Violência contra a mulher, danos morais e protesto da sentença penal

A temática da reparação de danos às mulheres vítimas de violência doméstica está em constante evolução, sobretudo em âmbito jurisprudencial. Contudo, a prática forense vem revelando que mesmo após o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça do caráter in re ipsa do dano moral, caracterizado a partir de uma situação de violência doméstica e familiar contra a mulher[1], inúmeros são os desafios a serem superados.

Em parcela significativa dos casos, o quantum arbitrado a título de danos morais não é efetivamente recebido pela ofendida. O agressor, por sua vez, tampouco é instado  embora o Código de Processo Civil preveja inúmeras de coerção ao devedor  a pagar a indenização arbitrada pelo Poder Judiciário em sentença penal condenatória.

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Em uma perspectiva processual civil, não se pode ignorar que, seja nas fases sincretista, autonomista e instrumentalista,[2] seja nas três primeiras ondas renovatórias de acesso à justiça[3], inexiste uma preocupação evidente com o direito das mulheres, em especial no tocante às vítimas de violência doméstica.

Não à toa, somente a partir do ano de 2019, com o advento da Lei 13.894, o legislador introduziu dispositivos esparsos no CPC objetivando conferir regramento específico aos feitos envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica (v.g., prioridade de tramitação, intervenção obrigatória do parquet etc.).

É justamente diante deste cenário que propusemos, neste artigo, uma reflexão inicial sobre a aplicação de um dos institutos clássicos do direito ao enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher: o protesto.

Em âmbito constitucional, o artigo 245 da Constituição garante a responsabilização civil do autor do fato penal criminoso cometido em contexto de violência doméstica e familiar, regramento que também encontra eco no Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente na Convenção Interamericana  Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e na Declaração da ONU sobre os Princípios Básicos de Justiça Relativo às vítimas de criminalidade.

No campo infraconstitucional, o artigo 91, inciso I, do Código Penal, prevê dentre os efeitos da sentença, a obrigação de indenizar pelos danos causados, enquanto o artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, prevê, dentre as incumbências do juízo ao prolatar uma sentença penal condenatória, a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração penal, considerando os prejuízos da vítima.

Além disso, segundo o Superior Tribunal de Justiça, é justamente o referido dispositivo do CPP, quando interpretado em conjunto com o art. 515, inciso VI, do CPC, que confere à vítima um título executivo judicial com liquidez,[4] um dos pressupostos do protesto segundo o próprio Corte Cidadã.[5] 

Portanto, a ideia central deste texto é uma só: defender a possibilidade do encaminhamento para protesto da sentença penal condenatória transitada em julgado que reconhece danos morais em favor das mulheres vítimas de violência doméstica.

Recentemente, Rogério Rudiniki Neto e Thimotie Aragon Heemann sustentaram, aqui no JOTA, a competência do juizado especial cível para cumprimento de sentença do valor fixado a título de danos morais por ocasião da condenação criminal em casos de inexistência de JVDF na Comarca.[6] 

Se, por um lado, esse é um importante caminho para facilitar o acesso à justiça e propiciar que essas mulheres em situação de vulnerabilidade que compareçam perante o Judiciário para buscar a tutela de seus direitos sem a necessidade de dispêndio com honorários advocatícios, por outro lado, conforme mencionado an passant na introdução deste texto, o processo de execução ainda se apresenta como um grande gargalo da prestação de tutela jurisdicional[7].

Justamente por conhecer as deficiências da fase de execução, o CPC de 2015 trouxe algumas inovações em relação ao direito pretérito, dentre elas a possibilidade de encaminhar para protesto a sentença transitada em julgado, tratando-se de mais um mecanismo coercitivo para propiciar o adimplemento da dívida.[8] Segundo o artigo 517 do CPC, a decisão judicial transitada em julgado pode ser levada a protesto depois de transcorrido o prazo para pagamento voluntário estabelecido no artigo 523 do CPC.

Ou seja, o protesto da sentença condenatória pressupõe:

  1. o trânsito em julgado;
  2. uma atuação proativa do credor, onerado com a propositura do cumprimento de sentença;
  3. a intimação do devedor para pagar o débito no prazo de 15 (quinze) dias úteis;
  4. o decurso do prazo para pagamento voluntário da dívida;
  5. o requerimento de certidão pelo credor, a qual deverá ser apresentada por ocasião do protesto (art. 217, §§ 1° e 2°, do CPC); e, por fim,
  6. a prática dos trâmites burocráticos e cartorários inerentes a qualquer protesto.[9]

Como se percebe, trata-se de um caminho longo e tortuoso que, a par de eventuais críticas acadêmicas que possam ser levadas, talvez faça sentido para as relações civis em geral. É um percurso que impõe ao credor uma série de ônus, dos quais deverá se desincumbir para protestar a dívida. Esses requisitos, entretanto, são incompatíveis com a situação de especial vulnerabilidade das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

Inicialmente, lembramos que a Resolução 40/34 da ONU, aprovada em 1985, e que estabelece princípios e diretrizes sobre o direito a recurso e reparação para vítimas, coloca o(a) ofendido(a) em posição relevante do processo penal, estabelecendo direitos, dentre os quais, o acesso à justiça e o direito à rápida restituição e reparação, cabendo ao Estado “garantir às vítimas vias de recurso eficazes, nomeadamente para efeitos de reparação”, inclusive atinente a “danos morais”.

