Como fica o controle do uso de recursos no Agora Tem Especialistas?

A Medida Provisória com regras gerais do programa Agora Tem Especialistas publicada nesta semana está longe de ser unanimidade. A princípio bem recebido por setores que podem ter suas dívidas reduzidas em troca da prestação de serviços para o Sistema Único de Saúde (SUS), como planos de saúde e unidades particulares, o texto foi tratado com cautela pela Frente Pela Vida, entidade que reúne organizações que conhecem a fundo o sistema de saúde no país. 

Como apenas uma parte da proposta foi apresentada (são esperadas publicações de portarias e decretos), há ainda muitas dúvidas sobre a estratégia desenhada pelo governo para reduzir as filas de espera para atendimento em áreas prioritárias: oncologia, otorrino, oftalmologia, cardiologia, saúde da mulher e ortopedia.

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Com base na MP, a Frente Pela Vida questiona, por exemplo, a efetividade de se abater dívidas de planos de saúde com o SUS por meio de atendimento feito no programa do Ministério da Saúde.

“Vestir um santo”

Entidades que assinam o documento observam que planos (com exceção dos que têm rede própria) também contratam serviços para atender seus clientes. 

Como uma contratação realizada por essas empresas poderia ser mais efetiva, por exemplo, do que a contratação feita pelo próprio SUS, indagam. “Na nossa avaliação, o sistema de troca de serviços por dívidas pode ser uma saída, mas apenas no caso de estabelecimentos de saúde, como hospitais”, afirmou ao JOTA Francisco Funcia, presidente da ABrES (Associação Brasileira de Economia da Saúde), que também assina o documento.

Mas há outros pontos. Em entrevista à repórter Vilhena Soares, o deputado Duarte Júnior (PSB-MA) não descarta o risco de que, no empenho para ter sua dívida com o SUS reduzida, algumas empresas de saúde suplementar possam sobrecarregar os serviços que hoje já encontram dificuldades para atender usuários de planos. 

Pelo raciocínio do deputado, seria essencial ter regras claras para garantir que estes serviços ampliem sua capacidade de atendimento, de forma a evitar a estratégia conhecida como “desvestir um santo para vestir outro”.

Ressarcimento

Na saúde suplementar há outro aspecto. Sem regras para coibir abusos, abriria-se uma oportunidade para que empresas escolhessem quais serviços gostariam de atender. O ressarcimento ao SUS é uma dívida criada nos casos em que usuários de planos são atendidos no sistema público, em vez de serem atendidos em serviços oferecidos na saúde suplementar. Por que isso acontece?

Atendimentos de urgência, como partos ou acidentes de trânsito, são muito comuns. Mas há também casos de cirurgias, diálises, o que demonstra falha na própria rede de atendimento. 

O ressarcimento ao SUS foi criado justamente para se tentar coibir essa transferência do paciente da saúde suplementar para o sistema público. Se é possível quitar esta dívida de forma mais conveniente para as empresas, qual o incentivo para que falhas sejam de fato corrigidas? Talvez as respostas venham das normas que o Ministério da Saúde pretende ainda publicar. Mas seria muito importante que o tema já começasse a ser discutido com a sociedade.

Debate

A discussão com representantes do SUS, no entanto, ainda não foi feita. A MP foi preparada sem consulta a representantes de secretarias estaduais ou municipais de saúde. Antes da edição da MP, uma rápida conversa foi realizada, mas não houve uma construção conjunta. 

Esta conduta do Ministério da Saúde foi criticada e provocou um desconforto mesmo entre técnicos da pasta.

O Sistema Único de Saúde é descentralizado. União, estados e municípios têm atribuições distintas. Cabe à União sobretudo coordenar as ações e propor melhorias. A espinha dorsal da MP, no entanto, permite que a União contrate diretamente serviços e profissionais, em casos de emergência. 

Ainda não se sabe o que será definido como emergência e quanto tempo isso poderá perdurar. Há quem fale que as medidas poderiam durar cinco anos, o tempo previsto na Medida Provisória.

Independência

Técnicos observam, no entanto, que esta atuação direta do Ministério da Saúde poderia reduzir a independência e atribuições dos gestores locais. Mais ainda, poderia haver uma espécie de canibalização em busca de serviços. 

Como o número de especialistas não é alto no país, prefeituras, estados e União acabariam por disputar por profissionais. E serviços poderiam optar por fazer contratos com o ministério, em vez de fazer contratos com estados ou municípios. 

Na avaliação destes técnicos, as medidas, a médio prazo, colocariam em risco uma estrutura que vem sendo criada pelo SUS e abririam a possibilidade de uma dependência crônica de estruturas privadas.

Zona cinzenta

Há também um problema legal. Para técnicos ouvidos pelo JOTA,  a possibilidade de ressarcimento ao SUS por meio da prestação de serviços por operadoras de planos privados pode ser incompatível com dispositivos da Lei Complementar 141/2012, norma central na regulamentação do financiamento e da execução das ações e serviços públicos de saúde.

Embora a MP não altere expressamente o texto da LC 141/2012, introduz uma dinâmica de execução financeira que contraria preceitos do financiamento do SUS. 

A LC estabelece que a movimentação dos recursos públicos da saúde deva ocorrer exclusivamente por meio dos Fundos de Saúde, sob gestão pública e com controle social. A obrigatoriedade é expressa no art. 2º, parágrafo único, que dispõe que as despesas com ações e serviços públicos de saúde realizadas pelos entes federativos “deverão ser financiadas com recursos movimentados por meio dos respectivos fundos de saúde”.

A forma alternativa de compensação criada pela MP — que substitui o repasse financeiro ao Fundo Nacional de Saúde pela entrega direta de serviços — rompe com esse princípio.

Técnicos ouvidos pela reportagem asseguram que tal mecanismo pode dificultar a rastreabilidade das ações, criando, nas palavras de uma fonte ouvida pelo JOTA, “uma zona cinzenta entre o financiamento público e a atuação privada, inviabilizando o adequado registro, fiscalização e controle dos recursos públicos da saúde”.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou até a publicação deste texto.

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