Dois garçons, um tribunal e o ônus da prova

Em um dia de março de 2011, João, garçom, morador da Estrutural, desempregado, caminhava em direção ao ponto de ônibus quando encontrou seu vizinho, Pedro, apressado, indo na mesma direção:

– Pedro? Tudo bem? Apressado, hoje?

– Tudo bem. Estou com pressa porque o ônibus vai passar daqui a pouco e não quero chegar atrasado. Hoje é pesado no meu trabalho. É dia de sessão no tribunal e eu gosto de chegar mais cedo, para poder preparar tudo com cuidado.

– Um dia desses vi você na televisão servindo café a um homem de capa preta. A televisão mostrou a sala cheia. Deve ser muito bom trabalhar em um lugar desses. Será que não tem uma vaguinha lá para mim? Eu tava trabalhando só no final de semana, “clandestino”, no Restaurante Carne Dura, mas me botaram pra fora. Parece que foi alguma coisa com o Ministério do Trabalho. Um fiscal esteve lá. Eu estou precisando muito. Devendo aluguel, no mercadinho… Nem aguento olhar para os meninos. O salário de minha mulher não dá pra tudo e ainda bem que ela trabalha. Se não fosse isso, estaria bem pior.

– Lá é muito bom. Eu sou bem tratado. Aquelas pessoas de capa preta são os ministros. Eu sirvo café e água pra eles. Já tem mais de dez anos que eu trabalho lá. Sempre fico quando trocam as empresas. O meu nome sempre é indicado para continuar. Eu vou ver o que eu posso fazer. Ouvi falar que a empresa ganhou outro contrato. Parece que é lá também e tá precisando de gente.

– Foi Deus quem botou você no meu caminho! Tomara que estejam contratando. Eu estou indo levar meus documentos para uma empresa que está contratando também. É lá no Conic. Eu tenho uma cópia da minha carteira. Dê uma força – falou João, ao entregar uma cópia da carteira de trabalho a Pedro.

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Deu tudo certo e, uma semana depois, João começou a trabalhar como garçom no mesmo tribunal da Capital Federal, também servindo café e água aos “homens de capa preta”. Também havia mulheres com capas pretas. Estava muito feliz. Finalmente, deixou a situação de desempregado, já podia pagar as contas atrasadas e pensar no futuro.

A história, porém, não teve um final feliz. Dois anos depois, a empresa procurou o tribunal para desfazer o contrato. Os dois souberam da notícia ao chegarem para trabalhar, no dia 9 de março de 2013. Saiu até na internet.

Ficaram preocupados e souberam que o problema deles era ainda maior. A empresa tinha contratos com vários outros órgãos e não pagou a ninguém. Parece que o débito era alto: pagamento de horas extras (referentes aos dias em que ficam até mais tarde por causa do horário do término das sessões), Fundo de Garantia, INSS, gente com férias vencidas e 13º salário sem receber. Disseram que estava a maior confusão no sindicato.

Esse exemplo fictício retrata muito bem o que pode ter ocorrido no dia 9 de março de 2013 com dois garçons, quando o Judiciário, pela sua alta cúpula, se houve na contingência de assumir a folha de pagamento de centenas de trabalhadores terceirizados que prestavam serviços em diversas áreas (comunicação, recepção, marcenaria e tapeçaria, secretariado, operação de elevadores e almoxarifado), em virtude de haver sido procurado pela empresa contratada que solicitou o “cancelamento de todos os contratos em vigor alegando ‘circunstâncias financeiras desfavoráveis’”.[1]

Ainda de acordo com a notícia, a mesma empresa prestava serviços “para outros órgãos públicos como o Conselho Nacional de Justiça, Banco do Brasil, os Correios, a Caixa Econômica Federal e a Advocacia-Geral da União”. Os contratos com o STF “somavam mais de R$ 20 milhões, desconsiderados os valores dos aditivos. O contrato mais caro era o da área de recepção, de quase R$ 10 milhões”.[2]

Talvez até algumas das pessoas que trabalhavam vinculadas a contratos com um desses órgãos tenham ingressado com ações na Justiça do Trabalho e, hoje, fazem parte do grupo que aguarda a definição da tese vinculante referente ao Tema 1118 de Repercussão Geral, a respeito do ônus da prova.

