O aproveitamento dos créditos de ICMS referentes à aquisição de bens intermediários é tema que gera amplo debate nas esferas judicial e administrativa. Isso porque tais materiais, ainda que essenciais para as atividades-fim das empresas, não são integralmente consumidos ou vinculados ao produto que será comercializado.
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Historicamente, pela sistemática do crédito físico, admitia-se apenas o creditamento de materiais que fossem decompostos no processo industrial e que se incorporassem fisicamente ao produto final do estabelecimento. Esse foi o entendimento adotado pelo artigo 31, III do Convênio ICM 66/88[1]. A lógica é oposta ao chamado regime de crédito financeiro, que permite que qualquer insumo utilizado na produção seja imediatamente creditado.
Com a promulgação da Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir), a não cumulatividade de ICMS foi alterada por meio de seus artigos 19 e 20[2]. Os dispositivos admitem até mesmo o creditamento dos bens destinados ao uso e consumo ou ao ativo permanente do estabelecimento, muito embora o artigo 33, I tenha criado limitação temporal a essa aplicação[3].
O direito à tomada de crédito foi, portanto, deliberadamente ampliado com a mudança legislativa. Prova disso se extrai da própria justificativa ao Projeto de Lei Complementar 95/96, de autoria do deputado Antônio Kandir, que identifica que a norma abole a distinção entre o crédito físico e o crédito financeiro para tornar o ICMS mais compatível com a sua função econômica.
Apesar da alteração normativa, mantiveram-se as discussões entre contribuintes e autoridades fiscais sobre o enquadramento de determinadas mercadorias como bens intermediários ou bens de uso e consumo.
Nesse contexto, as Fazendas Estaduais continuaram sustentando que, para que a mercadoria fosse passível de creditamento, deveria ser integrada fisicamente ao produto final e consumida integral e instantaneamente no processo produtivo, aplicando a ultrapassada sistemática de crédito físico do Convênio ICM 66/88.
Jurisprudência do STJ no julgamento do EAREsp 1.775.781/SP
Em resposta à controvérsia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão significativa em 11 de outubro de 2023, ao julgar os Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial 1.775.781/SP[4]. Nessa ocasião, a Corte estabeleceu que é “cabível o creditamento referente à aquisição de materiais (produtos intermediários) empregados no processo produtivo, inclusive os consumidos ou desgastados gradativamente, desde que comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social da empresa – essencialidade em relação à atividade-fim.”
O voto da ministra relatora Regina Helena Costa examinou a possibilidade de creditamento do ICMS com base no conceito de insumo, destacando a essencialidade e relevância, conforme discutido no julgamento do leading case sobre o tema, REsp 1.221.170/PR.
Nesse contexto, é fundamental que o produto adquirido funcione como um componente estrutural e inseparável do processo produtivo, ou que sua ausência comprometa a qualidade, quantidade e/ou suficiência do produto final. Mesmo que o produto intermediário não seja absolutamente indispensável para a elaboração do produto, ele deve integrar o processo de produção de maneira significativa.
Com base nesse entendimento, o STJ uniformizou a interpretação de que o desgaste gradual do produto não desqualifica sua essencialidade no processo produtivo. Portanto, os produtos adquiridos para a consecução do objeto social da empresa não são classificados como de uso e consumo do estabelecimento e, assim, não estão sujeitos à limitação temporal prevista no artigo 33, I, da Lei Kandir.
Tema 633 do STF, distinguishing e decisões posteriores
Em 8 de novembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu o direito ao creditamento do ICMS decorrente da aquisição de bens de uso e de consumo empregados na elaboração de produtos destinados à exportação, independentemente de regulamentação infraconstitucional.
A Suprema Corte retomou a dicotomia entre a utilização do crédito físico e do crédito financeiro, compreendendo que a Emenda Constitucional 42/2003 consagrou o crédito físico para fins do princípio da não cumulatividade que rege o ICMS.
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Entendemos que é importante trazer este julgamento à luz da presente discussão, vez que, embora o STF tenha retomado a ideia de que o crédito do ICMS é necessariamente vinculado ao crédito físico, é imprescindível fazer a distinção entre o decidido pelo STF e o entendimento firmado pelo STJ.
Debruçando-se sobre os aspectos constitucionais, o STF analisou estritamente a aquisição de bens de uso e consumo no processo produtivo de mercadorias a serem exportadas para fins da manutenção dos créditos do ICMS com base da imunidade constitucional. Por outro lado, o STJ, dentro de sua competência infraconstitucional, analisou diretamente a qualificação de materiais adquiridos para a consecução do objeto social da empresa.
