Legalidade e o retorno do pêndulo

No Direito Administrativo, é comum falarmos de novas tendências e institutos a partir da metáfora do pêndulo. Por exemplo: quando surgiram as agências reguladoras no Brasil, a partir da década de 1990, o momento foi de euforia. Com elas, vieram promessas de eficiência e de crescimento econômico. Mas o pêndulo se foi de um lado a outro na primeira ventania, a partir do ataque duro de quem enxergou nas agências violações à separação de Poderes e ao princípio democrático.

Aos poucos, esse pêndulo foi retornando a seu ponto de equilíbrio, embalado pela compreensão de que o poder normativo das agências se sujeita, assim como a Administração Pública em geral, à observância da legalidade (com diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal que rejeitaram a chamada deslegalização); e de que o déficit de legitimidade democrática se compensa por sua atuação técnica e sofisticada nos setores regulados.

A metáfora é útil para pensarmos o princípio da legalidade. Mais especificamente, a necessidade de um retorno do pêndulo.

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A compreensão de uma legalidade constitucionalizada (alçada à juridicidade) foi um divisor de águas no Direito Administrativo. Permitiu avanços e a superação de dogmas e arbitrariedades. Permitiu, inclusive, que as primeiras soluções consensuais fossem adotadas pela Administração, que não estaria mais vinculada somente àquilo que a legislação (e as prerrogativas da Administração) preceituam, mas sim ao direito como um todo.

Mas em algum momento nessa trajetória parece que algo se perdeu. Como se a legalidade tivesse se tornado menos importante. Uma percepção que bateu tão forte que, no melhor estilo fake news, virou verdade para alguns.

Entre as causas desse fenômeno, está o descrédito pelos Poderes eleitos. É quase um consenso que os políticos a cada eleição nos representam menos e realizam menos nossos interesses. Mas é possível dizer que o apagão da legalidade também tem relação com um fenômeno mais profundo. Algo comportamental. Uma espécie de reflexo da sociedade superficial, acelerada, estética e impaciente em que vivemos.

Da mesma forma que nas escolas o livro perdeu prestígio, no ambiente jurídico parece cada vez mais fácil resolver problemas pela ponderação de princípios ao invés de se investigar o conteúdo da lei. São tempos de uma perigosa inversão de lógica: antes (e nem tão antes assim), as regras eram objetivas e simples; e o que era complexo era ponderar. Agora, leis parecem ter se tornado cansativas e excessivas.

Acaba sendo mais fácil “tirar do bolso” um princípio fundamental e esquecer que a legalidade (ainda) existe. Em um exemplo hipotético, imagine-se que certo município precise resolver uma demanda urgente na área da saúde. O que é mais fácil? Estudar a Lei 14.133/2021 e seus quase 200 artigos (além dos regulamentos) ou ponderar que os direitos fundamentais à saúde e à manutenção da vida são valores mais importantes do que a vinculação ao instrumento convocatório?

Voltando ao pêndulo da legalidade, é chegada a hora de empurrá-lo de volta. Não para o extremo oposto de uma legalidade impenetrável, mas àquela que é a base de um Estado Democrático de Direito comprometido com a segurança jurídica. A um ponto de equilíbrio em que a regra seja aplicar a lei, sem prejuízo do exame de razões contundentes (extraídas do ordenamento jurídico) que justifiquem sua superação em casos específicos – e pelas vias adequadas.

Como fazer isso? Primeiro, é preciso resgatar o apreço pela lei. Disseminar a cultura de que ela importa e precisa ser conhecida. Retomar uma espécie de vinculação forte à legalidade, não como obediência cega, mas respeitosa. Segundo, é preciso (re)começar a interpretação jurídica a partir da lei, e não a despeito dela. Organizar o raciocínio a partir do que a lei estabelece, ao invés de começar e parar nos princípios gerais. Terceiro, é preciso resgatar a confiança na lei. Acreditar, de boa-fé, que aquilo que ela permite e proíbe é legítimo (ao menos, na partida).

A positivação, na LINDB, da chamada cláusula geral de consensualidade, em seu artigo 26, parece ser um exemplo dessa relevância da lei. Embora já admitidas as soluções consensuais, com base no princípio da juridicidade, percebeu-se, de forma relativamente rápida no cenário administrativo, a importância da positivação dessa possibilidade de atuação menos imperativa e verticalizada pela Administração.

A lei ainda importa, e muito, no dia a dia da Administração Pública, sobretudo para o gestor médio e de boa-fé. Este, quando se vê diante de problemas difíceis a serem resolvidos, comumente quer agir com base no que lhe autoriza a disposição legal, porque (ainda é) ela que lhe dá a segurança jurídica necessária contra eventuais e futuras responsabilizações. Não se trata, assim, de uma obediência cega à lei, como se falou anteriormente, mas de um caminho de apreço da legislação e confiança naquilo que foi permitido ou proibido pelo legislador.

Em mais um exemplo: no Brasil, sabe-se que os contratos administrativos não podem ser prorrogados para além dos limites legais – é assim e sempre foi assim. Isso vale ainda quando a continuação do fornecimento de certo bem ou serviço seja essencial.

Significa dizer que o legislador descurou do interesse público nessas situações? Evidente que não. Significa dizer, apenas, que existem outras soluções positivadas pelo ordenamento jurídico para lidar com situações de urgência – que não passam pelo descrédito da previsão legal, mas pelo recurso a outras ferramentas e institutos disponibilizados pelo ordenamento jurídico, como a contratação emergencial. A questão é que, para utilizá-las, é preciso – também aqui – conhecer a lei.  

Demonstração recente e relevantíssima dessa confiança na legalidade se viu nos momentos que se seguiram à tragédia no estado do Rio Grande do Sul, que levou o Poder Executivo Federal a editar a Medida Provisória 1.221/2024, que flexibilizou as regras das licitações públicas para agilizar e dar segurança jurídica aos gestores no enfrentamento dos efeitos das graves enchentes ocorridas no estado.[1] 

Vê-se, assim, que nem mesmo uma calamidade de tamanha magnitude, que faria qualquer intérprete ser capaz de justificar, em muitos momentos, a excepcionalização dos rigores da lei, fez com que a legalidade fosse descurada por completo.

A resposta administrativa pela via da ponderação de princípios, embora relevante, nos parece que deve ser reservada para aqueles casos em que ou a legislação não confere nenhuma resposta, ou confere uma resposta inadequada, que flagrantemente não atenda ao interesse público posto no caso concreto. Para esses casos, é indispensável aos operadores do Direito conhecer e manejar bem os princípios constitucionais que, ao fim e ao cabo, inspiram a atuação legislativa infraconstitucional.  

Para os casos, contudo, em que já existe uma solução, presumidamente legítima, posta pelo próprio legislador, é necessário conhecer a legislação e as possibilidades já expressamente admitidas pelo Direito para aquele cenário de conflito de interesses legítimos e constitucionalmente tutelados.

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Confiemos, nesses casos, que a ponderação exercida pelo legislador é adequada, hígida e também democraticamente mais legítima. Cabe a nós, operadores do Direito, realizar uma interpretação a partir da legislação, e não apesar da legislação, evitando darmos ao caso concreto a solução voluntarista que julgarmos adequada.

Tempos desafiadores, mas alvissareiros. Que os ventos soprem para o equilíbrio do pêndulo da legalidade. O Direito Administrativo agradece.


[1] A medida provisória, que teve seu conteúdo posteriormente incorporado a um projeto de lei, deu ensejo à Lei no 14.981/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para contratações públicas destinadas ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.

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