Embora existissem atividades estatais esparsas e pouco organizadas em matéria de controle financeiro e orçamentário no Brasil desde as épocas da Colônia e do Império, e até um considerável avanço organizacional após a Independência e a Proclamação da República[1], o primeiro registro legal da atividade de controle interno da Administração Pública, como competência autônoma do Poder Executivo, sem prejuízo das atribuições dos Tribunais de Contas, somente veio com a Lei 4.320/64 (artigos 75 e 76).
Posteriormente, o Decreto-Lei 200/67 determinou que o “controle das atividades da Administração Federal deverá exercer-se em todos os níveis e em todos os órgãos, compreendendo, particularmente, o controle, pelos órgãos próprios de cada sistema, da observância das normas gerais que regulam o exercício das atividades auxiliares” (art. 13, alínea b).
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Fundamentalmente pelo contexto histórico dessa legislação, as atividades de controle interno iniciaram-se e desenvolveram-se no Brasil sob a perspectiva da Administração Pública burocrática, unilateral e autoritária. Eram vistas “como sinônimas de responsabilização, numa perspectiva eminentemente punitivista do agente público e de outros agentes que se relacionam com estratos administrativos”[2].
Com a redemocratização do Estado e a promulgação da Constituição da República de 1988, previu-se a obrigatoriedade[3] de manutenção de sistemas de controle interno pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (art. 74). Por se tratar de norma de reprodução obrigatória (art. 75), o dispositivo se aplica a todos os entes federativos, havendo, ainda, dispositivo constitucional específico em relação ao sistema de controle interno do Poder Executivo nos municípios (art. 31).
Sob a perspectiva processual, a Constituição garante o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV), com respeito ao contraditório e à ampla defesa nas relações adversariais (art. 5º, inciso LV), mas também pretende a solução pacífica das controvérsias, conforme previsto em seu preâmbulo. Nesse sentido, Luciano Ferraz propõe “a existência de um princípio da consensualidade a impor à Administração Pública o dever de, sempre que possível, buscar a solução para as questões jurídicas e os conflitos que vivencia pela via do consenso”[4].
Portanto, não parece ser coincidência o fato de que a grande maioria dos instrumentos de atuação administrativa consensual tenham sido instituídos no Brasil sob a vigência da Constituição de 1988. Em matéria de controle interno, especificamente, pode-se dizer que a gênese dos instrumentos consensuais somente se deu na primeira década do século 21, com a instituição de acordos diversos em matéria de auditoria e correição, tais como o termo de ajustamento de gestão (TAG)[5] e a suspensão do processo disciplinar (SUSPAD)[6]. Nos anos seguintes, a consensualidade espraiou-se para as demais searas do controle interno.
Deveras, se, inicialmente, o controle interno era concebido apenas como atividade contábil de verificação de legalidade e regularidade (visão burocrática), hoje compreende a execução integrada, transversal e colaborativa de quatro macrofunções: ouvidoria, auditoria, corregedoria e integridade[7]. Em todas elas, já existem instrumentos consensuais consolidados na legislação e na práxis administrativa dos diversos órgãos e entidades públicas do país.
No âmbito da ouvidoria, a mediação, instituída pela Lei 13.140/2015, é importante instrumento de solução de controvérsias interpessoais entre os próprios agentes públicos ou entre estes e os cidadãos. Trata-se de “a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (art. 1º, parágrafo único).
Na macrofunção de auditoria, os termos de ajustamento de gestão, que já estavam estabelecidos em diversas entidades subnacionais[8], foi recentemente regulamentado pela União, como “instrumento jurídico de natureza consensual, celebrado entre agentes públicos e a Controladoria-Geral da União, com o objetivo de aprimorar procedimentos e assegurar a eficiência, a integridade e a continuidade da gestão pública, nos limites de sua competência” (Portaria Normativa CGU 186, de 9 de dezembro de 2024).
Em matéria de corregedoria, os acordos substitutivos (aqueles que substituem integralmente a decisão do processo administrativo disciplinar) ou integrativos (aqueles que antecedem e limitam a discricionariedade ou a margem de decisão do processo disciplinar)[9] podem ser adotados para fins de ajustamento de conduta, confissão ou colaboração premiada[10].
Alude-se, nesse aspecto, à minuta aprovada pela Rede de Corregedorias, para “servir de modelo de regulamento geral de acordos substitutivos para utilização pelos membros interessados da Rede, com eventuais adaptações a depender da legislação própria do órgão ou da instituição pública interessada, podendo ser implementada sob a forma de decreto ou outro tipo de ato administrativo regulamentar [com fundamento nos artigos 26 e 27 da LINDB]”[11].
Finalmente, em matéria de integridade, o acordo de leniência está previsto no art. 16 da Lei 12.846/13 (conhecida como Lei Anticorrupção), a ser celebrado com “as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo”.
Em acréscimo, a União instituiu, recentemente, o termo de compromisso, como “ato administrativo negocial decorrente do exercício do poder sancionador do Estado, que visa fomentar a cultura de integridade no setor privado, por meio da responsabilização adequada, proporcional e célere de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública nacional ou estrangeira” (Portaria Normativa CGU 155, de 21 de agosto de 2024).
O objetivo, com a previsão desses instrumentos consensuais de controle interno, não é a extinção das formas tradicionais de controle, com viés repressivo e sancionatório. Diferentemente disso, o que se busca é complementariedade e alternância.
O fundamental é que o caminho adotado pelo controlador, seja ele a atuação unilateral ou a celebração de acordo, satisfaça o interesse público concretamente considerado, com enfoque nos princípios da eficiência e da continuidade do serviço público.
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Este texto não reflete necessariamente as opiniões das instituições a que o autor é associado
[1] BALBE, Ronald da Silva. Controle Interno e Foco nos resultados. Fórum: Belo Horizonte, 2013, p. 99/101.
[2] FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 90.
[3] FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra; SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 169.
[4] FERRAZ, Luciano. Termo de Ajustamento de Gestão (TAG): do sonho à realidade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 27, setembro, outubro, novembro 2011. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=577. Acesso em 7 fev. 2024.
[5] FERRAZ, Luciano. Termo de Ajustamento de Gestão (TAG): do sonho à realidade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 27, setembro, outubro, novembro 2011. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=577. Acesso em 7 fev. 2024.
[6] FERRAZ, Luciano. Controle consensual da administração pública e suspensão do processo administrativo disciplinar (SUSPAD): a experiência do município de Belo Horizonte. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 9, n. 44, p. 15-26, jul./ago. 2007.
[7] AVELAR, Daniel Martins e; RESENDE, Mariana Bueno. O controle interno na Nova lei de Licitações e Contratos – Projeto de Lei n. 4.253/2020. Revista do TCEMG, Belo Horizonte, v. 39, n. 1, p. 93-106, jan/jun 2021.
[8] No Município de Belo Horizonte, o termo de compromisso de gestão (TCG) foi instituído pelo Decreto n. 12.634/2007.
[9] PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 248.
[10] No âmbito do Município de Belo Horizonte, as diversas espécies de acordo em matéria disciplinar estão previstas na Lei n. 7.169/96, com redação dada pela Lei n. 11.300/21.
[11] BRASIL. CGU. GT da Rede de Corregedorias apresenta minuta regulamentadora de acordos substitutivos em matéria disciplinar. Disponível em: https://www.gov.br/corregedorias/pt-br/aconteceu-aqui/noticias/2024/gt-da-rede-de-corregedorias-apresenta-minuta-regulamentadora-de-acordos-substitutivos-em-materia-disciplinar. Acesso em: 23 jul. 2024.