Nos últimos dias, a imprensa difundiu diversos artigos significativos e relevantes sobre o recém-eleito papa Leão XIV. Alguns retratam o pontífice como potencial antagonista à ascensão da extrema direita global. Outros o apresentam como defensor fervoroso do Estado social e dos direitos trabalhistas.
Ainda que assinado por intelectuais de credibilidade incontestável e trajetória acadêmica admirável, os textos incorrem, contudo, em um equívoco fundamental: tentar decifrar o papado exclusivamente através de lentes seculares e categorias políticas contemporâneas.
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Este erro de perspectiva, recorrente entre observadores externos ao catolicismo – frequentemente bem-intencionados, mas desconectados de sua gramática espiritual – revela uma incompreensão sobre a natureza essencial do ministério petrino. O múnus papal não se equipara ao de um chefe de Estado, de um reformador social ou de um líder ideológico. O papado constitui, primordialmente, um ministério espiritual ancorado nas palavras de Cristo: “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36).
Quando reduzimos o papado a mero ator ideológico, corremos o risco de dessacralizar o mistério e transformá-lo em simples reflexo das polarizações contemporâneas. Mais preocupante ainda é observar como essa distorção por vezes encontra eco dentro do próprio corpo eclesial.
Quem vivencia o catolicismo a partir de seu núcleo teológico reconhece a tensão permanente entre as dimensões humana e divina, entre a temporalidade e a eternidade — “porque a carne deseja o que é contrário ao Espírito, e o Espírito deseja o que é contrário à carne” (Gl 5,17). Essa complexa dialética transcende qualquer tentativa de enquadramento em narrativas conjunturais ou reducionismos digitais.
Inegavelmente, o papa manifesta-se – e deve fazê-lo – sobre questões cruciais como paz, justiça social, iniquidades econômicas e dignidade do trabalho. Entretanto, pronuncia-se fundamentado no corpus doutrinal da Igreja, sempre subordinado à missão primordial: a evangelização e a santificação das almas. Como nos recorda a Grande Comissão: “Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28,19). Esta é a razão existencial da Igreja – ser presença viva do Corpo Místico de Cristo na história (cf. 1Cor 12,27), não uma facção política ou corrente ideológica circunstancial.
É necessário, contudo, evitar uma dicotomia estéril entre fé e realidade histórica. Ao alertar contra a leitura puramente ideológica do papado, não se deve cair no erro inverso de considerar que toda manifestação pública do papa sobre temas sociais, econômicos ou políticos constitui adesão a agendas temporais.
A tradição católica sempre reconheceu que a fé vivida transforma estruturas e questiona injustiças. A Doutrina Social da Igreja — desde Rerum Novarum até Fratelli Tutti — testemunha esse compromisso. Quando o papa fala sobre a dignidade do trabalho, o cuidado com os pobres ou a responsabilidade ambiental, o faz não como ator partidário, mas como sucessor de Pedro, cujo ministério exige iluminar, com a luz do Evangelho, todas as esferas da existência humana. Reduzir essas intervenções à lógica de coalizões políticas não apenas distorce sua origem, mas obscurece sua motivação pastoral e teológica.
O papa Leão XIV não encarnará nem o arquétipo revolucionário de esquerda nem o conservadorismo radical de direita. Sob a unção divina, será essencialmente um pastor — realizando a promessa evangélica de “um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Para o restante, confiemos na Providência: “Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele tudo fará” (Sl 37,5).
Para compreender genuinamente o ministério papal, exige-se um itinerário diferente: participe da liturgia eucarística. Aprofunde-se no Catecismo. Contemple os mistérios do rosário. Reconcilie-se no sacramento da confissão. Como ensina o Evangelho: “Quem quiser fazer a vontade de Deus saberá se esta doutrina vem de Deus ou se falo por mim mesmo” (Jo 7,17). A hermenêutica da fé não se apreende através de instrumental meramente sociopolítico. Para mergulhar na essência eclesial, é imperativo recorrer aos seus grandes mestres espirituais.
Além disso, compreender o papado exige reconhecer que o ministério petrino se realiza dentro de circunstâncias concretas, e não paira acima da história. O papa foi chamado a discernir a vontade de Deus em meio a tempos marcados por secularismo, polarizações, crises e desconfiança nas instituições.
Ignorar esse contexto seria idealizar o papado ao ponto de desumanizá-lo. O desafio está em exercer uma liderança espiritual sem se deixar capturar pelas pressões do mundo, mas sem abdicar de sua presença nele.
Como afirmou São João Paulo II, “não há autêntica evangelização sem promoção humana integral”. A ação pastoral do Papa inclui o anúncio da salvação, mas também a denúncia do pecado social e a convocação à conversão das estruturas. Essa tensão entre o eterno e o contingente é, na verdade, constitutiva do próprio mistério da Igreja.
Sugerimos que contemplemos a profundidade dos doutores da Igreja – desde a lucidez agostiniana até a mística Santa Teresa D’Ávila, do rigor tomista à poesia espiritual de São João da Cruz. Obras como Confissões, A Cidade de Deus, Suma Teológica, Caminho de Perfeição e Subida do Monte Carmelo oferecem chaves interpretativas adequadas para compreender o papado do que qualquer análise conjuntural.
Como afirmou Santo Atanásio, sentinela da ortodoxia e defensor incansável da fé contra o arianismo: “Eles têm os templos, nós temos a fé”. Esta perspectiva nos recorda que, para além das estruturas visíveis e das manifestações institucionais, pulsa o mistério perene da fé.
O papado admite inúmeras interpretações, mas sua autêntica compreensão só se realiza sob a luz da fé católica — “a fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 1,3), viva, encarnada e bimilenar, que continua a desafiar as reduções simplistas e a iluminar os corações que a buscam com sinceridade.