O papa pode ser considerado chefe de Estado?

O 76° conclave da história da Igreja, iniciado nesta quarta-feira (7), elegerá o 267° sucessor do apóstolo Pedro. Esse processo tem implicação pouco conhecida: a escolha do novo pastor da Igreja Católica converge com a eleição do chefe do Estado Pontifício. É sobre esse aspecto das atribuições papais que trata este artigo.

Considerando a dimensão territorial do Vaticano (0,44 km²) e a população (estimada em 882 habitantes), não parece apropriado falar na existência de Estado à luz do que preceitua o Direito Internacional. Cuida-se, no entanto, de situação atípica que encontra fundamento na história, aprovada pela cristandade e pelo testemunho das nações.

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Nessa linha de raciocínio, o papa possui o poder espiritual (chefe da Igreja Católica Romana) e temporal ou político (chefe do Estado Pontifício). Essa condição tem atrás de si longa história. A personalidade da Sé Apostólica confundia-se, no passado, com a dos Estados da Igreja (40 mil km²), território situado na parte central da Itália e sob jurisdição papal entre 754 e 1870.

A unificação italiana redundou na ocupação dessa base territorial em 1870. A situação, entretanto, não alterou a missão da Igreja que, pela própria natureza, tem estatura internacional desatrelada desse ou daquele Estado.

Como forma de compensar a anexação, o parlamento italiano aprovou, em 1871, a Lei das Garantias[1]. Esse diploma atribuía ao papado renda incessível proveniente do orçamento italiano. Além disso, assegurava a soberania e a inviolabilidade do Sumo Pontífice. Inobstante essas iniciativas, a sociedade internacional protestou de forma contundente contra a espoliação do território e a incameração dos bens eclesiásticos. E mais, as potências da época continuaram acreditando seus embaixadores junto ao bispo de Roma.

Esse o quadro, Itália e Santa Sé celebraram, em 1929, tratado, acompanhado de quatro anexos – fixação do território; imóveis que gozam de extraterritorialidade; imóveis isentos de expropriação e de impostos; e convênio financeiro–,[2], e concordata no Palácio de Latrão, em Roma. Referidos atos restabeleceram, pela ótica do direito das gentes, o poder temporal do papa. Os chamados Acordos de Latrão põem termo à Questão Romana, nascida da anexação dos Estados pontifícios ao então reino da Itália (Casa de Savoia).

Com eles, foi reconhecida a soberania da Santa Sé no domínio internacional como atributo inerente à sua natureza, em conformidade com a tradição e com as exigências de sua missão no mundo. Confirmou-se, ainda, sua plena propriedade e jurisdição soberana sobre a Cidade do Vaticano, território considerado neutro e inviolável. Os documentos preveem, por igual, que os possuidores de residência estável na Cidade do Vaticano estão sujeitos à jurisdição da Santa Sé, nos termos em que especifica.

No tocante à matéria penal, a Itália velará, a pedido da Sé, para que os crimes não contemplados no Código de Direito Canônico e que eventualmente venham a ser cometidos na Cidade do Vaticano sejam julgados em território italiano (artigo 22 do Tratado). Caso, por exemplo, de Ali Agca, que atentou contra a vida do papa João Paulo II na Praça de São Pedro em 1981.

O acusado foi julgado por tribunal italiano e condenado à pena de prisão perpétua. No ano de 2000, ele foi perdoado pelo papa e pelo presidente da Itália sendo encaminhado para Turquia, sua terra natal. Lembro, ainda, que o Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica não se ocupa de matéria prisional. O termo, no caso, advém de penitência. Assunto próprio da Igreja.

Para além disso, assegurou-se o direito de legação ativo e passivo, segundo as regras do Direito Internacional. O referido tratado lateranense indica, também, que a Itália reconhece o Estado da Cidade do Vaticano, sob a soberania do Sumo Pontífice.

Garantiu-se, desse modo, a completa independência da Santa Sé e tratou-se de evitar que o Pontífice Romano fosse súdito de algum país. Cuida-se de Estado “atípico” que existe como garantia da sua independência real e visível para o exercício de sua atividade de governo em prol da Igreja e do trabalho pastoral.

Esse sujeito de Direito Internacional não compreende as características ordinárias de uma comunidade política. Dessa forma, a Santa Sé não possui coletividade própria para cujo serviço fora constituída. Inobstante ter uma lei de cidadania[3], inexiste laço jurídico político entre os residentes e a Santa Sé.

Há, tão só, vínculo funcional com todos os detentores de passaporte pontifício: Santo Padre, cardeais residentes na Cidade do Vaticano, diplomatas da Santa Sé, determinados residentes em razão das funções exercidas e membros da Guarda Suíça, corpo militar de defesa historicamente responsável pela segurança do papa.

A solução lateranense só não é imaculada pelo fato de, por vezes, induzir em erro o desavisado, já que ao menos quatro entidades têm sido mencionadas como possuindo, de alguma forma, personalidade internacional: Santa Sé (poder espiritual), Estado da Cidade do Vaticano (poder temporal), Vaticano (base física do Estado) e papa (Lei das Garantias). Veja que a Santa Sé tem status de Estado Observador Permanente junto à Assembleia Geral da ONU[4].

