No último dia 1º de junho, os Estados Unidos Mexicanos realizaram, pela primeira vez em sua história, eleições diretas para a composição do Poder Judiciário, marco emblemático de um processo de reforma institucional que tem suscitado intensos debates quanto à sua compatibilidade com os princípios estruturantes do Estado de Direito.
A consulta popular resultou na escolha de 2.681 integrantes da magistratura nacional, incluindo todos os ministros da Suprema Corte de Justiça da Nação, representando uma ruptura paradigmática com os modelos tradicionais de nomeação judicial.[1]
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A medida insere-se no escopo da reforma promovida durante o governo do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador e levada adiante por sua sucessora, a atual presidente Claudia Sheinbaum, ambos defensores da tese de que a democratização do processo de seleção de magistrados seria instrumento eficaz para o combate à corrupção sistêmica no Judiciário. Segundo seus proponentes, o sistema anterior estaria capturado por uma elite técnico-burocrática, alheia aos interesses da maioria da população.
O presente artigo busca examinar criticamente tal medida, à luz dos princípios fundamentais que estruturam o Estado de Direito, notadamente a independência judicial, a separação dos poderes e a garantia da jurisdição como instrumento de proteção dos direitos fundamentais.
Autonomia judicial e o populismo de toga: os perigos da legitimação eleitoral no exercício da jurisdição
A imparcialidade judicial, fundamento da função jurisdicional, exige uma configuração institucional que imunize o magistrado contra pressões conjunturais. Como sustenta Ferrajoli, a jurisdição não deve ser submetida à lógica da representação política, mas fundada na legalidade, tecnicidade e neutralidade decisória.[2]
Nesse sentido, a introdução de mecanismos de eleição direta de juízes sujeita os magistrados à lógica de aprovação popular, a pressões midiáticas e à necessidade de angariar apoio político ou econômico para suas candidaturas. A imparcialidade passa, assim, a competir com a necessidade de responder a interesses eleitoreiros, corroendo os alicerces do Estado de Direito.[3]
Esse contexto de fragilidade institucional não é isolado. Como apontam Müller[4] e Gargarella[5], a ascensão de regimes populistas na América Latina tem promovido a instrumentalização do Judiciário como mecanismo de legitimação de projetos de poder, por meio da deslegitimação de seus membros e da reconfiguração de sua estrutura institucional, em descompasso com os princípios do constitucionalismo democrático.
A judicialização da política e a politização da justiça: o paradoxo democrático da eleição de magistrados
A Comissão de Veneza, órgão consultivo do Conselho da Europa em matéria constitucional, tem consistentemente se posicionado contra a eleição popular de magistrados. Em seus pareceres e relatórios, a Comissão enfatiza que a independência judicial é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito e que a eleição direta de juízes pelo povo pode comprometer essa independência.
Em pareceres sobre reformas judiciais em países como Geórgia e Sérvia, a Comissão de Veneza expressou preocupações sobre a politização dos processos de nomeação de juízes e recomendou salvaguardas contra a influência política nas nomeações judiciais.[6]
Nos Estados Unidos, por sua vez, a eleição popular de juízes em âmbito estadual é uma prática historicamente consolidada, mas objeto de severas críticas na literatura especializada.[7] Pesquisas empíricas demonstram que o ambiente eleitoral influencia substancialmente o comportamento judicial, pressionando magistrados a adotar posicionamentos estratégicos e decisões sensíveis à opinião pública e aos interesses de campanha, em detrimento da neutralidade técnica. Trata-se de uma distorção que fragiliza a independência judicial e compromete o ideal de imparcialidade decisória.[8]
Como aponta Geyh[9], a dinâmica das eleições judiciais, especialmente nos sistemas que adotam o sufrágio direto, impõe aos magistrados-candidatos uma crescente dependência de financiamento privado, comprometendo a percepção pública de sua neutralidade. Em regra, os principais financiadores dessas campanhas são advogados, escritórios ou partes com interesses diretos em processos sob julgamento, o que cria um ambiente propenso à captura institucional, ainda que de forma indireta.
A isso se soma o desafio ético enfrentado pelos candidatos ao tentarem expor suas posições sobre temas de alta sensibilidade — como aborto, armas, políticas públicas — sem incorrer no prejulgamento de controvérsias que podem futuramente ser submetidas à sua jurisdição.
Tal cenário tensiona a função jurisdicional, distanciando-a dos parâmetros de imparcialidade e reserva institucional que caracterizam o modelo constitucional garantista. Nesse mesmo sentido, a autoridade do juiz, antes ancorada na isenção e na técnica, passa a disputar espaço com sua capacidade de se comunicar, conquistar eleitores e arrecadar fundos. A justiça, assim exposta, deixa de ser função e passa a ser performance — com impactos profundos sobre sua legitimidade.[10]
Considerações finais
A legitimidade do Judiciário não reside no sufrágio, mas na confiança pública em sua neutralidade, competência e fidelidade à Constituição. A transformação dos juízes em agentes eleitorais vulnera a função essencial da magistratura: a aplicação do Direito com isenção. A reforma mexicana, sob o pretexto de democratização, encerra um perigoso precedente de subversão institucional, cuja adoção pode comprometer seriamente os alicerces da democracia.
Dessa forma, a eleição direta de magistrados no México inscreve-se como um encontro dramático — e assimétrico — entre Carl Schmitt e Montesquieu. Ao eliminar a distância entre jurisdição e representação política, a reforma mexicana funde o papel do julgador ao da vontade popular, convertendo a imparcialidade em mera aparência e a toga em instrumento de legitimação do poder.
O Judiciário, assim transformado em extensão do soberano, perde sua função contramajoritária e desfigura a arquitetura do Estado de Direito. Quando a política captura a justiça sob o pretexto de democratizá-la, não se fortalece a democracia — sacrifica-se a sua espinha dorsal.
[1] Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c0k316xk1r5o; Acesso em 6 de junho de 2025.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 762.
[3] ROSE-ACKERMAN, S. (2007). Judicial independence and corruption. Transparency International, Global Corruption Report, pp. 15-24.
[4] MÜLLER, Jan-Werner. (2016) O que é o populismo? Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Zahar, pp. 66-75.
[5] GARGARELLA, Roberto. (2014) A sala de máquinas da Constituição: duas tradições sobre o controle do poder constituído. São Paulo: WMF Martins Fontes, pp. 115-124.
[6] Disponível em: https://www.venice.coe.int/webforms/documents/default.aspx?pdffile=CDL-PI(2025)003-e; Acesso em 7 de junho de 2025.
[7] GIBSON, J. L., LODGE, M., & WOODSON, B. (2014). Losing, but accepting: Legitimacy, positivity theory, and the symbols of judicial authority. Law & Society Review, 48(4), pp. 837-866.
[8] CHRISTENSEN, Robert K.; SZMER, John. (2012). Examining the efficiency of the U.S. courts of appeals: Pathologies and policy implications. Justice System Journal, v. 33, n. 3, pp. 317-340.
[9] GEYH, Charles G. (2016) Courting Peril: The Political Transformation of the American Judiciary. New York: Oxford University Press, pp. 128-133.
[10] SCHOTLAND, Roy A. (2001). New Challenges to States’ Judicial Selection. Georgetown Law Journal, v. 95, n. 4, p. 1.420.