Colocação da questão
O art. 302 do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC/15) estabelece um mecanismo de responsabilidade no âmbito processual, determinando que aquele que obteve tutela provisória de urgência posteriormente revogada responda pelos prejuízos causados à parte adversa.
Trata-se da aplicação da chamada teoria do risco-proveito nas tutelas provisórias, segundo a qual a parte que se beneficia de uma medida judicial provisória deve arcar com as consequências negativas advindas para a contraparte, caso a medida não seja confirmada ao final do processo.
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As problemáticas que se colocam são: e se a tutela provisória vigorar por anos, especialmente após ter sido confirmada por várias instâncias, gerando uma legítima expectativa na parte quanto ao seu direito? E quando o risco de reversão do provimento provisório era baixo em razão do entendimento jurisprudencial favorável à tese autoral vigente à época?
Em outras palavras, uma tutela de urgência que vigora por 5, 7, 10 anos, confirmada em sede recursal, e/ou baseada em jurisprudência à época favorável, e que vem a ser posteriormente revogada em razão da mudança de entendimento dos tribunais enseja reparação de prejuízos e por todos os anos em que vigorou?
Sobre a legítima confiança
O Código de Processo Civil anterior (CPC/1973) já previa em seu art. 811 a possibilidade de responsabilidade perante o requerido por prejuízos causados por tutela cautelar, in verbis:
Art. 811. Sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que Ihe causar a execução da medida:
I – se a sentença no processo principal Ihe for desfavorável;
II – se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias;
III – se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808, deste Código;
IV – se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810).
O professor Cassio Scarpinella Bueno entendia que essa responsabilidade seria objetiva:
“A doutrina é uniforme no entendimento de que a responsabilidade prevista no dispositivo é objetiva, não subjetiva, razão pela qual o dever de o beneficiário da ‘medida cautelar’ responsabilizar-se pelos danos que causou com a medida independentemente de culpa sua. É mister, contudo, a demonstração de danos (materiais ou morais) e de que eles provêm da medida jurisdicional tal qual concedida e, se for o caso, cumprida, isto é, de seu nexo causal”. (BUENO, Cassio Scarpinella. “Curso sistematizado de direito processual civil”. V. 4. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 179)
Na vigência do CPC/15, essa responsabilidade vem prevista no art. 302 e a doutrina majoritária continua entendendo ser do tipo objetiva, como se vê, por exemplo, das lições de João Batista Lopes:
“O entendimento predominante é no sentido de que se cuida de responsabilidade objetiva. É que, ao acionar a máquina judiciária, o autor assume o risco decorrente do exercício da ação e, assim, pela teoria da causalidade, deve responder pelos prejuízos causados, independentemente de sua culpa”. (LOPES, João Batista; ASSIS, Carlos Augusto de. “Tutela provisória: tutela antecipada, tutela cautelar, tutela da evidência, tutela inibitória antecipada”. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018. p. 108)
No que se refere à jurisprudência, a reparação de danos pela teoria do risco-proveito é altamente requerida em situações tratando de benefícios previdenciários e há reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) defendendo a impossibilidade de se perquirir a existência de boa-fé em razão da falta de expectativa de definitividade quanto ao direito pleiteado e por ser a reversibilidade do provimento um dos requisitos da tutela liminar (E.g., STJ, EREsp 1.335.962/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Seção, DJe de 2/8/2013).
Entendemos, contudo, que algum aspecto subjetivo deveria sim ser levado em consideração para permitir a reparação pela parte que se beneficiou da decisão.
Consideremos, por exemplo, um caso em que a liminar é confirmada em segundo grau e até em sede de recurso especial. É evidente que essa situação deve permitir concluir pela existência de boa-fé e de uma legítima confiança quanto ao direito pleiteado.
O próprio STJ entende que a dupla conformidade de decisões definitivas gera expectativa legítima de titularidade do direito, não podendo fundamentar o pedido de devolução de valores. Confira-se:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
EXIGIBILIDADE DA DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL POSTERIORMENTE MODIFICADA. TEMAS REPETITIVOS 540 E 692/STJ. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO, TENDO EM VISTA A DUPLA CONFORMIDADE ENTRE SENTENÇA E ACÓRDÃO, ESTE MODIFICADO APENAS EM JUÍZO DE RETRATAÇÃO EM APELAÇÃO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. A dupla conformidade entre a sentença e o acórdão gera a expectativa legítima de titularidade do direito, advinda de ordem judicial com força definitiva, que caracteriza a boa-fé exigida de quem recebe a verba de natureza alimentar posteriormente cassada.
2. O fato de o tribunal de origem ter decidido pela improcedência do pedido, apenas em juízo de retratação da apelação, não tem o condão de afastar a aplicação da teoria da dupla conformidade. Precedentes.
