100 dias de DOGE: observações para o Brasil

A criação do Department Of Government Efficiency (DOGE) foi acompanhada de muitas expectativas. Donald Trump começaria seu segundo mandato com foco no aumento da eficiência do governo. A nomeação de Elon Musk para liderar a empreitada parecia promissora: um empreendedor inovador capaz de comunicar-se em tempo real em escala global. A despeito da similaridade com outras iniciativas adotadas no passado por outros presidentes estadunidenses (Clinton, Nixon e outros) o componente tecnológico sinalizava uma importante inovação.

Transcorridos cem dias da posse de Trump, o DOGE tem se dedicado a instrumentalizar um impressionante conjunto de “ordens executivas” do novo presidente. Todas apontando na mesma direção: downsizing do governo federal, em alguns casos por meio de extinção de órgãos e noutros por meio de cortes de recursos. Nenhuma medida foi precedida por análises ou justificativas baseadas em evidências, análises de impacto, cálculos do custo-benefício ou parâmetros do gênero.

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O respeitado e admirado “administrative state”, como era conhecida a administração pública do governo federal estadunidense, começou a desmoronar em cascata. As óbvias vítimas da primeira onda foram as esperadas: cooperação técnica, política internacional, educação, saúde, meio ambiente, migração etc.

Mesmo os “bunkers” do famigerado “deep state” – o Tesouro, o Departamento de Estado, a Procuradoria, o FBI e outros – não têm sido capazes de resistir à tomada de assalto das instituições governamentais por quadros leais ao presidente. Mal se passaram três meses.

Recentemente as iniciativas têm sido mais cirúrgicas, para além dos limites do espaço estatal: escritórios de advocacia, universidades, organizações do terceiro setor, mídias variadas e empresários recalcitrantes ou não suficientemente entusiasmados, dentre outros. A combinação de ações pontuais concretas, casos exemplares e intimidação explícita têm produzido resultados em sinergia. Há quem diga que o presente estágio parece adaptar um antigo provérbio que atualmente seria escrito: “Aos amigos tudo, aos inimigos nem a lei”.

A maior novidade reside em dois campos menos abordados pela mídia, dadas sua sensibilidade e implicações: regulação e dados. Os Estados Unidos são o país desenvolvido com o aparato regulatório menos “duro” com mercados não competitivos. Esta é uma área prioritária da nova administração – e de seus apoiadores –, sob dois argumentos retóricos conhecidos: prejuízo à competitividade e inibição da capacidade de inovação.

O acesso às bases de dados oficiais, públicos e sensíveis, vem se mostrando assunto mais delicado. O desdém por salvaguardas, protocolos e normas de acesso tem esbarrado em características caras à cultura administrativa do país como privacidade, due process e decisões judiciais. Muitos indicados politicamente por Trump para cargos de direção não são quadros permanentes da máquina administrativa e alguns possuem potenciais interesses envolvidos nos negócios que dirigem.

A aliança estabelecida com o Vale do Silício faz destes dois últimos assuntos – regulação e dados – temas de interesse estratégico geopolítico globais. São temáticas cuja governança global encontra-se em debate nas Nações Unidas, nas agências multilaterais e nos principais países que relutam e resistem à tese de que a melhor regulação é nenhuma ou, no máximo, a autorregulação.

Até o momento, os anúncios de resultados do DOGE têm se amparado basicamente em três justificativas: economia de custos, redução do desperdício e combate ao que chamam de corrupção, embora muitas das alegações situem-se no âmbito das divergências programáticas, mais do que legais.

O confuso, frequentemente beligerante, relacionamento da administração com o establishment jurídico – explicável pela autossuficiência e autorreferenciamento do novo Executivo – sugere a ampliação da zona cinzenta da determinação da legalidade de atos do governo. Mas o governo se move mais rapidamente.

Quase todas as iniciativas do governo Trump 2.0 foram antecipadas no Projeto 2025, elaborado pela Fundação Heritage. Musk foi a grande novidade, juntamente com o alienamento dos quadros históricos do Partido Republicano. Trump está se movendo como no jargão atribuído a Mark Zuckerberg e outros libertários empreendedores das big techs do Vale do Silício: “Move fast and break things”.

Muitas são as lições que podem ser extraídas para o Brasil destes meses que mudaram o mundo. Sete merecem atenção especial, referentes à eficiência, burocracia, capacidades, resultados, comunicação, planejamento e democracia.

O foco na eficiência dos gastos traz um apelo irresistível para os mercados. Pouco importa se trata-se apenas de cortes indiscriminados de custos. Aos olhos dos setores que possuem uma visão minimalista do Estado, quanto menos governo, melhor, independente se no longo prazo isso possa comprometer os resultados dos negócios.

Ação coletiva não é a racionalidade que preside o posicionamento dos mercados e dos políticos que apoiam. Além disso, o foco na eficiência não substitui o conteúdo das políticas públicas orientadas para o atendimento das necessidades da população, razão de ser dos governos.

A proteção à burocracia permanente vem se mostrando insuficiente no caso dos Estados Unidos, assim como a confiança na cultura administrativa do país. Mesmo nos casos em que juízes de primeira instância têm interferido, as decisões têm sido revertidas em instâncias superiores ou simplesmente não têm sido cumpridas. Argumentos fiscais também têm sido utilizados de forma discutível para extinguir cargos e demitir funcionários permanentes.

O fato é que a ausência de algum instituto da estabilidade mais robusto tem facilitado o rolo compressor que está a desorganizar, desmantelar ou destruir os segmentos da administração alvo da atenção presidencial. No período 2019-2022 a legislação brasileira relativa à estabilidade do servidor foi uma proteção contra o arbítrio dominante que não pôde demitir quadros do Estado por divergências políticas e ideológicas ou por cumprirem seu dever nas funções que ocupavam.

