Desequilíbrios à concorrência causados pelo devedor contumaz de tributos

Tributos afetam preços e consequentemente as estratégias empresariais e a competição. Qualquer eventual dúvida sobre essa afirmação foi suplantada pelo episódio do ‘tarifaço’ americano que, no início de 2025, abalou a economia mundial com uma expressiva majoração de alíquotas de importação.

Diligência em matéria tributária é essencial para o desenvolvimento. Essa regra vale para o âmbito arrecadatório, e mais ainda para a repressão de atos e agentes prejudiciais ao regular funcionamento do mercado.

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Exatamente nesse contexto encontra-se a discussão sobre a regulamentação do art. 146-A da Constituição Federal, introduzido no final de 2003 pela Emenda nº 42, prevendo uma lei complementar disciplinadora de “critérios especiais de tributação” com o fim de evitar “desequilíbrios à concorrência”. Debate esse que se apresenta como sendo de extrema relevância quando abordamos a questão da sonegação sistemática pelo devedor contumaz.

Passados mais de vinte anos desde a previsão constitucional ainda pairam discussões sobre o assunto, sendo uma das mais complexas a potencial satisfatoriedade da já existente legislação antitruste para tratar do tema, desdobrando-se em um eventual conflito de competência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE com os órgãos fazendários.

Trata-se de temática relevante e profunda em razão das particularidades jurídicas e econômicas dos casos de infrações à concorrência. Ilustra a relevância da discussão o fato de o Depto. de Estudos Econômicos (“DEE”) do CADE já ter se manifestado sobre um projeto de lei destinado à regulamentação do Art. 146-A recomendando sua não aprovação1.

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O CADE já teve a oportunidade de analisar casos sobre questões tributárias geradoras de prejuízos à concorrência. Embora existam causas diversas, como um benefício estatal ou a evasão sistemática, e mesmo reconhecendo que os casos de evasão possuem particularidades, a análise da jurisprudência para casos de sonegação denota uma postura geral do órgão antitruste de enquadrar tais casos como preço predatório e ao final arquivá-los pela não comprovação do ilícito2.

A atuação do CADE está coerente com o embasamento antitruste do nosso ordenamento jurídico. O alicerce constitucional já indica a diferenciação de dispositivos e tratamento à repressão de danos à concorrência: enquanto a Lei 12.529/11 retira sua legitimação do art. 173, § 4º, cujo objetivo é reprimir o dano à concorrência decorrente de abuso do poder econômico, o Art. 146-A possui essência tributária e prevê como medida a adoção de critérios especiais de tributação. Diferentes causas exigem diferentes remédios.

Essa diferença de fundamento constitucional permite vislumbrar aspecto essencial do desencaixe do atual arcabouço de defesa antitruste ao devedor contumaz: para a sonegação sistemática gerar prejuízos à concorrência não haverá necessidade de “poder de mercado”. Poder de mercado é aspecto central do antitruste e pressupõe relevância, porte, notoriedade. O devedor contumaz, em regra, não possui e evitará deter tais requisitos, preferindo atuar às escondidas, por intermédio de grupos econômicos dispersivos e “laranjas”.

A configuração de certos mercados, ao mesmo tempo que incentiva, capacita o agente devedor a infligir severos danos à concorrência, chegando ao limite de inviabilizar a permanência de competidores. São elementos usais para tanto: elevada e intrincada tributação, baixas margens, faturamento expressivo, complexidade regulatória/operacional promovendo certo nível de barreiras.

Certamente o CADE poderia e deveria atuar em casos de danos tributários à concorrência valendo-se do arcabouço normativo e interpretações afetas à sua expertise3. Essa possibilidade, porém, não deve impedir atuações de outros agentes utilizando mecanismos diferentes. Se o infrator se vale de uma multiplicidade de estratagemas para alcançar seu fim escuso, deve o poder estatal adotar, no mínimo, igual empenho para ampliar sua capacidade combativa.

