Peso desigual do voto: o desafio da redistribuição de cadeiras na Câmara

A democracia representativa pressupõe que o voto de cada cidadão possua o mesmo peso na escolha de seus representantes. No entanto, no Brasil, a distorção na distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados gera um desequilíbrio na representatividade das unidades federativas, permitindo que votos de alguns estados tenham um peso significativamente maior do que os de outros. Essa realidade compromete o princípio da igualdade do voto e gera um desafio contínuo para a consolidação da democracia no país.

Tal distorção atenta contra o princípio da igualdade de valor do voto, fundamental em qualquer sistema democrático, conforme preconiza a clássica doutrina do one person, one vote, da Suprema Corte norte-americana (Gray v. Sanders, 372 U.S. 368 -1963). No Brasil, o atual sistema permite que o voto de um cidadão tenha peso eletivo significativamente superior ao de outro, a depender do Estado em que resida, o que compromete a legitimidade democrática.

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O presente artigo analisa a desproporcionalidade na distribuição das cadeiras na Câmara dos Deputados à luz da jurisprudência nacional, bem como as tentativas – ou a ausência delas – do Legislativo brasileiro em corrigir essa distorção.

Origens e impactos do problema

O princípio da igualdade do voto é um dos pilares do sistema democrático e está consagrado no artigo 14 da Constituição Federal de 1988. A cláusula do sistema proporcional, prevista no artigo 45 da Constituição, estabelece que a representação dos estados na Câmara deve ser proporcional à sua população. No entanto, a fixação de um piso mínimo de 8 deputados por estado e o teto máximo de 70 deputados por unidade federativa resultam em disparidades expressivas na representação política.

A existência de um piso e um teto no número de representantes, como se sabe, gera distorções porque a distribuição da população é desigual. Além disso, desde 1994 a conta da proporcionalidade não é ajustada, de modo que o número de deputados federais ainda reflete uma estimativa feita em dezembro de 1993.

Sobre o tema, o artigo de Maurício Costa Romão, publicado aqui no JOTA em janeiro deste ano, trouxe para reflexão o caso dos estados da Paraíba e do Amazonas. As populações destes estados são praticamente iguais, segundo o último Censo: 3.974 mil e 3.941 mil habitantes, respectivamente. Mas a Paraíba tem 12 deputados federais e o Amazonas, apenas 8. A ausência de ajustes periódicos gerou assimetria, de sorte que no atual contexto um deputado paraibano representa 331 mil habitantes, ao passo que um amazonense arca com 493 mil habitantes, quase 50% a mais.[1]

Jurisprudência do STF e tentativas de correção

O §1º do artigo 45 da Constituição Federal exige uma revisão periódica da representação dos estados na Câmara, contudo, desde a edição da Lei Complementar 78/1993, jamais houve essa revisão. A declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1º da LC 78/1993 e da Resolução TSE 23.389/2013, operada no julgamento conjunto das ADIs 4.947, 4.963, 4.965, 5.020 e 5.028 pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), apenas evidenciou ainda mais a omissão legislativa.

Na hipótese, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2013, tentou corrigir a distorção editando a Resolução 23.389, que redistribuía o número de cadeiras na Câmara com base na população brasileira. Entretanto, o STF considerou inconstitucional essa medida, por entender, em síntese, que a competência para definir a representação proporcional caberia exclusivamente ao Parlamento, mediante lei complementar. Com isso, a resolução foi declarada inconstitucional, restando assim suprimida do ordenamento jurídico brasileiro a proposta de readequação.

Em 2023, no julgamento da ADO 38/DF, o STF reconheceu a mora legislativa e fixou prazo até 30 de junho de 2025 para que o Congresso Nacional edite a lei complementar prevista na segunda parte do §1º do artigo 45 da CF. Caso a omissão persista, caberá ao TSE, até 1º de outubro de 2025, determinar o número de deputados federais de cada estado e do Distrito Federal para a legislatura de 2027, observando os pisos e tetos constitucionais e utilizando os dados do Censo 2022.

