Atesta CFM: entre a regulação da ética profissional e a defesa da concorrência

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu Inquérito Administrativo para apurar representação formulada pelo Movimento Inovação Digital (MID) contra o Conselho Federal de Medicina (CFM), tendo por objeto a Resolução CFM 2.382/2024, que obriga que a emissão de atestados médicos digitais ocorra exclusivamente por meio da sua plataforma Atesta CFM ou sistemas a ela integrados.[1]

O caso levanta questões em torno da relação entre normas exaradas por conselhos de profissões regulamentadas e a tutela da concorrência.

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Segundo o MID, a Resolução cria indevidas barreiras à entrada, impedindo o ingresso de startups nesse mercado e atrasa a inovação, além de concentrar no CFM a guarda de dados pessoais sensíveis. De outro lado, o CFM argumenta que a norma se encontra dentro do seu espectro de competências, e visa proteger o ambiente médico e os destinatários dos atestados, garantindo padrão mínimo de segurança para combate a fraudes.[2]

A Lei 3.268/1957 determina que o CFM é uma autarquia, pessoa jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. O CFM e os CRMs “são os órgãos supervisores da ética profissional” e “julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente”. STF e STJ reconhecem a natureza autárquica dos conselhos profissionais.

Portanto, ao editar a Resolução 2.382/2024, o CFM argumenta que agiu dentro de suas atribuições legais. De outro lado, desenvolvedores de soluções digitais sustentam que o Conselho fecha o mercado a outras plataformas, violando o princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição Federal) e a Lei 12.529/2011, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica.

Nesse embate, cabe lembrar que o art. 31 da Lei 12.529/2011 determina que ela se aplica “às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, (…) mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”. Dessa forma, a personalidade jurídica de direito público do CFM e sua ausência de finalidade lucrativa não o tornam per se imune à competência do Cade. Aliás, o próprio CFM já foi sancionado pelo Cade por práticas anticompetitivas, como promover tabelas de preços médicos[3] e restringir o uso de cartões de desconto em consultas médicas.[4]

No entanto, merece destaque a alegação de que o CFM, no caso do Atesta CFM, estaria atuando no exercício de seu poder normativo.

Em primeiro lugar, vale lembrar que a própria jurisprudência do Cade já decidiu que o órgão não é instância revisora da regulação setorial, embora, em regra, as competências regulatórias e concorrencial sejam complementares (e não excludentes).[5] Se, de um lado, o fato de um setor ser regulado não o torna imune à legislação concorrencial; de outro, o regulador setorial pode, desde que tenha atribuição legal para tanto, normatizar exaustivamente um tema, situação na qual cessará espaço à atuação do Cade.

No caso concreto, também poderá ser relevante examinar as (des)semelhanças entre autarquias corporativas e associações privadas de profissionais liberais (como as associações de especialidades médicas), no que tange às suas atribuições institucionais. O fato de ser reconhecido ao CFM o status de entidade autárquica lhe confere certas prerrogativas que entidades associativas não possuem, como o exercício do poder de polícia.

Caberá então perquirir se a emissão de atestados médicos digitais seria uma atividade econômica (como sustentam as startups que pretendem competir com o Atesta CFM), sendo alcançada pelos incisos I, III e IV do art. 4º da Lei de Liberdade Econômica, ou se essa função estaria atrelada à fiscalização da atuação ética dos médicos, de modo que o CFM teria atribuição legal para editar a Resolução no exercício da sua competência normativa em matéria de polícia administrativa da profissão.

Diante deste cenário, o Cade precisará se posicionar sobre se tem competência para afastar a aplicação da resolução do CFM por considerá-la anticompetitiva, uma vez que não há hierarquia entre autarquias federais. Usualmente, em situações de regulação setorial normativa reputada anticompetitiva, o papel da entidade concorrencial cinge-se à advocacia da concorrência, ou seja, a promover medidas que visem à revisão do ato pelo próprio órgão emissor ou pelo Poder Judiciário.

De todo modo, a relação entre Cade e CFM não é o único tópico jurídico em discussão. Há também temas relacionados à proteção de dados e às atribuições legais de órgãos da Administração Pública federal relacionados à saúde. Em ação judicial que visa à nulidade da Resolução CFM, foi deferida liminar para suspender os seus efeitos.[6]

O juiz entendeu que “ao editar ato infralegal que obriga a todos os profissionais médicos a utilizarem o sistema ‘Atesta CFM’,  o Conselho Federal de Medicina, ao menos em exame de cognição sumária, invadiu competência legislativa da União Federal, por seus Órgãos (MS, ANVISA,ANPD), ao prever o uso imperativo de plataforma criada por si, em desbordo à sua competência, repita-se, e sem a participação dos demais atores regulamentadores e certificadores, o que pode representar concentração indevida de mercado certificador digital por ato infralegal da autarquia, fragilizar o tratamento de dados sanitários e pessoais de pacientes, bem como a eliminação aparentemente  irrefletida dos atestados e receituários médicos físicos, quando se sabe que a realidade de médicos e municípios brasileiros exige uma adaptação razoável e com prazos mais elevados para a completa digitalização da prática médica”.

A disciplina jurídica da digitalização dos atestados médicos deve priorizar a proteção dos dados pessoais e o combate às fraudes. Resta saber se o ordenamento jurídico autoriza o CFM a, na persecução desses objetivos, afastar a disciplina da concorrência.

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A opinião esposada neste artigo é exclusivamente dos autores, não traduzindo posicionamento da Fundação Getulio Vargas


[1] Art. 2º. “Os atestados médicos, inclusive de saúde ocupacional, deverão ser emitidos obrigatoriamente por meio da plataforma Atesta CFM ou por sistemas integrados a esta, e preferencialmente de maneira eletrônica

[2] Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), 21% dos atestados verificados pela entidade são falsos. Informação disponível em Link. Acesso em 01/02/2025.

[3] CONJUR, Entidades médicas são multadas pelo Cade em R$ 2,7 mi por tabelar serviços, 16/10/2014. Disponível em   Conjur, acesso em 31/01/2025.

[4] CADE. Cade multa entidades médicas por tentarem impedir uso de cartões de descontos em consultas: tribunal concluiu que condutas do CFM e do Cremesp causaram prejuízos aos usuários do “Cartão de Todos” no estado de São Paulo. Disponível em link, acesso em 01/02/2025.

[5] Em seu voto no ato de concentração 08012.004550/99-11, o Conselheiro Celso Campilongo afirmou que “o CADE não é instância reguladora nem tampouco esfera administrativa de julgamento da regulação de terceiros; é, isto sim, órgão de adjudicação adstrito à matéria concorrencial” (p. 5).

[6] Justiça Federal. 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Processo n. 1087770-91.2024.4.01.3400, decisão proferida em 04/11/2024.

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