pública, que sempre foi um dos principais locais de amparo na luta por direitos. Muitas vezes, não foi a última porta a ser batida. Mas, sim, a primeira. Sigamos!

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