Omissões legislativas inconstitucionais como déficit de institucionalidade

O fenômeno das omissões inconstitucionais é certamente um dos mais importantes pontos de tensão nas relações entre direito e política que naturalmente desagua na jurisdição constitucional.

Com efeito, tramitam atualmente perante o Supremo Tribunal Federal diversas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão sobre os mais diversos temas, entre os quais estão a ADO 70 (período em que estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios), ADO 73 (proteção dos trabalhadores face à automação), ADO 83 (proteção do mercado de trabalho da mulher), ADO 40 (criação da justiça de paz), ADO 55 (instituição do imposto sobre grandes fortunas) e a ADO 86 (indefinição quanto à expressão “relevante interesse público da União” para fins de reconhecimento, demarcação, gestão e uso das terras indígenas).

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

A problemática da omissão inconstitucional tem duas grandes dimensões. Em primeiro lugar, sua própria constatação é por vezes tormentosa, mormente se considerarmos que, passados quase 37 anos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas das omissões que permanecem são parciais ou implícitas e não propriamente desobediências a comandos expressos de legislar, algo que obviamente não se aplica à ADO 55, que trata do comando previsto pelo art. 153, VII da CF.

Mas a grande dificuldade no campo das omissões inconstitucionais é evidentemente o de seu solucionamento. Afinal, não seria plausível conceder ao STF a possibilidade de determinar ao Congresso Nacional a emissão desta ou daquela lei, ao menos não sem grave violação à tripartição de poderes, até mesmo porque os tempos do direito e da política são bastante diversos.

A Constituição Federal não poupou esforços para evitar que certas disposições constitucionais permanecessem meras promessas. Para tanto, instituiu entre nós a ação direta por omissão e o mandado de injunção, ambos institutos cujas potencialidades ainda certamente não foram esgotadas, seja pela doutrina ou pela jurisprudência.

Se é verdade que nos anos que se seguiram à promulgação da Carta de 1988 o STF foi bastante tímido em dar eficácia ao MI, limitando-se a provê-los para cientificar o Congresso de sua mora e, por consequência, praticamente o equipará-lo à ADO, já há algum tempo a prática de nossa Corte Constitucional tornou-se mais arrojada, agregando às decisões de inconstitucionalidade por omissão pronúncias de normatividade, função principal desempenhada pelo mandado de injunção.

Ainda assim, as capacidades do STF de colmatar omissões é naturalmente limitada, não só pelo déficit de legitimidade, como, também, pelo fato de que muitas delas requerem políticas públicas amplas com impactos orçamentários e necessidades estruturais que não podem ser supridas pela corte.

Mas se o STF não pode obrigar o Legislativo a legislar sem ferir a tripartição de poderes e tem um escopo de ação relativamente limitado no que diz respeito à implementação de suas decisões nessa seara, me parece igualmente preocupante o quão confortável o Congresso Nacional tem se mostrado em manter no plano das promessas tantas disposições constitucionais.

É evidentemente muito dificil dar uma resposta unificada às razões subjacentes a cada uma das alegadas omissões que pendem de análise pelo STF, até mesmo porque elas tratam de assuntos vários; de qualquer modo, o silêncio eloquente do Congresso a respeito desses assuntos nos diz muito.

Algumas das omissões mencionadas acima parecem claramente relativas a posturas corporativistas (caso da justiça de paz), em que o Judiciário se recusa a dividir suas prerrogativas de “dizer o direito”. Tantas outras, por sua vez, carregam as marcas do nosso passado (e presente) oligárquico, como é o caso da ocupação de terras indígenas e da taxação de grandes fortunas. Não raras vezes em nossa história, como é de sabença, projetos nacionais foram preteridos em favor de projetos de elites regionais.

A resistência em proteger trabalhadores urbanos e rurais o direito social à proteção em face da automação nos remete, ainda, a posturas que nossas classes altas guardam como heranças de comportamentos senhoris de épocas em que o trabalho pouco qualificado era abundante e largamente utilizado. É interessante para a manutenção de certas hierarquias que vastas massas continuem precarizadas e, desse modo, amplamente disponível a baixo custo.[1]

Já no que diz respeito à questão dos municípios, é essencial reconhecer que ela tem contornos eleitorais, tributários e orçamentários, além de que disputas entre entes federativos – especialmente entre posições mais estadualistas ou mais unionistas – são frequentes na história da república.[2] Vale dizer, um município é sempre uma peça nova no tabuleiro político das influências locais.

Outras questões como de classe, cor, proteção da mulher no mercado de trabalho e taxação de grandes fortunas também têm antecedentes históricos nas desigualdades sociais que atravessam o Brasil desde sempre. Elas prestam homenagem ao nosso passado escravista, excludente, patrimonialista e autoritário em potência. Mentalidades são difíceis de mudar e a nossa parece estar sempre permeada daquela cordialidade buarquiana que “evita as hierarquias para, no silêncio, reafirmá-las”.[3]

A existência de tantas omissões congressuais mostra indubitavelmente déficits de normatividade da Constituição e da execução de seu programa político. Se os projetos da Constituição não são implementados por lei, há, em algum grau, defasagem na vinculação do próprio texto constitucional. Não pode existir entre os parlamentares a ideia de que alguns dispositivos constitucionais são mais obrigatórios do que outros. Trata-se de uma mentalidade que favorece o clientelismo e a permanência de formas oligárquicas de pensar o país.

É inequívoco que todos os dispositivos constitucionais produzem alguma eficácia imediata, ainda que meramente hermenêutica ou programática, vale dizer, destinada a mandar que algo seja feito. Não cabe aos congressistas decidir quais pontos da Constituição devem ou não ser realizados, pois tais escolhas já foram feitas pelo constituinte.

As omissões inconstitucionais representam déficit de institucionalidade e, em última análise, que certas promessas constitucionais permanecem apenas isso: promessas. Como não há sanção efetiva, as questões omissas acabam ficando ao sabor dos ventos políticos ou até mesmo regulamentadas pelo STF, que posteriormente recebe, inevitavelmente, críticas muitas vezes injustas.

Apesar de todas as omissões serem lamentáveis, aquelas referentes a questões de gênero e cor, bem como as questões indígenas, são particularmente problemáticas porque se referem a mazelas sociais antigas do nosso país e impedem que, por aqui, as promessas da modernidade se cumpram efetivamente.

Ainda assim, arriscamos algum otimismo. Afinal, o controle das omissões, se bem compreendido, pode ser um momento precioso de diálogo entre poderes. O controle das omissões inconstitucionais em chave dialógica pode tornar o Congresso Nacional um partícipe mais presente no controle de constitucionalidade e propiciar uma tradição que caminhe para um controle menos conflituoso.

O STF poderia produzir decisões que se conciliam com a agenda futura do Legislativo, da mesma forma que o Congresso poderia acelerar a adequação da sua agenda legislativa aos ditames fixados pela jurisdição constitucional brasileira.[4]


[1] Cf. Leonardo Avritzer. Impasses da Democracia no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

[2] Cf. Christian Edward Cyril Lynch. “Entre o judiciarismo e o autoritarismo: O espectro do poder moderador no debate político republicano (1890-1945)”. In: História do Direito: RHD, Curitiba, v. 2, n. 3, 2021, p. 82-116.

[3] Lilia Moritz Schwarcz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro, Companhia das Letras, 2019, Cap. 8, livro digital.

[4] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 616 e ss.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.