Cuidado como fundamento do constitucionalismo feminista

O cuidado está no cerne da vida. Reconhecê-lo como princípio organizador da sociedade e do direito é o que propõe o constitucionalismo feminista, cuja base normativa e teórica desafia os paradigmas clássicos de neutralidade, abstração e universalidade constitucional.

No Brasil, esse debate ganhou contornos jurídicos normativos com a aprovação da Política Nacional de Cuidados, convertida na Lei 14.818/2024. A legislação consagra um campo legal que exige leitura constitucional atenta e comprometida com a justiça de gênero.

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Parte-se aqui da premissa de que o direito ao cuidado não é apenas uma demanda social, mas um imperativo constitucional.[1] A articulação entre o constitucionalismo feminista e a institucionalização de políticas de cuidado revela a dimensão transformadora da Constituição de 1988, que, embora marcada por contradições e disputas, é portadora de uma promessa de igualdade substancial e de reconhecimento da dignidade de todas as pessoas.

O constitucionalismo feminista constitui abordagem teórico-normativa que propõe a releitura crítica do direito constitucional a partir das experiências vividas por mulheres, historicamente marginalizadas destes processos. Nas palavras de Christine Oliveira Peter da Silva, esse movimento é impulsionado pelo esforço de tornar visível a presença das mulheres, o que implica tensionar a própria estrutura epistemológica do constitucionalismo tradicional[2].

Trata-se de uma proposta que denuncia os limites da neutralidade e da abstração constitucional tradicional e exige sua reconstrução sobre novas bases — aquelas que reconhecem a interdependência humana, as vulnerabilidades e os marcadores sociais da diferença. Mais do que uma crítica, o constitucionalismo feminista é um projeto de transformação. Como afirma Beverley Baines, trata-se de um esforço tanto teórico quanto prático para reimaginar as estruturas constitucionais à luz das contribuições feministas[3].

No Brasil, esse movimento encontra ressonância crescente[4] e tem contribuído para articular o constitucionalismo feminista às demandas por igualdade substantiva e ao reconhecimento jurídico do cuidado como valor e práticas constitucionais estruturantes.

A partir do marco do constitucionalismo feminista, é possível compreender a importância da recente Política Nacional de Cuidados, não apenas como uma política pública setorial, mas como expressão de uma nova gramática constitucional que incorpora o cuidado como categoria jurídica central, capaz de reorganizar os fundamentos da cidadania e da democracia.

A ética do cuidado, como defendida por Joan Tronto, deve informar a leitura da Constituição, ressignificando conceitos como igualdade, liberdade e dignidade à luz das relações concretas de dependência e responsabilidade. Referida autora identifica quatro fases do cuidado: “caring about” (preocupar-se), “taking care of” (assumir a responsabilidade), “care-giving” (oferecer o cuidado) e “care-receiving” (receber o cuidado). Posteriormente, adiciona uma quinta fase, “caring with”, que enfatiza a necessidade de que o cuidado esteja baseado em princípios de justiça e democracia.[5]

A partir dessa constatação, o constitucionalismo feminista propõe uma reorganização da arquitetura constitucional que reposicione o cuidado como eixo estruturante do pacto democrático. Essa releitura desafia a concepção tradicional do cuidado como mera atividade regulável, reivindicando seu reconhecimento como um princípio constitucional fundamental. Ao inscrever o cuidado no núcleo da ordem constitucional, contribui-se para a construção de uma justiça de gênero[6] substancial — capaz de acolher as interdependências humanas e de valorizar as práticas e saberes historicamente desconsiderados, sobretudo aqueles desempenhados pelas mulheres.

Trata-se, portanto, de reconhecer que a Constituição de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a igualdade de gênero (arts. 5º e 226, §8º), e a proteção à maternidade, à infância, à velhice e à pessoa com deficiência (arts. 6º, 7º, XX, XXV, 203 e 227), já continha os elementos fundantes de uma política de cuidado — ainda que de forma dispersa e não sistematizada. Nesse contexto, a promulgação da Política Nacional de Cuidados, ao sistematizar o cuidado como um direito e como política pública, confere densidade normativa ao que já era anunciado pelo projeto constitucional.

