Com foco na inclusão econômica e social dos catadores de resíduos, foi realizada em março a Oficina de Modelagem Estratégica, no âmbito do convênio firmado entre a Ancat (Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis) e a Fundação Banco do Brasil. A oficina teve como ponto de partida um conjunto de estudos técnicos e diagnósticos que integram o estudo do Estado da Arte da Reciclagem no Brasil.
Dentre as estratégias apresentadas no grupo de trabalho “Financeirização e Financiamento”, discutiu-se (1) o desenvolvimento de frameworks em bancos públicos e privados, que permitam a emissão de títulos sustentáveis vinculados a cooperativas; (2) a cessão de recebíveis de contratos de fornecimento de material reciclável das cooperativas a fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs); e (3) a criação de fundos geridos pela Ancat, combinando diferentes tipos de capital filantrópico, público e privado (blended finance), para financiamento das associações e cooperativas, entre outros.
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Por um lado, algumas startups brasileiras que atuam com materiais recicláveis receberam aportes de capitais, nacionais e internacionais, para desenvolvimento de tecnologias de logística reversa inteligente, ofertas de gestão de resíduos empresariais 360º e operações diversas com certificados de créditos de reciclagem.
Por outro lado, os recursos captados por debêntures emitidas por companhias abertas, que atuam na gestão de resíduos sólidos, com foco em reciclagem e em economia circular, são destinados para a reposição de caixa, refinanciamentos, pagamentos futuros e gestão de passivos. Ao que parece, estas formas clássicas de financiamento empresarial disponíveis no mercado de capitais ainda não são acessíveis às associações e cooperativas de catadores.
Como conferir ao catador o poder sobre o financiamento da reciclagem?
Na África de tempos longínquos e imemoriais, mãe ancestral dos pretos exilados no Brasil, que ontem eram escravos e hoje são catadores, nas terras dos povos iorubás atualmente pertencentes à Nigéria, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para os problemas que afligiam a todos, tanto os homens como os deuses orixás, incluindo os céus e a terra, a fauna e a flora, tendo como clímax o aquecimento global e a viabilidade da vida no planeta. Exu deveria estar atento aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para sempre se chegar a um final feliz.
Em seu livro Mitologia dos Orixás, o professor de sociologia da USP Reginaldo Prandi reuniu algumas das 301 histórias ou Itãs coletadas por Exu, que de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás representava um número incontável de histórias para se ter, diante de si, todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a extinção da natureza, a doença e a morte.
De acordo com Prandi, Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, orixás e humanos não podem se comunicar. Sem sua participação, não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem mercado de capitais.
Atualmente, sem Exu, não existe reciclagem, nem economia circular, nem a esperança da estagnação ou do desaquecimento global. Na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje.
O primeiro Itã apresentado pelo professor Prandi, que literalmente abre caminhos para os 300 Itãs subsequentes, é intitulado “Exu ganha o poder sobre as encruzilhadas”. Conta-nos o mito que Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro, tal e como o quase-mendigo, nosso herói catador, que está sem o amparo de uma associação ou cooperativa.
Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá e lá se distraía vendo o orixá fabricar os seres humanos, carregados de necessidades e de desejos, assim como os abastados financiadores e investidores capitalistas moldam e nutrem os pensamentos, os sentimentos e as ações humanas.
Muitos e muitos visitavam os grandes banqueiros e investidores capitalistas personificados em Oxalá. Trazendo oferendas, contemplavam sua opulência, com eles barganhavam e partiam, após pouco tempo de negociações.
Exu, o catador, ficou na casa de Oxalá, o banqueiro, por 16 anos. Exu prestava muita atenção nas oficinas de modelagens estratégicas do orixá e aprendeu como o dinheiro moldava homens e mulheres. Exu não perguntava. Exu observava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo.
Um dia, o banqueiro Oxalá disse ao catador Exu para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam as startups e as recicladoras emissoras de debêntures que vinham à sua casa, para ali ficar e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda ao banqueiro Oxalá, que não queria perder tempo recolhendo os presentes de seus bajuladores.
Exu catador tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá banqueiro, e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim, quem viesse à casa do banqueiro Oxalá teria que pagar também alguma coisa ao catador Exu. Exu trabalhava demais e fez na encruzilhada a sua casa. Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Ninguém poderia mais passar pela encruza sem pagar algo a Exu. Exu ficou rico e poderoso, o círculo virtuoso da economia circular ganhou tração, o mundo desaqueceu e a vida prosperou.
As encruzilhadas são espaços onde as pessoas fazem escolhas, tomam decisões e determinam seus caminhos. Elas representam o cruzamento de caminhos visíveis e invisíveis, onde diferentes forças, energias e entidades se encontram e interagem.
Nas encruzilhadas da reciclagem, diferentes atores disputam seu protagonismo, incluindo as cooperativas de catadores, que sofrem com a importação de materiais recicláveis, com os baixos preços da venda dos materiais coletados, com os atravessadores e com o descumprimento da lei que instituiu a política de pagamentos por serviços ambientais.
O círculo virtuoso da economia circular somente ganhará tração, o mundo desaquecerá e a vida prosperará quando o catador ganhar poder sobre o financiamento da reciclagem.