Na última semana, o JOTA noticiou que o novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), quer buscar um acordo com STF para aumentar o número de deputados para 527, evitando, assim, que estados percam parlamentares em suas bancadas.[2] 

O PLP 148/23, que pretende ajustar o número de integrantes das bancadas estaduais e do Distrito Federal na Câmara, atualmente estabelece que o Rio de Janeiro perderia 4 vagas. Depois viriam Bahia, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Sul, com 2 cada; e Alagoas e Pernambuco, com 1 cada. Por outro lado, Pará e Santa Catarina teriam 4 vagas a mais. Em seguida viriam Amazonas, com 2, e Ceará, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, com 1 cada. 

Soluções e caminhos possíveis

A primeira medida essencial para corrigir a distorção da representação é a definição de critérios objetivos para a atualização periódica da distribuição das cadeiras. Isso garantiria um processo de redistribuição transparente e técnico, reduzindo a interferência política na definição das bancadas estaduais.

Além disso, é imperativa a revisão da Lei Complementar 78/1993, a fim de estabelecer um mecanismo automático de redistribuição das cadeiras a cada novo censo demográfico. A dependência de deliberações políticas tem demonstrado ser um obstáculo significativo à atualização da proporcionalidade na representação, tornando fundamental a adoção de regras claras para assegurar que a composição da Câmara reflita com a precisão possível a realidade populacional do país.

Outro ponto essencial é a necessidade de ampla discussão no Congresso Nacional sobre a adequação dos pisos e tetos estabelecidos na Constituição. Deve-se avaliar se esses critérios ainda são compatíveis com a realidade demográfica e política do Brasil, ou se há a necessidade de reformulações que promovam um equilíbrio mais justo entre as unidades federativas na Câmara dos Deputados.

Por fim, a redistribuição das cadeiras deve seguir rigorosamente as diretrizes da jurisprudência constitucional. A observância dos princípios democráticos e da igualdade de representação, já reafirmados pelo STF, deve ser uma prioridade. Assim, qualquer reforma nesse sentido precisa estar alinhada com precedentes que garantam a previsibilidade e a legitimidade do processo eleitoral, evitando distorções que possam comprometer a representatividade da população.

Conclusão

A configuração atual da Câmara dos Deputados há tempos viola o princípio constitucional da proporcionalidade. Esse descompasso compromete a igualdade do voto, pois o peso eleitoral varia significativamente de uma unidade federativa para outra, favorecendo algumas regiões em detrimento de outras. O atraso na revisão dos critérios de alocação das cadeiras gera um cenário em que a representatividade parlamentar se afasta da realidade demográfica do país.

Diante da omissão legislativa, o STF, por meio da decisão na ADO 38/DF, determinou que o Congresso Nacional corrija essa falha, estabelecendo um prazo para a revisão dos critérios de distribuição das cadeiras. O Supremo, em sua decisão, estabeleceu parâmetros específicos — especialmente o imperativo de proporcionalidade — para a distribuição das cadeiras na Câmara, de modo que a representatividade dos estados corresponda, de forma equitativa, aos dados demográficos oficiais.

Assim, se houver um acordo político que resulte na elaboração e aprovação de uma lei complementar que defina novos critérios para a distribuição das cadeiras, mas que desvie ou ignore os parâmetros estabelecidos pelo STF, essa norma poderá ser considerada inconstitucional.

Sem essa correção, a democracia brasileira permanecerá fragilizada por um vício estrutural que afeta a equidade no exercício do poder político. Para evitar que essa desigualdade se perpetue, é fundamental que haja um mecanismo eficiente de atualização, assegurando que a distribuição de cadeiras reflita de maneira mais fiel a realidade populacional e respeite o princípio da isonomia eleitoral.


[1] Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-proposta-de-aumento-do-numero-de-deputados; Acesso em 10 de fevereiro de 2025.

[2] Disponível em: https://www.jota.info/legislativo/hugo-motta-quer-acordo-com-supremo-para-aumentar-o-numero-de-deputados-para-527; Acesso em 10 de fevereiro de 2025.

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