O Supremo Tribunal Federal terminou, no último dia 3 de abril, o julgamento da ADPF 635/RJ, popularmente conhecida como ADPF das Favelas. Como não poderia deixar de ser, uma arguição cuja tramitação foi marcada por momentos históricos, como a audiência pública realizada há aproximadamente quatro anos sob a condução de seu relator, o ministro Edson Fachin, também contou com um desfecho histórico: um voto per curiam.
Na sessão em que se concluiu o julgamento da ação, o ministro Fachin bem sintetizou a envergadura histórica do momento: “eu vivi para ver”.
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A importância da posição institucional do Supremo, ao se pronunciar em uníssono em um caso de tamanha relevância, além de reforçar a colegialidade, demonstra a disposição do tribunal em aprimorar seu processo decisório, cujos problemas são há muito conhecidos: dificuldade de se extrair a ratio decidendi dos acórdãos pela dispersão de fundamentação, advinda de um modelo pouco producente de soma dos votos dos ministros e da ministra; sustentações orais meramente formais (já que os ministros chegam às sessões com votos prontos); sessões plenárias presenciais com poucas discussões aprofundadas, ou que torna os julgamentos demasiado extensos de forma contraproducente.
Todos esses pontos comprometem o bom funcionamento do STF em geral e da tomada de decisão em plenário em particular. Por isso, em boa hora, portanto, o Supremo indica uma possível correção de rota – decisão colegiada, conjunta, da corte (decisão per curiam) e não 11 votos individuais juntados sem nenhum diálogo entre si.
É necessário enfrentar, entretanto, a fundamentada crítica segundo a qual, em nome da colegialidade, estaria se sacrificando outros ditames constitucionais, como a transparência[1], cuja expressão maior, nas últimas décadas, reside nos julgamentos televisionados.
Não se desconhece que o art. 93, inciso IX, da Constituição assegura que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
O julgamento, a tomada de decisão, deve ser público.
Não há dúvida sobre isso.
Não há a mesma exigência, entretanto, para a formação da convicção decisória.
A formação da convicção passa por diferentes etapas e estágios. Alguns, de fato, são públicos – como as sustentações orais. Outros, por sua vez, não necessariamente – como o indispensável e salutar intercâmbio de ideias e argumentos entre os ministros e a ministra da corte, e entre eles e ela e seus assessores e assessoras, por exemplo.
Como afirmado, não há dúvidas quanto ao fato de o julgamento propriamente dito, consubstanciado na apresentação das razões que fundamentam a decisão e na tomada de decisão em si, dever ser público. Inclusive com a possibilidade de intervenção das partes/dos partícipes do processo, como pelo pedido de questão de ordem pelos advogados e pelas advogadas, por exemplo.
Ocorre que uma deliberação verdadeiramente autêntica, aberta, dialógica, com troca e teste de argumentos, funciona melhor quando é feita a portas fechadas. Especialmente quando se está diante de casos hiper complexos, de feição estrutural, em que é requerido da corte um nível de análise minucioso de uma série de questões veiculadas ao longo do trâmite processual.
Essa afirmação pode causar, à primeira vista, certo espanto, em especial pela tradição, hoje sedimentada no Brasil, de se televisionar o processo de deliberação dos ministros e das ministras do STF.
Porém, é preciso lembrar que não há um mandamento constitucional à TV Justiça.
Como sustentado, a Constituição exige julgamento público, tomada de decisão pública. Não há a exigência, por outro lado, de que o processo deliberativo que deu ensejo a determinada decisão seja público.
Não se deve confundir processo deliberativo, pelo qual se forma a convicção decisória, com a apresentação dos fundamentos de determinada decisão, que deve, sim, obrigatoriamente, ser pública.
No caso da ADPF 635/RJ, além de toda a fase de instrução processual, que contou, como já pontuado, com a realização de audiência pública, no julgamento de mérito, após a leitura do relatório, que foi disponibilizado de forma pública antes do início do julgamento a critério do relator, como preceitua o Regimento Interno do STF (art. 87, inciso IV), houve diversas sustentações orais – do requerente, dos requeridos e de diversos amici curiae, além da Defensoria Pública da União como custos vulnerabilis, contando, inclusive, com interação entre ministros e advogados.
Essa primeira fase pode ser classificada como o momento público do processo deliberativo.
Em sequência, houve a leitura do voto do ministro Fachin, seguida da suspensão do julgamento por indicação do próprio relator.
Iniciou-se, nesse momento, a segunda fase do processo deliberativo, com intenso diálogo entre os próprios integrantes da corte, além da realização de novas audiências pelo ministro relator com diversos grupos e segmentos que poderiam contribuir para a decisão do tribunal, algo que não é comum no dia a dia do STF.
Na última sessão de julgamento, o voto originalmente proferido pelo ministro Fachin foi por ele complementado com as razões que levaram ao tribunal, como um todo, a adequar pontos específicos controvertidos da parte dispositiva do voto. Não nos parece que o Supremo deixou de apresentar, de forma pública e clara, as razões que levaram à versão final do voto, que deixou de ser apenas do ministro relator e passou a ser subscrito por todo o tribunal.
À míngua de previsões regimentais expressas, a divisão de tarefas adotada pelo Supremo na última sessão de julgamento conferiu racionalidade e institucionalidade a algo inédito.
Em um primeiro momento, o ministro Fachin, complementado o voto anteriormente proferido, expôs, de forma fundamentada e pública, as linhas argumentativas adotadas por todos os ministros e pela ministra da corte para chegarem a uma posição consensual e institucional quanto aos diversos e minuciosos pedidos.
Em um segundo momento, o presidente Luís Roberto Barroso fez a leitura da parte dispositiva do voto per curiam. Em casos como esse, em que o tribunal fala a uma só voz, em um voto construído a 22 mãos, como bem explicitou o ministro Fachin, nos parece acertado que a decisão propriamente dita seja proferida pelo presidente em nome da corte.
Por fim, todas as manifestações dos demais ministros na sessão de julgamento corroboraram a importância do momento e o esforço coletivo que se depreendeu para chegar à decisão possível, o que só reforça o respaldo que o modelo per curiam adotado pela corte nesse caso tem de seus próprios integrantes.
Em suma, o modelo de dinâmica decisória adotado no julgamento da ADPF 635/RJ torna a tomada de decisão mais franca, lapida melhor os argumentos, tem o potencial de qualificar as sustentações orais e favorece a colegialidade e a institucionalidade. Como decorrência do modelo per curiam, cuja adoção constou, inclusive, da decisão de julgamento, espera-se, também, mais coerência decisória e maior rigor argumentativo.
A publicação do acórdão irá elucidar melhor como se operacionalizou o voto per curiam adotado pela corte, porém, como uma experiência inicial e inovadora, até o momento, tudo leva a crer que esse é um modelo não só bem-vindo, mas que pode e deve ser celebrado e tido como exemplar.
[1] As críticas ali traçadas aparentam melhor se amoldar ao caso do julgamento da questão de ordem na AR 2.876, finalizado na sessão do plenário físico do dia 23 de abril, na qual o ministro presidente, após apregoar o feito à julgamento, fez a leitura, tão somente, das teses firmadas conjuntamente pelos ministros e pela ministra, com o apontamento de que existiram ressalvas quanto a determinado item.