Há algum tempo, o direito administrativo brasileiro vem se afastando de algumas de suas características mais nitidamente francesas. A tradição fortemente dogmática e verticalizada vem cedendo espaço, gradualmente, a uma abordagem mais pragmática, orientada para a solução concreta dos problemas enfrentados tanto pela Administração Pública quanto pelos administrados.
Esse movimento manifesta-se no fortalecimento do direito administrativo como mecanismo de gestão, voltado a oferecer instrumentos adequados para o enfrentamento dos desafios contemporâneos da atuação estatal — cada vez mais plural, dinâmica e complexa[1].
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No processo de distanciamento de suas matrizes tradicionais, o direito administrativo brasileiro tem consolidado a consensualidade como paradigma relevante, refletindo um desapego à lógica da autoridade como traço essencial da função administrativa. Trata-se de uma mudança que não ocorreu de forma abrupta, mas que vem sendo delineada em três planos interligados: doutrinário, legislativo e administrativo.
O primeiro desses planos foi concretizado ainda na década de 1990, com o florescimento da chamada “doutrina da consensualidade”. Nesse contexto, professores como Odete Medauar[2], Diogo de Figueiredo Moreira Neto[3] e Patrícia Ferreira Baptista[4] foram especialmente relevantes na identificação e sistematização dessa nova racionalidade.
O professor Diogo, em particular, destacou a necessidade de ampliação dos canais de participação da sociedade no exercício da função administrativa, concebendo a consensualidade como método de decisão (no processo administrativo) e como método de operação (por meio de acordos).[5]
Ainda segundo Diogo de Figueiredo, em bases ideais, a consensualidade aprimora a governabilidade ao promover a eficiência; propicia maior controle contra abusos, fortalecendo a juridicidade; assegura a escuta de todos os interesses envolvidos, promovendo a justiça; conduz a decisões mais sábias e prudentes, ampliando a legitimidade; desenvolve a responsabilidade dos sujeitos, estimulando o civismo; e torna os comandos estatais mais compreensíveis e aceitáveis, reforçando a ordem.[6]
Nesse mesmo espírito, Carlos Ari Sundfeld formulou a conhecida distinção entre o “direito administrativo dos clipes” e o “direito administrativo dos negócios”. Este último representa um modelo ideal no qual se presume boa-fé dos particulares, os acordos são valorizados, a eliminação de custos é priorizada, a participação decisória restringe-se aos agentes estritamente necessários e os riscos são assumidos sempre que a relação custo-benefício assim o justificar.[7]
Durante algum tempo, entretanto, a doutrina da consensualidade permaneceu relativamente desconectada da realidade administrativa, ainda pautada por uma cultura institucional avessa ao diálogo e refratária à negociação como via legítima de resolução de conflitos.
Foi com o avanço de reformas normativas — voltadas a facilitar a gestão pública e conferir maior segurança jurídica aos acordos administrativos — que se iniciou, de forma mais consistente, um processo de positivação da consensualidade. Esse movimento legislativo marca o segundo plano de consolidação do paradigma consensual, sucedendo à sua formulação doutrinária.
Assim, diversas normas sinalizaram esse novo momento: a Lei 11.107/2004, ao prever o uso de arbitragem nas parcerias público-privadas; a Lei 13.129/2015, ao deixar clara a possibilidade de utilização da arbitragem pela Administração Pública; a Lei 13.140/2015, que positivou a mediação e previu a criação de câmaras administrativas em órgãos de advocacia pública; a Lei 13.448/2017, ao permitir a relicitação e a prorrogação antecipada de contratos mediante acordos; e a Lei 13.655/2018 que, ao incluir o art. 26 na LINDB, estabeleceu uma relevantíssima cláusula geral de consensualidade voltada à solução de situações litigiosas.
Outros diplomas igualmente relevantes foram a alteração do Decreto-Lei 3.365/1941, admitindo a mediação e a arbitragem já na fase administrativa da desapropriação; a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), que também incorporou cláusula ampla de solução consensual de conflitos; a Lei 14.210/2021, que introduziu a decisão administrativa coordenada na Lei de Processo Administrativo Federal; e a Lei 14.203/2021, ao consolidar o acordo de não persecução civil na Lei de Improbidade Administrativa.
Com esse arcabouço legislativo facilitador da negociação e da cooperação, configura-se, então, o terceiro plano de concretização da consensualidade: o plano administrativo. A doutrina desenvolvida nos anos 1990 passa a ganhar efetividade, refletida na prática decisória dos órgãos públicos, que reconhecem, cada vez mais, que muitos dos grandes gargalos do direito administrativo não encontram solução adequada no modelo tradicional, autoritário e unidirecional.
