STF mais político pode levar para a Ciência Política o debate sobre o Direito Constitucional

A Ciência Política está tirando do Direito parte do campo do seu campo de trabalho e de análise. E o que sobra para o professor de Direito Constitucional hoje? Num cenário em que a Corte (o STF) está “umbilicalmente ligada à conjuntura política do país”, os caminhos em entre as duas ciências se cruzam criando dificuldades para o professor de Direito Constitucional dentro da sala de aula.

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Apesar de identificar esse caminho que se cruza com a ciência política, o professor diz que ainda “há um espaço para nós juristas para desenvolver argumentos normativos sobre a Constituição”. “Meu receio é que esse espaço tenha diminuído. E eu acho que esse contexto político que nós estamos conversando tem acentuado esse distanciamento das discussões mais normativas”, afirma.

Nas aulas, diante dos alunos na Federal do Pará, Baía diz que hoje um dos seus principais desafios é encontrar formas que permitam construir uma interpretação coerente do sistema constitucional e de seus princípios diante da grande quantidade de decisões do STF.

“Eu penso que atualmente uma das nossas principais dificuldades (…) vai mais no sentido de pensar sobre qual é o local e a posição de um professor de Direito Constitucional em razão de uma profusão de decisões do Supremo Tribunal Federal e de uma dogmática Constitucional que tem desenvolvido trabalhos mais no sentido de descrever essas decisões, em razão, talvez, do tempo, em razão das preocupações dessa dogmática com a venda de materiais para concursos públicos”, argumenta.

Em entrevista ao JOTA, ele ressaltou dois pontos que podem ser encarados como obstáculos adicionais: o material didático voltado para concursos públicos, que não estimula um pensamento original, e o contexto político, que fomenta o questionamento sobre os limites do Judiciário e esvazia as discussões normativas.

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“Minha preocupação sempre é muito mais em tentar buscar questionar a coerência, a robustez ou não de um determinado argumento da Corte, do que questionar de forma a priori se o Supremo poderia ou não fazer ou tomar certa atitude”, diz.

Breno Baía, professor de Direito Constitucional da UFPA, é o quarto entrevistado da série do JOTA sobre os desafios de ensinar o Direito Constitucional no Brasil polarizado. A série explora com professores renomados como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário onde a Constituição é não apenas um texto jurídico, mas também um campo de inúmeras disputas sociais.

Leia abaixo trechos da entrevista com o professor Breno Baía, da UFPA. A íntegra está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as onze entrevistas da série.

Como é que tem sido lidar com o ensino de Direito Constitucional diante das circunstâncias políticas, jurídicas e institucionais?

Eu penso que, atualmente, uma das nossas principais dificuldades, estou falando, claro, da minha experiência aqui, vai mais no sentido de pensar sobre qual é o local e a posição de um professor de Direito Constitucional em razão de uma profusão de decisões do Supremo Tribunal Federal e de uma dogmática Constitucional que tem desenvolvido trabalhos mais no sentido de descrever essas decisões, em razão, talvez, do tempo, em razão das preocupações dessa dogmática com a venda de materiais para concursos públicos.

Mas isso tem criado para nós uma certa dificuldade em saber se nós somos pessoas que apenas descrevem jurisprudência. Portanto, pegando ementas e em sala de aula indicando para os alunos quais foram as decisões do Supremo em uma determinada matéria, sem discutir, por exemplo, os seus fundamentos, sem discutir de forma aprofundada a coerência das razões, ou se nós somos, melhor dizendo, pesquisadores que problematizam esses casos, tentam estabelecer ligações entre os precedentes do Supremo, destacando suas eventuais inconsistências, as suas eventuais convergências. 

E essa dificuldade, penso eu, na construção de uma dogmática constitucional consistente, ela se reflete também nos livros didáticos. Então, boa parte deles tem se voltado agora de forma mais pouco envergonhada a preparar pessoas para a resolução de provas em concursos públicos. Isso faz com que a maior preocupação seja realmente compilar decisões, compilar alterações constitucionais, compilar alterações legislativas e não necessariamente explicá-las, problematizá-las. E no caso da discussão teórica, ela se limita a inventariar todas as eventuais teses ou conceitos do momento no campo do Direito Constitucional, tais como constitucionalismo abusivo, emendas constitucionais e inconstitucionais, atualmente, a discussão sobre democracia militante, etc. Então, não há necessariamente a construção de uma dogmática constitucional robusta. Embora, claro, existam colegas que estejam tentando desenvolver esse tipo de trabalho. 