Além disso, a Convenção de Belém do Pará, incorporada ao nosso ordenamento jurídico com status supralegal,[10] estabelece que os estados devem adotar “por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a (…) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar a mulher sujeitada a violência tenha acesso a restituição, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes.” (artigo 7º, ‘g’).

Logo, não se revela convencionalmente adequado que os mecanismos criados pelo Estado para garantir que as mulheres vítimas de violência doméstica sejam indenizadas por seus agressores caracterizem ônus excessivos e desarrazoados.

Além disso, normas nesse sentido ocasionarão um impacto desproporcional às mulheres vítimas de violência doméstica[11], na medida em que embora aparentemente neutras enquanto previstas no CPC, se aplicadas às mulheres vítimas de violência doméstica credoras de um dano moral reconhecido em sentença penal, estas não poderão, por consequência, ter acesso à indenização a que fazem jus em razão das barreiras econômicas, culturais e educacionais que acabam por materializar hipótese de discriminação indireta[12].

Pelas razões expostas, e a partir de um duplo controle de constitucionalidade e convencionalidade, é plenamente possível afirmar que os requisitos de: a) ajuizamento prévio do cumprimento de sentença; b) intimação do devedor para pagamento e; c) decurso do prazo para adimplemento voluntário não se aplicam às mulheres e meninas vítimas de violência doméstica, sob pena de ocasionar um impacto desproporcional.

O raciocínio defendido por estes autores tampouco importará em prejuízo ao agressor, uma vez que i) o contraditório já foi amplamente resguardado no processo penal em que proferida a condenação; ii) na ação penal o então réu foi citado pessoalmente e pôde dar sua versão em juízo; e iii)  houve intimação pessoal acerca da sentença e do trânsito em julgado, notadamente porque o réu é intimado para o início do cumprimento da pena.

Essas garantias são mais amplas do que aquelas fornecidas em âmbito cível pelo CPC, e o agressor tem pleno conhecimento acerca do quantum devido a título de danos morais. Soma-se a isso o fato de que embora o CPC exija, para o protesto, o decurso do prazo para pagamento voluntário da dívida, mesmo depois de transitada em julgado a decisão que constitui o título executivo judicial, este requisito não é estabelecido para títulos formados em procedimentos cercados de menos garantias.

O protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, nos termos do artigo 1° da Lei 9.492/97. Assim, o protesto tem origem no Direito cambiário e surgiu como forma de proteção da confiança e publicização de atos relativos aos títulos de crédito.[13] Neste ramo do Direito, não se exige a prévia propositura da ação de execução. Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a aplicabilidade do protesto aos feitos envolvendo execuções fiscais.[14]

Ainda, e a título argumentativo, lembramos aos leitores que as instituições financeiras também podem abalar o crédito de seus supostos devedores, mediante inscrição em cadastro de inadimplentes, sem a necessidade da propositura de qualquer ação[15].

É verdade que desde o advento do CPC 2015, ocorreram mudanças significativas, em especial no tocante à concessão de tutelas provisórias. Contudo, ainda são reservados aos conglomerados econômicos procedimentos extremamente invasivos sobre a esfera jurídica alheia, inclusive dispensando autorização judicial para tanto (v.g., a possibilidade de execução extrajudicial em alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, nos termos dos artigos 26 a 27 da Lei n° 9.514/97, o que já foi reconhecido como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal).[16]

Logo, é possível afirmar, diante do cenário posto, que quando há interesses considerados relevantes sob o aspecto político ou econômico, o ordenamento jurídico prevê mecanismos céleres e desburocratizados para cobrança de dívidas, dispensando, inclusive, a necessidade de intervenção judicial.

A questão que remanesce é: o que justifica a criação de burocracias e empecilhos para que mulheres vítimas de violência doméstica possam protestar a sentença penal condenatória que reconheceu lhes ser devida indenização por danos morais?

Em nossa opinião, não deve recair unicamente sobre essas vítimas, hipervulneráveis segundo o STJ,[17] o ônus de executar esse valor indenizatório reconhecido na esfera criminal. É preciso que o Estado ofereça vias formais, desburocratizadas e já admitidas em outros ramos do direito (cambiário, bancário, etc).

A esse respeito, sem prejuízo de reflexões mais aprofundadas, podem-se pensar em duas soluções.

A primeira seria o juízo da execução penal de plano oficiar o cartório de protestos a fim de que a dívida seja protestada, o que poderia advir de eventual resolução do Conselho Nacional de Justiça, regulamentando o artigo 245 da Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos.

Uma segunda solução seria a atuação do parquet, a partir de procedimento administrativo, com expedição de ofício para o cartório de protestos, o que igualmente poderia ser regulamentado pelo CNMP, ou ainda, localmente a partir da celebração de convênio entre o estado e o respectivo Ministério Público. Esta última alternativa já ocorre em alguns estados da federação envolvendo a viabilização do protesto da pena de multa.