Ainda assim, o avanço do consenso exige cautela. A euforia em torno das soluções consensuais pode levar a distorções, retrocessos e mesmo ao enfraquecimento de princípios da Administração Pública. A chamada “consensualidade pragmática” deve encontrar limites: o respeito à legalidade, à impessoalidade, à fixação de parâmetros claros de conduta e à observância de precedentes administrativos — inclusive dos próprios acordos celebrados.
Nesse exato ponto, ganha relevo a necessidade de experiências institucionais que evidenciem como a consensualidade pode ser aplicada de forma técnica, transparente e adequadamente parametrizada.
Uma recente atuação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) ilustra esse esforço de amadurecimento: ao adotar o processo competitivo como mecanismo para viabilizar a renegociação e a transferência de concessões, a autarquia observou diretrizes previamente estabelecidas pelo Tribunal de Contas da União e estruturou uma alternativa consensual de elevada qualidade institucional.
Assim, em vez de recorrer a soluções unilaterais ou a negociações fechadas, a agência estruturou um procedimento com etapas públicas, critérios objetivos e participação de potenciais interessados. Esse modelo foi utilizado no caso da BR-163/MS e representa um avanço importante no uso de mecanismos consensuais com segurança jurídica, transparência e preservação do interesse público.[8]
A experiência da ANTT[9] mostra que o maior desafio do direito administrativo hoje não é mais afirmar a legitimidade das soluções consensuais, mas sim saber como implementá-las de forma técnica, transparente e previsível. A preocupação central passa a ser a parametrização desses acordos: definir procedimentos, critérios e limites que garantam igualdade entre os envolvidos, evitem subjetivismos e preservem o caráter público das decisões. O processo competitivo adotado pela ANTT é um ótimo exemplo de como isso pode ser feito.
Em síntese, o consenso não pode ser visto como resposta mágica para todos os entraves da Administração Pública. Embora a consensualidade traga inegáveis vantagens, é imprescindível que seu uso seja pautado por responsabilidade, critérios técnicos e autocontenção. A maturidade do modelo depende justamente de reconhecer seus limites — e de compreender que a consensualidade, longe de substituir o princípio da legalidade, deve reforçá-lo sob novas bases.
Mais do que a simples substituição da autoridade pela negociação, o que se espera do novo direito administrativo é a construção de um caminho do meio: um modelo em que a consensualidade seja exercida com previsibilidade, técnica e segurança jurídica, dentro de balizas normativas claras. Nesse sentido, a verdadeira inovação não está na celebração de acordos em si, mas na capacidade institucional de estruturá-los com responsabilidade, com regras estáveis, critérios objetivos e respeito aos valores que regem a Administração Pública. É esse modelo — dialógico, mas parametrizado — que se apresenta como o futuro desejável do direito administrativo brasileiro.
[1] Artigo elaborado a partir de palestra proferida em 22 de novembro de 2024 na Masterclass Administração Pública Sustentável, organizada pelo instituto New Law, sob a coordenação de Bruno Dubeux e Bruno Barata.
[2] MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 1992.
[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
[4] BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
[5] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 16ª ed., 2014, p. 177.
[6] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 41.
[7] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2014, pp. 145-152.
[8] Sobre o tema, conferir o artigo que inspirou essa breve reflexão, a pedido do amigo e coordenador da coluna, Bruno Dubeux: https://agenciainfra.com/blog/opiniao-processo-competitivo-no-consensualismo-o-acerto-da-antt/ , acesso em 17 de abril de 2025. O artigo é de autoria de Adalberto Santos de Vasconcelos e Rafael Andrade de Vasconcelos. O leilão está previsto para o próximo dia 22 de maio de 2025: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/reestruturacao-de-contratos-de-concessao/copy_of_BR-msvia .
[9] Exemplo semelhante pode ser encontrado no acordo firmado entre o Ministério dos Transportes, o TCU e o Ministério Público Federal para viabilizar a retomada das obras da BR-101/ES. A solução consensual permitiu superar entraves históricos e reestruturar a concessão com base em premissas de interesse público, segurança jurídica e viabilidade econômica. Ver: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acordo vai permitir retomada das obras da BR-101 no Espírito Santo. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/acordo-vai-permitir-retomada-das-obras-da-br-101-no-espirito-santo. Acesso em: 17 abr. 2025. O processo competitivo está previsto para o próximo dia 26 de junho de 2026: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/reestruturacao-de-contratos-de-concessao/BR-101-ES-BA-ECO-101