Ainda que a decisão do STJ não tenha sido tomada em sede de recurso repetitivo, não ensejando observância obrigatória aos processos que tratam sobre o tema, mapeamos acórdãos posteriores do tribunal que confirmaram o entendimento[5]. Além disso, decisões do próprio STF, tomadas após o julgamento Tema 333, consideram que o tema é infraconstitucional[6].
Posicionamento do TJRJ
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), as decisões posteriores ao julgamento do EAREsp 1.775.781/SP são, em sua maioria, favoráveis aos contribuintes, adotando o critério da essencialidade para o reconhecimento da possibilidade de creditamento de ICMS na aquisição de insumos (0012548-46.2015.8.19.0028, 0007664-95.2020.8.19.0028, 0002800-14.2020.8.19.002, 0025338-75.2017.8.19.0001, 0008181-03.2020.8.19.0028).
Os votos também estabelecem distinguishing entre as hipóteses em análise e o Tema 633 do STF, tendo em vista que o julgamento diz respeito ao ICMS decorrente da aquisição de bens de uso e de consumo empregados na elaboração de produtos destinados à exportação.
Posicionamento do Conselho de Contribuintes do Rio de Janeiro
Ainda que a jurisprudência majoritária do STJ e do TJRJ convirjam na permissão do creditamento de ICMS para produtos intermediários, o entendimento não tem prevalecido no Conselho de Contribuintes do Rio de Janeiro (CCERJ).
No órgão administrativo, os conselheiros continuam defendendo que a tomada de créditos depende da participação intrínseca do insumo no processo produtivo da empresa pela incorporação ao produto final e consumo integral e imediato.
Nesse sentido, adotam a sistemática do crédito físico sem sequer mencionar o entendimento do STJ sobre o tema, utilizando como base o Parecer Normativo estadual 10/75, que é anterior ao Convênio ICM 66/88 e à própria Lei Kandir. A título ilustrativo, é possível destacar as decisões proferidas nos processos E-04/211/009545/2021; E-04/037/100301/2018; E04/211/373/2020 e E04/211/22320/2019.
Embora existam decisões favoráveis[7], observa-se que a discussão tem sido desenvolvida de forma casuística. Apesar da essencialidade e relevância dos produtos para o processo produtivo, o conselho frequentemente desconsidera esses aspectos ao qualificar produtos intermediários.
Em vez disso, tende a reclassificar esses produtos como materiais destinados a uso e consumo, desqualificando assim a possibilidade de crédito.
Conclusão
A discussão sobre o creditamento de bens intermediários no âmbito do ICMS é complexa e historicamente contenciosa. Após a decisão do STJ no julgamento do EAREsp 1.775.781/SP, observa-se um cenário mais favorável para os contribuintes.
Essa decisão reforça a adoção de uma abordagem mais ampla aos bens classificados como intermediários, permitindo que, desde que comprovada a necessidade desses insumos para a realização do objeto social da empresa, eles possam ser creditados, independentemente de serem consumidos de forma imediata ou ao longo do tempo.
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No entanto, a controvérsia persiste, especialmente no âmbito administrativo, como evidenciado pelas decisões do CCERJ, que desconsideram a amplitude adotada pelo STJ para qualificar insumos como produtos intermediários. Em contraste, o TJRJ tem adotado uma postura favorável aos contribuintes, alinhando-se ao entendimento do STJ.
Embora a discussão pareça interminável, à primeira vista, a reforma tributária mina essa controvérsia histórica ao implementar a não cumulatividade plena do IBS no art. 156-A, VIII da CRFB/88[8], proporcionando um sistema tributário mais justo e eficiente.
[1] Art. 31 Não implicará crédito para compensação com o montante do imposto devido nas operações ou prestações seguintes:
III – a entrada de mercadorias ou produtos que, utilizados no processo industrial, não sejam nele consumidos ou não integrem o produto final na condição de elemento indispensável a sua composição.
[2] Art. 19. O imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.
Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
[3] Art. 33. Na aplicação do art. 20 observar-se-á o seguinte:
I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento nele entradas a partir de 1º de janeiro de 2033.
[4]
[5] Agravo em REsp nº 2330503/RS, AgInt no AgInt nos EDs em REsp nº 2054083/RJ, AgInt no REsp nº 2136604/SP e Agravo em REsp nº 2621584/RJ.
[6] Ag.reg. no RE com Agravo ARE 1.498.590, de 26/08/2024 e Ag.reg. no RE com Agravo ARE 1.500.291, de 02/09/2024.
[7] Processos nº SEI-040037/000062/2023 e nº E-04/038/100029/2018.
[8] Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
§ 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte
VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.