3. Agravo interno desprovido.
(STJ, AgInt no AgInt no AREsp 1.955.341/MG, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Turma, DJe de 25/5/2022 – grifos nossos)
PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. SENTENÇA QUE DETERMINA O RESTABELECIMENTO DE PENSÃO POR MORTE. CONFIRMAÇÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DECISÃO REFORMADA NO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL. DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ.
- A dupla conformidade entre a sentença e o acórdão gera a estabilização da decisão de primeira instância, de sorte que, de um lado, limita a possibilidade de recurso do vencido, tornando estável a relação jurídica submetida a julgamento; e, de outro, cria no vencedor a legítima expectativa de que é titular do direito reconhecido na sentença e confirmado pelo tribunal de segunda instância.
- Essa expectativa legítima de titularidade do direito, advinda de ordem judicial com força definitiva, é suficiente para caracterizar a boa-fé exigida de quem recebe a verba de natureza alimentar posteriormente cassada, porque, no mínimo, confia – e, de fato, deve confiar – no acerto do duplo julgamento.
- Por meio da edição da súm. 34/AGU, a própria União reconhece a irrepetibilidade da verba recebida de boa-fé, por servidor público, em virtude de interpretação errônea ou inadequada da Lei pela Administração. Desse modo, e com maior razão, assim também deve ser entendido na hipótese em que o restabelecimento do benefício previdenciário dá-se por ordem judicial posteriormente reformada.
- Na hipótese, impor ao embargado a obrigação de devolver a verba que por anos recebeu de boa-fé, em virtude de ordem judicial com força definitiva, não se mostra razoável, na medida em que, justamente pela natureza alimentar do benefício então restabelecido, pressupõe-se que os valores correspondentes foram por ele utilizados para a manutenção da própria subsistência e de sua família. Assim, a ordem de restituição de tudo o que foi recebido, seguida à perda do respectivo benefício, fere a dignidade da pessoa humana e abala a confiança que se espera haver dos jurisdicionados nas decisões judiciais.
- Embargos de divergência no recurso especial conhecidos e desprovidos.
(STJ, EREsp 1086154/RS, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 19/03/2014 – grifos nossos)
Dever-se-ia aplicar a mesma lógica de dupla conformidade para o caso de tutelas provisórias. Ou seja, se uma tutela provisória é confirmada pelo tribunal não deveria ensejar a devolução de valores ou de eventualmente outros tipos de danos causados.
Outra situação a respaldar a boa-fé e que deveria ser levada em consideração é quando a tutela provisória é revogada em razão de mudança superveniente da jurisprudência então dominante. Se a responsabilidade pressupõe a análise do risco envolvido no momento do pedido da tutela provisória e este risco era baixo ou inexistente face ao entendimento jurisprudencial então vigente, não deveria o autor ser compelido a reparar danos à outra parte.
Sobre a limitação temporal
Nos casos em que a tutela provisória envolve recebimento de valores, tais como benefícios previdenciários, como admitir que a parte requerente seja obrigada a devolver todos os valores recebidos por 5, 7, 10 anos, se a tutela provisória perdurou por todo esse tempo?
A teoria do risco-proveito é baseada na reparação civil. Se uma pessoa agindo com dolo ou culpa causa danos a alguém e o lesado somente pode pedir reparação dos danos amargados nos últimos três anos, como se pode admitir que a reparação civil por danos ocasionados por uma decisão judicial não tenha alguma limitação temporal?
Vale dizer que o STJ já consignou que o termo da ação reparatória por danos causados por liminar é o trânsito em julgado da decisão em sentido contrário à decisão provisória:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECONSIDERAÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. VIOLAÇÃO DO ART. 489, § 1º, IV, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REPARAÇÃO PELOS DANOS CAUSADOS EM RAZÃO DE EXECUÇÃO DE LIMINAR REVOGADA. TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. AGRAVO INTERNO PROVIDO.
- Inexiste ofensa ao art. 489 do CPC quando a corte de origem examina e decide, de modo claro, objetivo e fundamentado, as questões que delimitam a controvérsia, não ocorrendo nenhum vício que possa nulificar o acórdão recorrido.
- O termo inicial da prescrição da pretensão de reparação de danos causados por liminar concedida e posteriormente revogada é a data do trânsito em julgado da correspondente ação de conhecimento.
- Agravo interno provido para se conhecer do recurso especial e dar-lhe parcial provimento.
(STJ, AgInt no AREsp 1725366/SP, Relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 25/09/2024 – grifou-se)
A dúvida que fica é o quanto se pode recuperar.
