O STF às voltas com a responsabilidade dos intermediários

O Supremo Tribunal Federal está diante de uma encruzilhada técnico-política ao julgar os Recursos Extraordinários 1.037.396 e 1.057.258, que tratam da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e que pode mudar a internet como conhecemos.

Os votos já proferidos no plenário — por Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e André Mendonça — indicam que há mais em jogo do que a divergência natural entre ministros. O que se revela é uma dificuldade técnica séria para compreender a natureza da internet e a estrutura fundacional que a sustenta.

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Ao contrário do que se pensa, o problema não está na existência de quatro votos distintos entre si, mas na lógica e nas premissas adotadas em cada um deles. Há um desalinhamento entre os modelos de responsabilização propostos e a forma como a rede efetivamente opera — um descompasso que pode ter consequências graves para a segurança jurídica, a liberdade de expressão e a integridade da arquitetura da rede brasileira.

O voto do ministro Dias Toffoli, que se posicionou pela inconstitucionalidade do artigo 19, propôs uma mudança de paradigma. Em sua visão, o modelo atual cria uma “imunidade legal” indevida para as plataformas. Em vez de simplesmente anular a regra, ele sugeriu a adoção de um novo regime geral inspirado no artigo 21 do MCI (o modelo de “notificação e retirada”), no qual a responsabilidade da plataforma nasceria a partir de uma notificação extrajudicial.

Além disso, defendeu a responsabilidade objetiva (independente de culpa) para hipóteses específicas e graves, como impulsionamento de conteúdo, uso de perfis falsos e crimes graves, criticando o que considera um modelo obsoleto e incapaz de proteger adequadamente os direitos fundamentais.

Logo depois, o ministro Luiz Fux, seguindo uma linha semelhante de inconstitucionalidade, argumentou que a proteção à liberdade de expressão não pode ser um escudo para a inércia das plataformas. Defendeu que, ao tomarem “ciência inequívoca da ilicitude” — seja por notificação extrajudicial ou por evidências manifestas —, as plataformas deveriam realizar a remoção imediata, com o conhecimento da ilicitude sendo presumido no caso de conteúdos impulsionados.

Sua proposta também exige um monitoramento ativo para conteúdos “evidentemente ilícitos”, como discursos de ódio e pedofilia, o que na prática instituiria um regime de remoção preventiva com alto risco de censura privada e remoção excessiva de conteúdo.

Já o ministro Luís Roberto Barroso apresentou uma alternativa mais moderada, propondo a inconstitucionalidade parcial do artigo 19, de modo a preservar a exigência de ordem judicial para a maioria dos casos, especialmente aqueles que envolvem análise subjetiva, como crimes contra a honra. Contudo, o ministro propôs um “dever de cuidado” para as plataformas, cuja falha sistêmica em prevenir riscos geraria responsabilidade subjetiva.

Para crimes com tipificação objetiva e evidente (como terrorismo ou crimes contra crianças), a remoção poderia ocorrer após notificação. Assim, a proposta do ministro Barroso reconhece a assimetria entre os atores da internet e tenta calibrar as obrigações, mas a definição prática do “dever de cuidado” e de suas falhas sistêmicas permanece um desafio operacional.

Por fim, o ministro André Mendonça defendeu a constitucionalidade do artigo 19. Sua principal contribuição foi a ênfase na necessidade de uma regulação assimétrica, que diferencie alguns tipos de intermediários (mensageria privada, marketplaces, redes sociais) e suas responsabilidades. Ele propôs um modelo de “autorregulação regulada”, no qual as plataformas devem adotar programas de compliance e protocolos de moderação transparentes e com devido processo (direito de recurso, motivação da remoção), sujeitos a uma supervisão estatal.

Além disso, Mendonça defendeu a separação de poderes e argumentou que, salvo exceções legais estritas, a responsabilidade deve recair sobre o autor do conteúdo, e não sobre a plataforma, cujo papel seria cooperar com a identificação do usuário.

Com o placar em aberto e a responsabilidade do próximo voto recaindo sobre o ministro Flávio Dino, a análise das propostas revela um ponto cego comum a quase todas elas: a ausência de uma visão clara sobre como funciona a internet.

É fundamental que esta reflexão paute os próximos passos do julgamento, pois a rede não é um sistema homogêneo, onde todos os agentes têm controle ou responsabilidade equivalentes. Ao contrário, opera em camadas técnicas interdependentes, onde em sua base, existem múltiplas tecnologias de rede (como Ethernet ou circuitos ponto a ponto); no topo, uma diversidade quase que infinita de aplicações (como redes sociais, marketplaces, serviços de e-mail). O elo entre essas camadas está em uma camada intermediária, comum e padronizada — IP, TCP, DNS — que permite que tudo funcione sem exigir que cada aplicação conheça ou controle toda a cadeia.

É essa arquitetura que torna possível, por exemplo, que um provedor de DNS possa operar de forma neutra em relação a conteúdos publicados em uma rede social; ou que um serviço de cache apenas otimize o tráfego de dados, sem qualquer ingerência sobre o conteúdo que transita. Ignorar essa distinção e aplicar a mesma lógica jurídica a todos os intermediários é comprometer o próprio funcionamento da rede.

O artigo 19 do Marco Civil foi desenhado para preservar esse equilíbrio. Ao condicionar a responsabilização à existência de ordem judicial, ele protege todos os tipos e funções de intermediários, sem deixar os usuários à mercê da desinformação ou de discursos de ódio.

Seu eventual aperfeiçoamento é legítimo — mas deve ser feito com clareza, proporcionalidade e sob conhecimento técnico adequado e, acima de tudo, a partir de um critério funcional que diferencie os intermediários que operam como um canal agnóstico por onde passa conteúdo ou informação, daquele que ativamente modela, promove e lucra com a circulação de conteúdo.

Há caminhos para o Supremo evitar um desfecho conflituoso. Antes de mais nada, a experiência recente da ADPF 635 (ADPF das Favelas), julgada em decisão per curiam (isto é, um texto único que expressa a posição coletiva do tribunal e não a soma dos votos individuais de todos os ministros), mostra que a corte pode produzir um texto único, com coesão interna e impacto normativo claro. Aplicar essa metodologia ao julgamento da constitucionalidade do artigo 19 seria um avanço institucional e uma resposta à altura da complexidade do tema.

Entretanto, mesmo um voto unificado pode falhar se não partir de um diagnóstico técnico correto. O primeiro passo é reconhecer que a internet é um ecossistema altamente diverso e que decisões mal calibradas podem afetar não só redes sociais, mas também o funcionamento básico de toda a rede.

A história da internet mostra que alterações feitas sem compreender os efeitos sistêmicos podem gerar efeitos cascata, imprevisíveis e prejudiciais a terceiros completamente alheios ao problema original. Da mesma forma, decisões judiciais que alteram o regime de responsabilização sem distinção técnica replicam esse risco em escala.

Portanto, o STF tem diante de si a chance de não apenas decidir um caso, mas de estruturar o futuro da internet no Brasil. Para isso, precisará fazer mais do que aplicar doutrinas jurídicas sobre liberdade de expressão ou responsabilidade civil: terá de aprender a linguagem da rede das redes.

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