Das soluções possíveis, convido o leitor a conjecturar a realidade da atribuição do ônus da prova aos trabalhadores. O que ocorreria? É possível imaginar esses e os demais trabalhadores terceirizados, todos os meses, em fila na porta da sala do setor responsável pela fiscalização do contrato pedindo para receber cópia das guias de recolhimento do FGTS e contribuição previdenciária, demonstrativo da apuração da jornada de trabalho e contracheques, entre outros documentos que justificassem estar ocorrendo a fiscalização?

Sim, porque, ao se atribuir o ônus da prova aos trabalhadores, o direito de produção de prova futura lhes deve ser assegurado e todos os meios são admitidos (art. 369 do CPC) e cada pessoa pode querer se preocupar com o futuro e se precaver.

O que deve ser feito por cada trabalhador para comprovar que o contratante, efetivamente, promoveu a fiscalização e, com isso, se resguardar diante de eventual ação trabalhista que possa ajuizar e, nela, lhe seja atribuído o ônus de demonstrar a negligência do fiscal do contrato?

E nos processos em andamento? Como se pode retroagir ao passado e, em 2025, atuar sobre fatos ocorridos entre 2011 e 2013 (exemplo fictício)?

Desde 2008 (pelo menos), a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por meio da Instrução Normativa nº 2, de 30 de abril,[3] tendo em vista o “disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, no Decreto nº 2.271, de 7 de julho de 1997, no Decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994, no Acórdão TCU nº 2.798/2010 – Plenário e no Acórdão TCU nº 1.214/2013”, disciplina os requisitos a serem observados na contratação de serviços, continuados ou não, por órgãos ou entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais (Sisg) e o faz de forma bastante detalhada.

Ao tratar da fiscalização como dever atribuído à Administração Pública, impõe-lhe adotar instrumentos de controle que compreendam a mensuração, entre outros aspectos (art. 34, caput) do “cumprimento das demais obrigações decorrentes do contrato” (art. 34, V), autoriza a aplicação de sanções administrativas, ao constatar o “descumprimento total ou parcial das responsabilidades assumidas pela contratada, sobretudo quanto às obrigações e encargos sociais e trabalhistas” (art. 34, § 4º), exigir, mensalmente, diversos documentos que comprovem o regular cumprimento das obrigações decorrentes dos contratos de trabalho firmados (art. 34, § 5º, e seus incisos) e até promover retenção do pagamento à empresa contratada, no caso de inadimplemento das verbas trabalhistas devidas (art.19-A, incisos I, IV e V).

Há previsão do dever atribuído aos fiscais ou gestores de contratos de serviço de oficiar ao Ministério da Previdência Social e à Receita Federal, em caso de indício (e não de efetiva constatação) de irregularidade no recolhimento das contribuições previdenciárias (art. 34, § 9º), de oficiar ao Ministério do Trabalho, em caso de também de indício de irregularidade no recolhimento da contribuição para o FGTS (art. 34, § 10), e o “… descumprimento das obrigações trabalhistas … pelo contratado poderá dar ensejo à rescisão contratual, sem prejuízo das demais sanções” (art. 34-A).

No Anexo IV, ao ser detalhada a Guia de Fiscalização dos Contratos de Prestação de Serviços com Dedicação Exclusiva de Mão de Obra, são previstas variadas formas de fiscalização (inicial, no momento em que a prestação de serviços é iniciada; mensal, a ser feita antes do pagamento da fatura; diária, especial, por amostragem e quando da extinção ou rescisão dos contratos), com a indicação de providências em caso de indícios de irregularidade.

