A etapa das perícias médicas, realizadas no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e da Justiça, que deveria, em tese, assegurar o direito daqueles que necessitam de benefícios sociais, frequentemente se transforma em um obstáculo para as pessoas mais vulneráveis.
Em muitos casos, a confiança no sistema de perícias médicas é abalada quando profissionais responsáveis pelos laudos não agem com ética e responsabilidade ao elaborar esses documentos.
Percebo, em muitas situações, que o problema começa na qualidade dos laudos elaborados pelos peritos. Há casos em que esses profissionais demonstram pouca sensibilidade ou até mesmo falta de preparo ao avaliar as condições de saúde dos pacientes. A partir disso, elaboram documentos superficiais, imprecisos e, em casos mais graves, fraudulentos.
Segundo o último boletim estatístico da Previdência Social, de novembro de 2024, mais de 438 mil requerimentos de benefícios foram indeferidos no Brasil. Na comparação entre os benefícios concedidos e negados, de janeiro a novembro do ano passado, enquanto 6,4 milhões de pessoas conseguiram acesso aos benefícios, 4,9 milhões tiveram seus requerimentos indeferidos pelo INSS.
A espera para conseguir um benefício no INSS já é, por si só, um grande desafio para muitos cidadãos, que enfrentam longas filas e prazos intermináveis. Segundo dados recentes da própria autarquia, quase 2 milhões de requerimentos aguardam avaliação para obter benefícios sociais e da Previdência.
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No entanto, quando finalmente essas pessoas chegam ao atendimento, muitos se deparam com a frustração de terem seus pedidos negados por médicos peritos que, em muitos casos, elaboram laudos de forma inadequada, sem a devida atenção ou análise criteriosa do quadro clínico dos cidadãos.
O cenário atual de erros não é mera retórica. Uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) evidencia a gravidade do problema na análise de benefícios previdenciários pelo INSS. Entre janeiro e maio de 2024, negativas indevidas atingiram 13,20% das análises manuais e 10,9% das automáticas, prejudicando inúmeros cidadãos que necessitam desses benefícios.
Um caso emblemático da falta de preparo profissional ocorreu em Goiânia (GO). Um perito do INSS escreveu repetidamente “bla, bla, bla” em um laudo para justificar a negativa de um auxílio-doença a um serralheiro. A “justificativa” constou em respostas a dois pedidos do trabalhador, um em 2022 e outro em 2023.
Para se eximir da responsabilidade, o Ministério da Previdência Social informou que a expressão “bla, bla, bla” foi uma “falha no sistema” e que “não houve envolvimento dos peritos médicos”, atribuindo o erro ao sistema da Empresa de Tecnologia e Informação da Previdência (Dataprev).
Esses dados e o caso real apresentado reforçam a necessidade urgente de melhorias nos mecanismos de análise e processamento dos requerimentos, conforme determinado pelo TCU. A alta taxa de erros demonstra como falhas sistêmicas e humanas podem comprometer direitos fundamentais, tornando imprescindível a adoção de práticas mais transparentes, criteriosas e eficazes para garantir justiça e equidade no atendimento à população.
Em outro caso prático, presenciei o relato de uma paciente que, apesar de sua condição de saúde debilitada e da necessidade evidente de prorrogação de um benefício, foi submetida a um exame físico que durou apenas 35 segundos e a poucas perguntas básicas. Mesmo com essas limitações, o laudo entregue ao processo afirmava falsamente a realização de testes que nunca ocorreram.
A situação foi agravada pelo fato de que a cliente gravou a perícia, demonstrando as inconsistências, mas o juiz responsável ignorou as provas e validou o laudo. Este caso não é isolado: outros relatos sobre a mesma perita destacam práticas semelhantes, evidenciando um padrão preocupante na atuação desses profissionais.
Entendo que é inconcebível que uma médica, cuja decisão afeta diretamente a vida e o sustento de indivíduos, elabore laudos fraudulentos e negligentes, com exames inexistentes e análises superficiais de poucos segundos.
Além disso, é ainda mais preocupante que esses laudos fraudulentos sejam aceitos pela Justiça como base para decisões definitivas, ignorando evidências contrárias, como gravações ou documentos médicos que comprovam a irregularidade da perícia. Essa postura não apenas valida práticas irresponsáveis por parte dos peritos, mas também compromete o direito dos cidadãos à análise justa e rigorosa de seus casos.
É importante ressaltar que esse descaso nas perícias não apenas compromete a credibilidade do sistema, mas também agrava o sofrimento daqueles que dependem desses benefícios para sobreviver. Reformar e fiscalizar tais práticas deve ser uma prioridade para garantir justiça e dignidade.
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Portanto, é essencial que os processos sejam conduzidos com maior transparência e considerem múltiplas fontes de evidência, indo além do parecer de um único perito. A capacitação contínua dos profissionais envolvidos e a implementação de mecanismos rigorosos de supervisão e auditoria podem evitar decisões injustas e garantir que as perícias sejam realizadas com a lisura necessária.
Compreendo claramente que mudanças estruturais no sistema de perícias são imprescindíveis e inadiáveis. É fundamental que o sistema adote uma abordagem mais humanizada, colocando o bem-estar dos cidadãos como prioridade absoluta e afastando-se da visão que os trata meramente como “gastos” ao Estado.