A lei, por sua vez, estrutura-se em três dimensões articuladas:

i) Cuidado como trabalho: Reconhece o cuidado como atividade essencial, realizada tanto no âmbito remunerado quanto no não remunerado. A lei busca visibilizar e valorizar o trabalho de cuidado, frequentemente desempenhado por mulheres em situação de informalidade e vulnerabilidade. Como ressalta Helena Hirata[7], a divisão sexual do trabalho de cuidado é um dos nós da desigualdade de gênero, e sua superação exige o reconhecimento institucional do cuidado como trabalho socialmente relevante. Essa divisão se manifesta tanto no âmbito doméstico quanto nas dinâmicas do mercado de trabalho, onde mulheres, sobretudo negras e periféricas, ocupam de forma majoritária as funções ligadas ao cuidado, muitas vezes sob condições precárias e sem garantias laborais. O resultado é a perpetuação de uma cidadania desigual, em que o tempo, o corpo e o trabalho das mulheres são apropriados pelo Estado, pelas famílias e pelas estruturas econômicas sem o devido reconhecimento e redistribuição.

ii) Direito ao cuidado: O cuidado é afirmado como direito de quem dele necessita, independentemente de idade, condição física ou mental. Essa concepção desloca a responsabilidade do cuidado do âmbito exclusivamente familiar para a esfera pública, exigindo políticas universais, interseccionais e territoriais. Como argumenta Nancy Fraser[8], as injustiças ligadas à distribuição desigual do trabalho de cuidado refletem uma forma de injustiça estrutural, que compromete tanto o reconhecimento quanto a redistribuição.

iii) Tempo para cuidar: Prevê medidas como licenças, flexibilização de jornada e serviços públicos de cuidado, buscando garantir tempo para que as pessoas possam cuidar de outras e de si mesmas. Essa dimensão se conecta à ideia de justiça temporal que deve ser entendida como parte integrante da justiça de gênero[9], exigindo políticas que reconheçam o tempo como um recurso valioso e distribuam equitativamente as responsabilidades relacionadas ao cuidado entre Estado, sociedade e famílias.

As três dimensões da lei dialogam diretamente com os valores constitucionais. O reconhecimento do trabalho de cuidado como trabalho digno se articula com os princípios da valorização do trabalho (art. 1º, IV) e da função social do trabalho (art. 170, III). O direito ao cuidado relaciona-se com os direitos sociais (art. 6º) e com o dever do Estado de assegurar a assistência a crianças, idosos e pessoas com deficiência (arts. 203 e 227). Já o tempo para cuidar se alinha com a proteção à maternidade e à família (art. 226) e com o direito à convivência familiar (art. 227).

Sob a lente do constitucionalismo feminista multinível[10], documentos como a Recomendação 204 da OIT sobre o trabalho decente nos cuidados e a Plataforma de Ação de Pequim (1995) já evidenciavam a urgência de incorporar o cuidado às agendas de direitos humanos e igualdade de gênero.

A Convenção CEDAW, e os comentários autorizados por seu comitê, também fornecem base internacional relevante ao estabelecer a necessidade de superação de estereótipos de gênero e de promoção da igualdade, incluindo a redistribuição das responsabilidades de cuidado entre homens e mulheres, Estado e sociedade.

Ao institucionalizar o cuidado, a nova legislação tensiona a estrutura patriarcal e desigual da sociedade brasileira. Trata-se de uma política com potencial transformador, que reconhece o cuidado como infraestrutura invisível que sustenta a vida econômica e social. Essa virada só é possível a partir de uma lente constitucional feminista, que reposiciona os sujeitos do direito a partir de suas vulnerabilidades e interdependências.

Silvia Federici[11] ressalta que o trabalho de reprodução social — aquele voltado à manutenção da vida, como o cuidado, a educação dos filhos, a alimentação e a organização doméstica — é historicamente desvalorizado pelo sistema capitalista, embora constitua uma base indispensável para o funcionamento da economia formal. Reconhecer juridicamente essa dimensão do trabalho é, portanto, uma exigência para o pleno exercício da cidadania, sobretudo das mulheres.