Assim, é inegável constatar ser atribuído ao gestor público, de diversas formas, o dever de fiscalização dos contratos e, para que possa exercê-lo com efetividade, lhe é outorgada a possibilidade de aplicação de sanções, inclusive rescisão contratual e retenção de pagamentos.

Esse era o panorama sob a vigência da Lei 8.666/1993 e não foi alterado na Lei 14.133/2021. Ao contrário. A importância da atuação do fiscal do contrato na nova legislação é destacada por Carlos Wellington Leite de Almeida. Para ele, o fiscal “é a mão forte do dirigente e do ordenador de despesas do órgão ou entidade, além de ser, também, o mais importante agente da Administração no que se refere ao contrato que supervisiona, no que diz respeito à sua eficácia e eficiência”.[4]

Prossegue o autor e enfatiza a importância da atividade fiscalizatória, relacionada, especificamente, ao cumprimento das obrigações decorrentes dos contratos de terceirização de serviços. Afirma que “os órgãos e entidades contratantes devem dedicar especial atenção aos encargos trabalhistas e previdenciários relacionados com o contrato de serviços” e indica existir o dever específico do fiscal de contratos consistente em “adotar as providências com vistas à supervisão da adimplência da empresa terceirizada quanto aos encargos trabalhistas e previdenciários”.

No mesmo texto, recomenda realizar, no mínimo, fiscalização por amostragem, aliada à fiscalização periódica, e inserir previsão nos contratos de autorização para auditoria quanto à execução contratual, pois, para ele, “um contrato cumprido em ‘quase 100%’ é, na verdade, um contrato descumprido”, além de enfatizar as consequências: o “… mau desempenho da atividade de fiscalização desses encargos importará em responsabilidade para a Administração e, obviamente, para o fiscal designado”.

Diante desse quadro normativo, indaga-se: quem possui maiores condições de produzir a prova, isto é, a partir de dados da realidade, a quem deve ser atribuído o ônus?

Ainda que pudesse ser atribuído aos trabalhadores, o art. 373, § 1º, do CPC autoriza o juiz a inverter o ônus da prova, “diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo”.

Alguém tem dúvida se os garçons do exemplo fictício teriam “excessiva dificuldade” na produção da prova?

Quem teria maiores e melhores condições de fazê-lo? A Administração Pública ou os garçons?

O que dizer das orientações traçadas na mencionada Instrução Normativa, editada para dar cumprimento ao dever de fiscalização imposto por lei à Administração Pública?

Será que, como interessado direto, o trabalhador teria direito à fiscalização diária, mensal, por amostragem ou especial, tal como ocorre com a Administração Pública?

Como fazer a fiscalização, na prática, ainda que de forma sucessiva ao gestor público?

Essas são reflexões que perpassam o Tema 1118 de Repercussão Geral.

E os garçons do exemplo fictício? Alheios a esse debate jurídico, mesmo porque devem cumprir a obrigação decorrente do contrato de trabalho, continuarão a servir água e café aos homens e mulheres de capa preta.


[1] STF assume gastos com terceirizados após rescisão de contratos. Agência Brasil. Brasília, 9 mar. 2013. Disponível em: <https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil//noticia/2013-03-09/stf-assume-gastos-com-terceirizados-apos-rescisao-de-contratos>. Acesso em: 20 jan. 2025.

[2] De acordo com o jornal Correio Braziliense (edição de 29 de abril de 2014), só no governo federal são (ou eram) gastos R$ 8 bilhões por ano em contratos de fornecimento de mão de obra.

[3] Substituída pela Instrução Normativa 5, de 26 de maio de 2017.

[4] Carlos Wellington Leite de Almeida. Fiscalização Contratual na Lei 14.133/2021: Governança e Resultado na Execução de Contratos Administrativos. Revista do TCU, nº 150, 2022. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1814>. Acesso em: 8 fev. 2025 (grifos postos).

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