E a resposta deve ser três anos, tal como defendido pelo ministro Moura Ribeiro, no voto divergente manifestado no REsp 1.939.455/DF, embora sua posição não tenha prevalecido:
“A meu ver, a pretensão está fundada na reparação dos danos causados pela antecipação da tutela concedida e posteriormente revogada, o que configura a responsabilidade extracontratual e atrai a incidência do disposto no art. 206, § 3º, V, do CC/2002 (prescrição trienal): Art. 206. Prescreve: […] § 3º Em três anos: […] V – a pretensão de reparação civil; A pretensão representa a possibilidade juridicamente reconhecida de se exigir a satisfação do direito subjetivo em virtude de sua violação, estando, pois, diretamente ligada à exigibilidade de uma prestação.
Com efeito, a aplicação do prazo – e trienal – para delimitar a pretensão reparatória por revogação de liminar (ou seja, para pleitear os danos ocorridos até 3 anos antes do trânsito em julgado da decisão desfavorável) é a única coerente com o princípio da isonomia, permitindo que aquele que suporta danos causados pela tutela provisória não confirmada se encontre em situação análoga à de um terceiro prejudicado por ato ilícito.
Desse modo, ao contrário do entendimento adotado pela eminente Relatora, Ministra NANCY ANDRIGHI, a posição subjetiva de poder exigir do beneficiário do plano de previdência a devolução dos valores recebidos em decisão provisória não decorre do contrato de previdência celebrado pelas partes, mas sim do posterior decreto de improcedência da ação. A responsabilidade do requerente de medida cautelar decorre da natureza precária do provimento jurisdicional, amparado na probabilidade do direito invocado e no risco da demora, aferidos em juízo sumário de cognição, razão pela qual o legislador atribuiu ao requerente a assunção do risco pela opção da técnica de aceleração da prestação jurisdicional com o requerimento e execução da medida provisória”.
Com efeito, o fundamento da pretensão de reparação de danos pela teoria do risco-proveito somente pode ser a responsabilidade civil extracontratual e esta observa o prazo do art. 206, §3º, V, do Código Civil. O dano adveio de um ato baseado em decisão judicial pleiteada pelo autor.
Conforme defendido pelo STJ em vários julgados, “Nas relações jurídicas de trato sucessivo, quando não estiver sendo negado o próprio fundo de direito, pode o contratante, durante a vigência do contrato, a qualquer tempo, requerer a revisão de cláusula contratual que considere abusiva ou ilegal, seja com base em nulidade absoluta ou relativa. Porém, sua pretensão condenatória de repetição do indébito terá que se sujeitar à prescrição das parcelas vencidas no período anterior à data da propositura da ação, conforme o prazo prescricional aplicável”. (E.g., REsp 1360969/RS, Relator Ministro MARCO BUZZI, DJe 19/09/2016).
A pretensão de reparação civil pecuniária, em todos os casos, somente pode se referir ao que foi pago a maior ou deixou-se de receber no período de três anos compreendidos no interregno anterior à data do ajuizamento da ação.
Qual seria a razão para se admitir um prazo maior ou a própria inexistência de limitação no caso de danos advindos de decisão liminar?
Vale dizer que, nas pretensões de natureza trabalhista e tributária, há também um limite temporal que veda que o reconhecimento de um direito permita a compensação dos atos contrários a tal direito de forma ilimitada. A repetição de indébitos tributários está limitada pelo art. 168 do Código Tributário Nacional aos pagamentos realizados nos últimos cinco anos. Com o mesmo prazo, a pretensão em reclamações trabalhistas está limitada às verbas anteriores aos últimos cinco anos do ajuizamento do pleito (art. 11 da Consolidação das Leis do Trabalho).
Para continuar no exemplo de parcelas previdenciárias recebidas indevidamente por força de decisão judicial proferida em sede de cognição sumária, por se tratar de relação de trato sucessivo, deve-se permitir o ressarcimento das parcelas anteriores aos últimos três anos precedentes ao trânsito em julgado da decisão favorável.
Conclusão
Ainda que se defenda que a teoria do risco-proveito na tutela provisória seja uma forma de tornar as pessoas mais conscientes e responsáveis ao pleitear tal provimento ao Judiciário, entende-se difícil defendê-la quando esta decisão proferida em sede de cognição sumária é confirmada em outras instâncias e está amparada em entendimento jurisprudencial dominante à época em que proferida.
Dois mitigadores dessa situação devem ser (i) a aplicação da boa-fé e o princípio da confiança legítima e a (ii) aplicação do prazo prescricional trienal, permitindo a reparação dos danos amargados nos últimos três anos precedentes ao trânsito em julgado da decisão favorável, que é o termo inicial para pleitear essa reparação.