Estou falando do campo do senso comum da construção da dogmática jurídica. Desses autores mais vendidos, os com mais impacto, essa tem sido a tônica. E, querendo ou não, essa minha preocupação, ela também tem a ver com o período que nós estamos vivenciando, porque sem o desenvolvimento, penso eu, de uma dogmática robusta, consistente, que se preocupe com o desenvolvimento de conceitos, ou mesmo com o constrangimento epistemológico da Corte, fica muito mais difícil para nós desenvolvermos uma crítica mais assertiva às decisões da Corte que, eventualmente, possam parecer contraditórias, que possam parecer questionáveis. Uma vez que, quando nós recorremos a um desses livros, a discussão sobre, por exemplo, separação de Poderes, se limita a descrições acontextuais de Montesquieu, Locke, etc., e logo em seguida de uma compilação de decisões do Supremo, nas quais a Corte mencionou, entre aspas, separação de poderes, nós não temos ferramentas epistemológicas para constranger a Corte, caso ela desenvolva, sei lá, uma tese mirabolante que levante suspeitas a respeito de sua pertinência em relação ao texto constitucional. 

Então, penso, Felipe, em um primeiro momento, que esse talvez seja um dos nossos principais problemas. Eu acho que nós precisamos recuperar a tarefa de desenvolver uma dogmática constitucional consistente que apresente não apenas para os operadores do Direito, mas até para as pessoas que não estão no campo, trabalhos científicos robustos que demonstrem, apontem os erros, os acertos da Corte e que tentem construir uma interpretação coerente do sistema constitucional e de seus princípios.

Quando você tenta implementar esse tipo de pensamento crítico em relação às decisões do Supremo, que tipo de reação você percebe?

Eu acho que a minha primeira abordagem é não necessariamente denunciar esses trabalhos dogmáticos, especialmente representados nas figuras dos cursos e manuais, mas eu evito passar para os meus alunos dos cursos de Direito Constitucional indicações desses manuais e cursos mais vendidos, que circulam mais. O que, claro, me dá muito mais trabalho, porque isso faz com que a cada sessão eu precise indicar artigos, textos que aprofundem determinada temática. E em sala de aula, no momento da exposição de determinados tópicos, tais como, por exemplo, teoria da Constituição, apenas para ficar no mais amplo, em vez de, por exemplo, trabalhar conceitos que são desenvolvidos nesses trabalhos que dialogam muito pouco com a nossa realidade, tais como, só apenas para exemplificar o que eu estou comentando, a distinção entre constituições sintéticas e constituições analíticas. 

Então, ‘ah, a Constituição americana é sintética, tem, sei lá, sete artigos. A Constituição brasileira é analítica porque tem mais de trezentos’. Então, em vez de trazer esse debate, em vez de discutir esses conceitos que dizem muito pouco a respeito de como pensar o nosso fenômeno constitucional, eu procuro trabalhar textos que problematizem o sentido de uma teoria constitucional no Brasil. Textos que discutem a história da formulação do processo constituinte, textos que apontam, especialmente de sociologia jurídica, como as disputas interpretativas da Constituição se apresentaram logo após a sua promulgação, textos que apontam como havia um conjunto de atores políticos e, portanto, também de intelectuais jurídicos que denunciavam, ou melhor dizendo, questionavam o sucesso de 1988, de um lado, e do outro campo, um outro conjunto de teóricos que buscava dar concretização e efetividade às normas constitucionais por meio de uma aposta no judiciário como esse propulsor das transformações constitucionais. 

Então, eu sei que dá mais trabalho desenvolver esse tipo de aula, exige muito mais preparação por parte do professor, mas eu penso que o saldo final tem sido bastante positivo. Então, essa é a forma com que eu tenho lidado com essas questões. E, por exemplo, isso na disciplina teoria da Constituição. Em outras disciplinas um pouco mais práticas, tais como controle de constitucionalidade e direitos fundamentais, porque aqui na UFPA, desculpa, só para te explicar, nós temos quatro semestres de Direito Constitucional. Teoria da Constituição no primeiro semestre, Direitos Fundamentais no segundo; no terceiro, Organização do Estado e, no quarto, Controle de Constitucionalidade. 

Eu geralmente ministro Teoria da Constituição, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. E nessas disciplinas, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, aí eu já parto, claro, de uma problematização por meio de textos referenciais da área, mas discuto muito casos. Então, eu levo para os alunos os acórdãos do Supremo, para nós lermos pelo menos a argumentação desenvolvida pelos relatores de casos paradigmáticos. Então, a ADI 3510, no caso de pesquisa de células-tronco, ou no caso de controle de constitucionalidade, as decisões do Moreira Alves sobre a construção do controle concentrado. Porque aí, quando isso, claro, também tem mais a ver com a forma como eu encaro a forma de pensar o Direito Constitucional. Eu penso que a minha tarefa, muito mais do que fazer com que os alunos vejam em um repositório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é tentar estimular neles uma compreensão sobre a determinada temática, seja direitos fundamentais, teoria ou controle de constitucionalidade, para que, dali, eles possam desenvolver as suas próprias interpretações e críticas às decisões mais recentes da Corte, à luz da forma como essas problemáticas foram construídas na própria Corte e no campo da dogmática um pouco mais crítica. 

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