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Por certo, essa nova regulamentação deve endereçar questões sensíveis sob o viés concorrencial, como o próprio CADE, via DEE, já vem indicando nos debates sobre o tema. Cabe ainda atentar para outros aspectos relevantes, sobretudo: i) caracterizar devidamente o devedor contumaz: há diversos motivos para não pagar tributo e cada caso demanda seu tratamento; ii) assegurar o devido processo legal, tanto no âmbito administrativo como judicial, respeitando as garantias já vigentes; iii) prever mecanismos tributários para o reequilíbrio da concorrência.

O estágio atual da discussão parlamentar sobre o tema já demonstra um relevante avanço sobre esses e outros aspectos4, com notável destaque para a devida caracterização do devedor contumaz partindo de aspectos fiscais tangíveis, como a materialidade do débito, a sua contumácia, seja pela repetição ou duração, e ainda o aspecto volitivo, na forma de ausência de justificativas para a inadimplência. Essa concreta conformação tributária para identificar o problema afasta a necessidade de análise prévia do CADE, que se exigida tornaria inócua a tão desejada melhoria do portfólio de combate estatal.

Os remédios tributários em discussão possuem igual concretude. Citemos como exemplos a adoção de procedimentos mais rigorosos de fiscalização, modificações na estrutura do tributo, seja antecipando o fato gerador ou adotando alíquota especial, e sanções fiscais como a perda de benefícios ou licença. Tais medidas, observados os direitos fundamentais de defesa, são legítimas e não caracterizam sanção política, como o STF já teve oportunidade de indicar no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.952 no final de 2023, sobre o cancelamento do registro no mercado de tabaco do devedor contumaz5.

Acreditamos, por todo o exposto, não restar dúvidas sobre a capacidade de o devedor contumaz desequilibrar a concorrência, bem como sobre a ausência de uma solução simples. É naturalmente difícil combater quem se estruturou para a evasão e explora justamente as fragilidades do sistema atual para obter a pretendida impunidade. Podemos comparar a situação com a de uma doença grave em que os malefícios à saúde são evidentes, mas o tratamento não é tão óbvio e exige múltiplas intervenções.

Urge, portanto, avançar com a regulamentação da situação do devedor contumaz, conferindo completude ao Art. 146-A da Constituição para enfrentar os desequilíbrios à concorrência causados por desvios tributários. O diálogo com o arcabouço e autoridades antitruste é extremamente útil à discussão e não deve gerar empecilhos ao seu avanço, mas ao contrário, ajudar a obter a devida complementariedade e efetividade da atuação estatal.

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1 NOTA TÉCNICA Nº 9/2023/DEE/CADE disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/advocacy/QIP-2023/Nota%20tecnica%2009%20-%20SEI_CADE%20-%201216514%20-%20080270001962023-41.pdf Acesso em 20/03/2025. Oportuno observar que o referido projeto de lei vem sendo aprimorado desde a análise realizada em 2023 e o DEE segue participando das discussões legislativas.

2 Sobre o tema merece destaque a análise produzida pelo ex-presidente do CADE, Vinícius Marques, onde comenta diversos casos envolvendo questões tributárias: MARQUES, Vinícius; MATTIUZZO, Marcela; Tributação e Concorrência: Uma análise da evasão fiscal como ilícito con­correncial. RDC, VOL. 9, nº 2. Dezembro 2021 p. 51-74.

3 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/fronteiras-concorrencia-regulacao/devedores-contumazes-e-concorrencia-um-espaco-para-acao-do-cade Acesso em 02/06/205.

4 Partindo do estágio atual e mais recente desse debate, cumpre fazer notar a existência de ao menos dois projetos de lei complementar (PLP) em andamento relativamente avançado no Congresso sobre o tema: PLP 164/22 e o PLP 125/22 os quais já buscam em boa medida endereçar esses pontos.

5 https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15365159098&ext=.pdf

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