O processo de abertura total do mercado livre de energia, previsto para os próximos anos, deveria representar uma conquista para consumidores e pequenos fornecedores. Mas a forma como a liberalização está sendo desenhada pode, na prática, ser insuficiente para resolver os desequilíbrios já existentes no setor.
A Consulta Pública Aneel 07/2025, que propõe medidas para disciplinar a atuação de comercializadoras varejistas, enfrenta o seguinte problema: como garantir concorrência efetiva em um setor em que grandes grupos de distribuição controlam a comercialização nas mesmas áreas em que detêm monopólio legal?
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Atualmente, comercializadoras coligadas a distribuidoras concentram (quase que exclusivamente) suas operações dentro da própria área de concessão. Essas empresas se aproveitam de vantagens estruturais, como marca consolidada, capilaridade, acesso histórico a dados e canais de relacionamento com o cliente, para manter um domínio quase absoluto mesmo em um ambiente que, em tese, deveria ser competitivo. A ideia de que o mercado varejista de energia seria nacional simplesmente não se confirma diante da realidade do setor.
Dados recentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) mostram que as comercializadoras varejistas vinculadas a grupos de distribuição concentram suas operações justamente nas áreas em que suas distribuidoras atuam.
Em alguns casos, como Celesc e Neoenergia, mais de 95% dos clientes dessas comercializadoras estão localizados dentro da área de concessão da distribuidora do grupo. Empresas como Equatorial, CPFL, Light, Copel e Energisa seguem a mesma lógica, mantendo entre 70% e 94% de suas unidades consumidoras nessas regiões. Mesmo grupos com menor concentração, como a EDP (44%), ainda operam prioritariamente dentro de suas próprias áreas.
Essa distribuição evidencia que a competição no mercado livre, na prática, se dá em âmbito local, e que as coligadas se beneficiam de uma base territorial consolidada e do vínculo com a distribuidora regulada para manter seu domínio, limitando a atuação de agentes independentes.
Ao focar em medidas como separação de marca e canais de atendimento, as medidas propostas pela Consulta Pública ignoram a raiz da assimetria concorrencial: a verticalização entre distribuição e comercialização. Na prática, essa estrutura inibe a entrada de novos agentes, reduz o incentivo à inovação e à competição por preço e qualidade. Mais grave: será incapaz de evitar as vantagens que comercializadoras coligadas possuem em função da integração, dificultando a migração de consumidores para empresas independentes.
Ao permitir que comercializadoras varejistas pertencentes a grupos de distribuição atuem justamente nas áreas de concessão em que suas distribuidoras já operam como monopólio natural, perpetua-se um desequilíbrio estrutural que tende a se agravar à medida que o mercado livre se expande. O problema não está na existência dessas comercializadoras verticalizadas, mas na sobreposição geográfica entre a atuação competitiva e o poder histórico do grupo na distribuição regulada.
Por isso, cresce a necessidade de uma medida mais precisa e proporcional: vedar a atuação dessas comercializadoras varejistas nas áreas de concessão de suas próprias distribuidoras. Essa limitação geográfica — e não uma proibição geral de atuação — é a única forma efetiva de neutralizar o poder de mercado das distribuidoras e viabilizar o mercado independente.
A alternativa ventilada na consulta pública, de permitir atuação “passiva” dessas comercializadoras — ou seja, vedando a prospecção ativa de clientes, mas autorizando a venda caso o consumidor as procure espontaneamente — revela-se insuficiente diante da realidade prática do setor, em que agentes das distribuidoras podem direcionar clientes para elas.
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Para garantir a efetiva separação funcional e concorrencial, é essencial que a regulação seja clara e objetiva: comercializadoras ligadas a distribuidoras não devem operar na área de concessão nem diretamente, nem por meio de terceiros ou intermediários.
Manter a possibilidade de que distribuidoras disputem consumidores livres dentro de suas próprias áreas de concessão equivale a preservar uma estrutura de concentração sob a aparência de um mercado liberalizado. O consumidor, ao se deparar com a marca familiar e os canais conhecidos, tende a optar por essa oferta, mesmo que haja alternativas mais vantajosas entre os agentes independentes.
Restringir a atuação das comercializadoras coligadas nas áreas de concessão das distribuidoras a que pertencem é medida necessária para proteger o consumidor, estimular a inovação e promover a verdadeira concorrência. O futuro do mercado varejista de energia dependerá, em grande parte, da disposição do regulador em romper com estruturas de poder consolidadas.