De fake news à proteção de dados, o termo “plataforma digital” ganhou destaque no noticiário, nos tribunais e no Legislativo. Só em 2025, por exemplo, tramitam na Câmara dos Deputados 295 novas propostas relacionadas ao tema.
Essas propostas cobrem assuntos variados: uso de dados pessoais, trabalho por aplicativo, aluguel por temporada, tempo de tela para crianças, entre outros. Também envolvem diferentes áreas do direito, como direito tributário, comércio eletrônico, fraude e defesa do consumidor.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Essa variedade revela dois problemas centrais no debate atual sobre plataformas digitais:
(i) tratamos fenômenos muito distintos — de redes sociais a apps de transporte — como se exigissem o mesmo tipo de regulação;
(ii) esse erro decorre, em grande parte, da ausência de evidências empíricas nas propostas legislativas.
Para enfrentar esse cenário, é necessário apresentar dados, testar hipóteses consolidadas e, principalmente, questionar algumas das narrativas mais recorrentes do debate. E, para começar, uma pergunta fundamental: o que é, afinal, uma plataforma digital?
Discutindo conceitos
Ao longo das últimas três décadas, o termo digital platform passou por transformações relevantes. Nos anos 1990, era associado a sistemas operacionais e à arquitetura da Web 2.0 (O’Reilly, 2004). A partir de meados dos anos 2000, passou a ser usado por economistas industriais para descrever arranjos bilaterais mediados por tecnologia — sistemas que conectam dois ou mais lados de um mercado (Parker, Van Alstyne e Choudary, 2016).
Uma formulação influente veio com Platform Capitalism (2016), de Nick Srnicek. Ao identificar nas plataformas uma “nova fase do capitalismo”, o autor destacou três características centrais: infraestruturas digitais que mediam múltiplos mercados, captura massiva de dados e escalabilidade que favorece a formação de monopólios.
Essa leitura ganhou força especialmente após 2016, ano da eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, em que as redes sociais tiveram papel central e também as cinco maiores empresas do mundo por valor de mercado eram da área de tecnologia. Isso pareceu confirmar o diagnóstico de que poucos gigantes tecnológicos estavam reconfigurando os pilares históricos do capitalismo.
Esse enquadramento inspirou agendas regulatórias reativas partindo do pressuposto de que poucos gigantes tecnológicos estavam reconfigurando os pilares históricos do capitalismo. Mas um olhar mais atento — amadurecido com o tempo — revelou os limites dessa generalização.
Pesquisas recentes têm proposto abordagens mais sofisticadas e analiticamente rigorosas para compreender o papel das plataformas digitais. Muitos deles criticam a chamada “metanarrativa do capitalismo de plataforma”, a associação dos processos de plataformas digitais a uma nova fase do capitalismo, destacando três fragilidades centrais: (i) o número relativamente pequeno de trabalhadores diretamente vinculados a essas empresas, (ii) a diversidade marcante dos modelos de negócio existentes no setor e (iii) a tendência de generalizar características de alguns poucos casos emblemáticos para todo o ecossistema digital.
No caso brasileiro, essas limitações são evidentes. Dados do IBGE indicam que menos de 2% da população ocupada no setor privado trabalha por meio de plataformas digitais ou aplicativos de serviços — uma proporção insuficiente para sustentar a ideia de uma transformação estrutural ampla no mundo do trabalho.
Além disso, há grande heterogeneidade entre os modelos de negócios: de acordo com o Ipea, somente entre as plataformas com receita operacional bruta superior a R$ 78 milhões anuais, existem 252 empresas atuando no país, cobrindo setores tão diversos quanto negócios, relacionamentos, delivery, conteúdo digital, educação, eletrônicos, entretenimento, agro, saúde, recursos humanos, imóveis, varejo, busca, redes sociais, software, transporte e turismo.
A noção de que o ecossistema é dominado por poucas big techs estrangeiras também precisa ser discutida: 70,2% das plataformas digitais em operação no Brasil têm controle acionário nacional, ainda segundo o Ipea.
Pânico moral x ingenuidade tecnológica
O equívoco central reside em aplicar uma única categoria analítica — “plataformas” — a um conjunto empiricamente heterogêneo de empresas intermediárias. Esse enquadramento genérico obscurece diferenças de modelo de negócio, grau de centralização e formas de exercício de poder de mercado.
As consequências práticas são relevantes: cada tipo de plataforma apresenta riscos regulatórios próprios — que vão da logística de insumos agrícolas ao lock-in de restaurantes — e, portanto, exige métricas e instrumentos regulatórios distintos.
Essa simplificação pode alimentar dois discursos antagônicos, mas igualmente problemáticos. De um lado, a retórica do pânico moral, que transforma qualquer algoritmo em ameaça existencial. De outro, a ingenuidade tecnológica, que aposta na autorregulação como solução universal e repete slogans sobre “inovação sem entraves”. Ambos os discursos negligenciam a diversidade estrutural e setorial que os dados e exemplos anteriores tornaram evidentes.
Para qualificar o debate, propomos substituir a noção de “fase” — que sugere homogeneidade histórica — pela ideia de plataformização, conforme formulada por José van Dijck e colaboradores. Em vez de um estágio único e universal, trata-se de um processo dinâmico, no qual infraestruturas digitais se espalham por setores variados, reconfigurando práticas culturais, lógicas econômicas e marcos regulatórios de forma específica a cada contexto.
Essa perspectiva exige uma análise empírica: um marketplace regional de insumos agrícolas opera sob contextos sociais radicalmente distintos das de um motor global de busca — ainda que ambos sejam classificados como “plataformas”.
Para escapar desse impasse, é necessário investigar antes de regular. Por isso, precisamos oferecer pistas empíricas para ajudar a reconhecer a complexidade de diferentes fenômenos no contexto das plataformas digitais, e para informar melhor as estratégias e debates regulatórios.