Lei de Responsabilidade Fiscal: 25 anos de conquistas, desafios e lições

Há 25 anos, no dia 4 de maio de 2000, era publicada a Lei Complementar 101, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Um marco para o Direito Financeiro e para as finanças públicas do país.

A Constituição de 1988, ao dispor sobre normas gerais em matéria de finanças públicas, determina, em seu artigo 163, que lei complementar disporá sobre finanças públicas e os vários temas a elas conectados e correlatos, como dívida pública, concessão de garantias, emissão e resgate de títulos, câmbio e tantos outros.

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Em cumprimento à determinação constitucional, veio a LRF, pouco mais de uma década após a promulgação da Constituição. Trata-se de uma lei que precisou superar difíceis obstáculos para ser aprovada, por tratar de questões sensíveis envolvendo interesses federativos frequentemente conflitantes. Ainda assim, por meio de um processo democrático, com ampla consulta à sociedade e sólida articulação política, promoveu um avanço significativo na normatização das finanças públicas.

É importante relembrar o contexto logo após a promulgação da Constituição de 1988, em que o país passava por fortes crises em matéria de organização das finanças públicas, com moeda absolutamente instável e corroída por uma inflação extremamente alta, que não conseguia ser debelada por sucessivos e ineficazes planos econômicos, deixando um rastro de desorganização financeira crônica nas finanças públicas.

O Plano Real, implementado em 1994, ao substituir o cruzeiro real (CR$) pelo real (R$), estabilizou a moeda e representou o primeiro grande passo para a reorganização das finanças públicas. Essa estabilização criou as condições necessárias para estruturar instituições e consolidar o arcabouço jurídico indispensável a um crescimento econômico consistente e sustentável no país.

Nesse contexto surgiu a Lei de Responsabilidade Fiscal, como a lei complementar destinada a estruturar as finanças públicas nacionais, enfatizando a necessidade de um sistema de normas que promovessem a gestão fiscal responsável para todos os entes da federação, poderes e órgãos da Administração Pública.

Estabeleceu pilares fundamentais para assegurar a solidez das contas públicas, como o planejamento, a transparência e o controle das despesas sensíveis para a sustentabilidade fiscal, como as despesas com pessoal, seguridade social, renúncia de receitas e o endividamento público, criando normas de prevenção a riscos fiscais e de instrumentos sancionatórios.

Muito elogiada por sua técnica apurada, coesão, organização e sistematização, a LRF foi capaz de manter a higidez das contas públicas por muitos anos, tendo sua primeira alteração ocorrida apenas em 2009 — e exclusivamente para aprimorar o sistema de transparência fiscal

No início da década de 2010 começam a se intensificar as notícias de tentativas de desvio nos rumos de um período de crescimento com responsabilidade fiscal, surgindo as primeiras notícias de uso de “contabilidade criativa” para evitar confrontos com a legislação que começava a incomodar os gestores públicos.[1]

O auge se deu com denúncias envolvendo as chamadas pedaladas fiscais, por meio de operações que vieram a ser caracterizadas como violadoras do artigo 36 da LRF e que foram uma das razões que fundamentaram o impeachment da então presidente Dilma Rousseff.[2]

Um momento em que a Lei de Responsabilidade Fiscal teve seu mais duro teste de resistência e saiu fortalecida por ver um de seus dispositivos superar uma acirrada disputa política e permanecer intocada.

No entanto, a força da crise não demorou a aparecer com maior intensidade, e a rigidez das normas de gestão fiscal responsável, tão importantes para dar segurança jurídica aos agentes econômicos, gestores públicos, sociedade e mercado, começou a sofrer ataques que se intensificavam cada vez mais.

Exceções, falhas, lacunas, criatividade contábil, leniência do sistema de fiscalização e flexibilizações interpretativas foram se acumulando, e os “furos no casco” começaram a aparecer. Entes da federação passaram a apresentar sinais de insolvência, apesar da rigidez das normas que, se respeitadas, impediriam que esse estágio fosse alcançado.

As flexibilizações tornaram-se inevitáveis, abrindo espaço para renegociações de dívidas e criação do regime de recuperação fiscal (Lei Complementar 159/2017).