O Estado da Cidade do Vaticano é, por motivos históricos, membro de duas agências especializadas da organização: a União Postal Universal (UPU) e a União Internacional de Telecomunicações (UIT). No setor de embaixadas em Brasília, a tabuleta de identificação registra: Embaixada da Santa Sé. Localizada atrás da Catedral, o local acolheu, por exemplo, solicitantes de asilo diplomático no período de ausência de democracia no Brasil.

Em resumo, é com a Santa Sé que os Estados mantêm relações diplomáticas. Nosso relacionamento, por exemplo, data de 1829, com a representação elevada a categoria de embaixada em 1919.

A Sé Apostólica mantém vínculo diplomático com 180 países de diferentes inclinações religiosas, por exemplo, Israel (judaísmo) e Irã (islamismo), Estados confessionais. O representante papal é chamado de núncio apostólico e possui, com base em sólida norma costumeira reconhecida pelo Congresso de Viena (1815), o privilégio de precedência sobre os demais embaixadores.

Trata-se, assim, do decano do corpo diplomático. O núncio exerce dupla missão: legado pontifício com o encargo de tornar mais firmes os vínculos com as Igrejas particulares locais e representante do papa encarregado de promover e estimular as relações entre a Sé Apostólica e as autoridades do Estado.

Em 2023, foi promulgada pelo papa Francisco a nova Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano[5]. O texto reitera o caráter singular da Santa Sé, que não se vincula a nenhum interesse nacional, mas que busca o bem comum de toda a família humana.

Esse Estado “atípico” tem longa tradição de trabalho em prol da manutenção da paz internacional. Considere, por exemplo, as Bulas Inter Coetera I e II (Espanha e Portugal [1493]); a encíclica Pacem in Terris (1963), do excelso João XXIII; a atuação arbitral no caso do Canal de Beagle (Argentina e Chile [1978]).

Some-se a isso a circunstância de participar em inúmeras organizações internacionais como membro fundador (Agência Internacional de Energia Atômica) (AIEA); membro (Organização para a Proibição de Armas Químicas [OPAQ]); e observador (Organização das Nações Unidas [ONU], Organização Internacional do Trabalho [OIT] e Organização Mundial de Saúde [OMS]).

Trata-se, dessa forma, da pessoa de direito público externo cuja capacidade jurídica mais se aproxima daquela própria dos Estados soberanos. Há, no entanto, quem atribua a essa condição singular ares de verdadeiro anacronismo, que deveria ser reconsiderado. Sustentam, em geral, que outras comunidades religiosas não usufruem da mesma situação. Esse reparo, todavia, não é consensual.

As religiões monoteístas milenares de matriz abraâmica, por exemplo, não veem nenhum inconveniente. Sobre isso, reitera-se que pesa em favor da condição da Santa Sé a prática histórica consolidada.

As demais orientações religiosas têm, em geral, a proteção do ordenamento jurídico interno nos países em que estão instaladas. Costumo dizer, que, no Brasil, o representante da Santa Sé, pelos motivos enunciados, trata dos seus interesses no Ministério das Relações Exteriores; já os representantes de outras confissões religiosas cuidam dos seus no Ministério da Justiça. Enfim, nenhuma crença está desassistida

Resta-nos aguardar que o conclave, com divina inspiração e sabedoria, escolha a pessoa certa para conduzir os desígnios da Igreja e os interesses da Santa Sé. Em breve, veremos a fumaça branca, ouviremos o anúncio tradicional habemus papam feito pelo protodiácono do Colégio dos Cardeais e receberemos a bênção Urbi et Orbi concedida pelo novo pontífice da Varanda das Bênçãos na Basílica de São Pedro.

Por fim e em resposta à questão inicial, estamos em que o papa é um chefe de Estado sui generis.

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O presente texto deriva, em essência, de capítulo do meu livro Direito das relações internacionais (São Paulo: Contexto, 2022). Implementei atualizações, supressões e acréscimos devidos


[1] Encontrável em: https://www.150anni.it/webi/_file/documenti/risorgimento/chiesareligione//nuovaitaliaechiesacattolica/guarentigie/guarentigie01.pdf

[2] Encontráveis em: https://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documentsrc_seg-st_19290211_patti-lateranensi_it.html. Acesso em: 06/5/2025.

[3] Trata-se da Lei CXXXI, de 2011, emitida pelo papa Bento XVI. Encontrável em: https://www.vaticanstate.va/phocadownload/leggi-decreti/Leggesullacittadinanzalaresidenzaelaccesso.pdf. Acesso em: 06/5/2025.

[4] Resolução A/58/314, de 2004. Encontrável em: https://docs.un.org/en/A/RES/58/314. Acesso em: 06/5/2025.

[5] Encontrável em: https://www.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/20230513-legge-fond-scv.html. Acesso em: 06/5/2025.

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