O debate em torno das capacidades estatais, parte importante da agenda dos sucessivos governos Lula, talvez precise incorporar pelo menos duas novas variáveis: resiliência e antecipação. Não há um roteiro para o desenvolvimento de capacidades resilientes, a exemplo das edificações no Japão e no México, construídas para resistirem a terremotos. Mas a sustentabilidade institucional hoje passa por uma capacidade de absorver choques distinta do passado.

A descontinuidade administrativa sempre foi um desafio, mas não a ponto de se transformar em um risco à existência das burocracias governamentais. Antecipar eventos extremos não é uma questão hoje que se restrinja a fenômenos da natureza. Análises de riscos políticos tornaram-se essenciais em disputas de poder que envolvem a própria sobrevivência de regimes democráticos em países desenvolvidos. O que dizer de emergentes como o Brasil?

Não tem havido nas primeiras ações do DOGE preocupação em demonstrar resultados, a não ser que se considere cortes de recursos, demissões de pessoal e extinções de órgãos como evidências de entregas. E são, em especial para uma base de eleitores incapaz de compreender as consequências.

Trump tem demonstrado – como Thatcher décadas atrás – que uma agenda negativa também pode trazer dividendos políticos. Ele está apostando radicalmente na cortina de fumaça propagandista e na pauta de valores para justificar suas ações, e não em torno de políticas públicas baseadas em evidências, expressão ingenuamente tão em moda.

Trump e Musk são comunicadores globais, que operam através de suas redes públicas e privadas em tempo real, de forma estratégica, deliberada, rápida e precisa. Musk segue acumulando papéis nas esferas pública e privada sem que isso provoque nem questionamentos nem impedimentos, relacionados com possíveis conflitos de interesse.

O manual que utilizam vem sendo aproveitado sob variadas formas com sucesso por líderes no poder – como Milei, Netanyahu, Orbán, Meloni, Modi, Putin – e na oposição – como Jair Bolsonaro, Farage, Le Pen, Katz.

Trump não é o primeiro presidente estadunidense que leva comunicação a sério. Clinton e Obama são dois bons exemplos, assim como Tony Blair e Justin Trudeau, no Reino Unido e no Canadá, respectivamente. Não existem mais bons governos sem estratégias de comunicação que façam chegar suas mensagens à população.

Trump 2.0 está colocando em prática um projeto de governo cuja construção começou no dia seguinte à sua derrota para Biden em 2020. Seus parceiros foram ativos em todos os anos na oposição e foram redefinindo o perfil de senadores e deputados republicanos de modo a torná-los leais à sua liderança maior, ao movimento “Make America Great Again” (MAGA).

O nível de planejamento de sua campanha eleitoral e a montagem de sua equipe de governo são fruto de um entendimento do país, da reflexão sobre sua primeira gestão e de uma visão do que pretende fazer. A escolha de uma equipe formada por amadores inexperientes profundamente leais à sua pessoa não foi à toa, dada sua preocupação com a subjugação da burocracia governamental, que o constrangeu no período anterior.

A quantidade de cargos de confiança à disposição do presidente nos EUA é considerável, e o fato de Trump deter maioria nas duas casas, na Suprema Corte e de ter ganho no voto popular, além do Colégio Eleitoral, proporcionam ao presidente um poder de agenda que se confunde com o de intimidação, alimentando suas bases e inibindo as oposições.

Democracias se baseiam nos chamados pesos e contrapesos, que não estão presentes hoje na realidade estadunidense. O poder de Trump não é absoluto, mas caminha nesta direção.

Em contraste, na democracia brasileira o poder se fragmentou a tal ponto que o processo orçamentário e alocativo tornou-se um processo informal de ajustes contínuos navegado pelas circunstâncias dos entendimentos dos ocupantes do poder do momento – no Executivo e no Legislativo – e permanentes – no STF, no TCU e no MPF. Entre o risco da tirania nos EUA e o da paralisia no Brasil a política se move em meio a burocracias distintas, porém com muito o que aprender.

Os 100 primeiros dias do DOGE remetem à fala de Bolsonaro cumprimentando Trump em Washington, quando o então presidente brasileiro dizia em vídeo disponibilizado para o público como pretendia conduzir seu governo. Na ocasião anunciava que era preciso primeiro destruir tudo para então se construir aquilo que se desejava.

Trump hoje coloca em prática o que Bolsonaro ensaiou, porém com os benefícios de dominar os Três Poderes, conhecer a máquina que já administrou antes, deter o controle absoluto do Partido Republicano e contar com o suporte das big techs para governar e se comunicar. Nunca os EUA estiveram tão próximos de “relativizarem” a alternância no poder, peça-chave da democracia representativa. A questão é o que se construirá sob os escombros do “administrative state”.

O balanço de DOGE é de destruição e desorganização. Certamente há tempo para correções de rumo e promoção de inovações construtivas e impactantes. Resta saber se o atual governo dos EUA possui planos de aprofundar a trajetória atual ou introduzir correções de rumos que venham a servir à população estadunidense.

No momento, a perplexidade generalizada e os prejuízos de setores diversos, que inclusive apoiaram a candidatura de Trump, tendem a eclipsar a questão de fundo que desponta no debate público: o que se pretende colocar no lugar do que está sendo demolido? A pergunta supõe, no entanto, que a resposta não seja exatamente esta: a erosão de organizações governamentais, a regressão da economia a um capitalismo de compadres e a redução da política a um espetáculo midiático mais estimulante que o circo da Roma Antiga.

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