Em 2016, o Novo Regime Fiscal, mais conhecido como regime do teto de gastos (EC 95/2016) tenta recompor a rigidez na limitação aos gastos públicos, com regras simples, mas genéricas, pouco específicas e excessivamente longa, evidenciando imprecisões que não tardariam a exigir seu aperfeiçoamento.

Contudo, a pandemia de 2020 derrubou as tentativas de manter a rigidez da LRF. Ainda que temporariamente, a mutilação da LRF foi significativa, com sucessivas emendas constitucionais e leis complementares entremeando normas de duração temporária com outras perenes, dificultando a retomada da identidade original do regime estabelecido de forma organizada, sistematizada e coesa pela LRF.

A Lei Complementar 200, de 2023, após a turbulência provocada pela pandemia, instituiu o Regime Fiscal Sustentável — conhecido como novo arcabouço fiscal — e trouxe uma proposta de gestão fiscal responsável com maior flexibilidade, buscando viabilizar a retomada do crescimento econômico sem comprometer o controle dos gastos públicos e mantendo a sustentabilidade da dívida.[3]

Ao longo desses 25 anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal cumpriu um grande papel, mantém-se como um sustentáculo da responsabilidade na gestão fiscal e tem uma longa e importante missão pela frente, especialmente em tempos de reformar que vão impactar fortemente as finanças públicas da federação, como a reforma fiscal implantada a partir da Emenda Constitucional 132/2023.[4].

Não obstante todo esse tempo decorrido, há ainda importantes lacunas não supridas.

É o caso, por exemplo da instituição do Conselho de Gestão Fiscal, previsto no artigo 67, com a função de fazer o acompanhamento e avaliação da política e da operacionalidade da gestão fiscal, harmonizar e coordenar os entes da federação, disseminar práticas de qualidade no gasto público e adotar normas de consolidação das contas públicas, padronização das prestações de contas, relatórios e demonstrativos. Nunca instalado, continua sendo provisoriamente substituído pela Secretaria do Tesouro Nacional pelo permissivo do artigo 50, § 2º, da LRF.

Também é fundamental a modernização da Lei 4.320/1964, com mais de 60 anos de idade, e que provisoriamente cumpre as funções da lei complementar exigida pelo artigo 165, § 9º da Constituição. Uma medida que em muito ajudaria a gestão pública, dada a intensa relação de dependência entre essa norma e a LRF. Seus projetos, no entanto, ainda dormem nos escaninhos do Congresso Nacional.

Muito ainda precisa ser feito. Mas é sempre importante lembrar que, se a LRF não alcançou todos os efeitos esperados, isso se deve mais ao descumprimento de suas normas do que a eventuais falhas, lacunas ou imperfeições. Fica, assim, a principal lição — tantas vezes repetida — de que o essencial é cumprir a lei. Aperfeiçoar a LRF é necessário, mas, antes de tudo, é fundamental que ela seja efetivamente levada a sério.  


[1] Vide texto Carnaval financeiro: contas ‘maquiadas’ não vão tornar nosso país mais bonito, publicado em 2013 e que integra o livro CONTI, José Mauricio. Levando o direito financeiro a sério. A luta continua. 3ª edição São Paulo: Blucher Open Access, 2019. Disponível gratuitamente em https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023), pgs. 387-390.

[2] Vide nota de rodapé 1, pgs. 423-428, texto Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment

[3] CONTI, José Mauricio. Novo ‘arcabouço’ e expectativas qe não seja ‘calabouço’ da gestão fiscal responsável, coluna publicada em 4.5.2023 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/novo-arcabouco-e-expectativas-que-nao-seja-calabouco-da-gestao-fiscal-responsavel).

[4] O voo cego da reforma fiscal, coluna publicada em 20.7.2023, e parte integrante do livro CONTI, José Mauricio. A luta pelo Direito Financeiro. 2ª edição. São Paulo: Blucher, 2024. Disponível gratuitamente em https://www.blucher.com.br/a-luta-pelo-direito-financeiro-9786555503326), pgs. 47-53.

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