A participação do parquet se justifica porque “além do interesse privado da vítima na reparação, existe outro interesse de ordem pública, o qual legitima e autoriza a atuação do Ministério Público na hipótese versada”.[18] Contudo, deve-se respeitar a autonomia da vítima, que é titular do crédito, colhendo-se seu desejo em vê-lo protestado.

Lembramos que incumbe ao órgão ministerial a execução da sentença condenatória quando a vítima for pobre (artigo 68 do CPP). A inconstitucionalidade progressiva da norma já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, oportunidade em que foi definido que enquanto a Defensoria Pública não for estruturada, o parquet mantém sua legitimidade.[19] 

Além disso, embora não seja o credor da pena de multa, que são destinadas aos respectivos fundos penitenciários, o parquet é o principal legitimado para sua execução, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal.[20] Seria possível, portanto, a adoção do mesmo raciocínio em benefício da vítima[21], a qual, ao contrário do Estado, não conta com um corpo jurídico próprio, preenchido por profissionais altamente qualificados e selecionados mediante concurso público.

No fim das contas, a ideia defendida neste texto materializa uma desobstrução do acesso à justiça, nos termos estritamente propostos pela Recomendação Geral 35 do Comitê CEDAW (ONU) sobre o acesso das mulheres à justiça[22]. Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça reconhece que o protesto é um “poderoso instrumento a serviço do credor[23] e, em um sistema no qual “a reparação do dano deve ser uma preocupação de todo o meio social, não estando mais adstrita unicamente à esfera de interesse patrimonial do indivíduo lesado pelo crime[24]”, inexistem empecilhos para transportar in utilibus e aplicar o instituto do protesto em prol de mulheres vítimas de violência doméstica.

Até a próxima!


[1] STJ, REsp 1.643.051/MS, Rel. Min.Rogerio Schietti Cruz, julgado em 28/02/2018.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 8. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 386-90.

[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

[4] STJ, REsp 1.585.684, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 09/08/2016.

[5] STJ, AgRG no REsp 967.683, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/04/2016.

[6] HEEMANN, Thimotie Aragon e NETO, Rogério Rudiniki. Execução de danos morais fixados em caso de violência doméstica contra a mulher. JOTA, 21 nov. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/execucao-de-danos-morais-fixados-em-caso-de-violencia-domestica-contra-a-mulher.

[7] Tema amplamente debatido no Justiça em números no CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf. Acesso em: 04/02/2025.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. vol. II. São Paulo: RT, 2015 p. 898.

[9] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: execução. 16 ed. rev. reform.e ampl. São Paulo: RT, 2017. p. 457

[10] STF, RE 466343, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 03/12/2008

[11] A teoria foi trazida ao Brasil pelo então Ministro do STF, Joaquim Barbosa, que apresentou a ideia como “toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas” (GOMES, Joaquim Barbosa. Ação afirmativa e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.24). O empreendimento teórico do impacto desproporcional já foi aplicado pelo STF em diversas oportunidades. Apenas a título de exemplo: a) ADI 1946, Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 03/04/2003 e; b) ADPF 291, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 28/10/2015.

[12] A esse respeito: “A necessidade de a vítima, seu representante legal ou seus herdeiros acionarem a jurisdição civil (art. 63, CPP), seja para execução do valor líquido de indenização mínima fixado no édito condenatório seja para liquidação dos danos totais gerados pelo crime, acarreta maior demora na satisfação da reparação que lhe é devida, prolongando nela os traumas e impactos psicológicos negativos sofridos, eis que terá de reviver e expor fatos e sentimentos ligados ao evento danoso uma vez mais” (BARBOSA, Fernanda Proença de Azambuja. O protesto da sentença condenatória como meio efetivo de reparação às vítimas de criminalidade, no prelo.)

[13] COELHO, Fábio Ulhoa. Títulos de Crédito: uma nova abordagem. 2 ed. rev e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024. p. 112

[14] STJ, REsp 1.686.659, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 11/03/2019.

[15] Essas inscrições muitas vezes geram demandas declaratórias de inexistência de débito cumulada com a obrigação de retirada do nome do consumidor do cadastro de inadimplentes e pedido de indenização por dano mora. Nesse aspecto, não é a toa que, em 31/10/2024, dentre os 15 maiores litigantes no polo passivo estavam 7 instituições bancárias. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-litigantes/. Acesso em: 04/02/2025.

[16] STF, RE 860631, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 26/10/2023.

[17] STJ, RHC 100.446, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 27/11/2018.

[18] Idem cit. nº 14.

[19] STF, RE 135328, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/06/1994.

[20] STF, ADI 3150, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13/12/2018.

[21] Idem cit. nº 14

[22] O documento confeccionado pelo Comitê onusiano pode ser consultado em: https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf Acesso em 04.02.2025

[23] STJ, REsp n. 750.805, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julgado em 14/02/2008.

[24] Idem cit. nº 14

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