Contudo, tal reconhecimento apenas se traduzirá em transformação concreta se vier acompanhado de mecanismos de implementação eficazes, alocação orçamentária suficiente e participação democrática na definição das prioridades das políticas de cuidado. Sem essas condições, corre-se o risco de converter o cuidado em retórica normativa, desvinculada de mudanças estruturais.

Ainda, para prevenir a crítica ao risco de naturalização do cuidado nas políticas públicas ao reforçarem o papel das mulheres como cuidadoras naturais, sem promover uma redistribuição efetiva dessa responsabilidade, o constitucionalismo feminista propõe uma reorganização política e epistemológica do cuidado, desessencializando-o e redefinindo-o como uma empreitada interdependente, sem a carga histórica e desigualmente atribuída às mulheres.

A promulgação da Lei 14.818/2024, ao reconhecer o cuidado como trabalho, direito e tempo, avança na promoção de uma justiça de gênero substantiva, desafiando estruturas patriarcais e promovendo a redistribuição equitativa das responsabilidades de cuidado entre Estado, mercado, comunidade e famílias.[12] Mais do que uma política pública setorial, o cuidado constitucionalizado revela-se como categoria fundante de um novo paradigma normativo, ético e político.

Ao reposicionar a interdependência e a vulnerabilidade como bases da cidadania, o constitucionalismo feminista propõe não apenas a inclusão de sujeitas historicamente marginalizadas, mas a reestruturação dos próprios fundamentos do Estado democrático de Direito. Cuidar, nesse horizonte, é mais do que um gesto individual, é um pacto constitucional coletivo por igualdade, justiça e humanidade compartilhada.


[1] Neste sentido, a tese defendida por Cristina Telles, intitulada Dignidade humana e cuidado: por uma revisão feminista do Constitucionalismo Democrático Brasileiro, em 2024, no Programa de Doutorado em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Professora Dra. Jane Reis.

[2] PETER DA SILVA, Christine Oliveira. Por uma dogmática constitucional feminista. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Distrito Federal, Brasil, v. 1, n. 2, p. 151–189, 2021. DOI: 10.53798/suprema.2021.v1.n2.a67. Disponível em:

https://suprema.stf.jus.br/index.php/suprema/article/view/67 . Acesso em: 20 maio 2025.

[3] “Feminism calls on constitutional discourse to attend to issues that shape the reality of life for women. These issues will reshape the way in which we traditionally define constitutional law”. In: BAINES, Beverly. Introduction: The Idea and Practice of Feminist Constitutionalism.  BAINES, Beverly; BARAK-EREZ, Daphne; RUBIO-MARIN, Ruth (orgs.). Feminist Constitutionalism: Global Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. P. 1-12.

[4] Cite-se por todas as vozes: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; DEMETRIO, André. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por um constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, 2019, e1930. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201930. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/revdireitogv/article/view/80705  Acesso em: 20 maio 2025.

[5] TRONTO, Joan C. Assistência democrática e democracias assistenciais. Scielo.br. Sociedade e Estado, Brasília, v.  22, n. 2, p. 285-308 maio/ago. 2007. Disponível em:

https://www.scielo.br/j/se/a/r8ZmgZVYSX9q4PQmYcFkBmK/?lang=pt. Acesso em: 21 maio 2025.

[6] SEVERI, Cristina Fabiana; ZACARIAS, Laysi da Silva. Direitos Humanos das Mulheres. 1° Edição. Ribeirão Preto. Editora FDRP. 2017. P. 97-104.

[7] HIRATA, Helena. GÊNERO, PATRIARCADO, TRABALHO E CLASSE. Revista Trabalho Necessário, v. 21, n. 45, p. 01-13, 23 ago. 2023. Disponível em:

https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/59654. Acesso em: 21 maio 2025

[8] SCHUCK, Elena de Oliveira; VERGO, Terezinha Maria Woelffel. Nancy Fraser. Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis. Revista Brasileira de Ciência Política, [S. l.], n. 18, p. 329–335, 2015. Disponível em:

https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2325. Acesso em: 21 maio. 2025.

[9] SILVA, Fabio Wendel de Souza. Direito à Igualdade e Não Discriminação. SEVERI, Cristina Fabiana; ZACARIAS, Laysi da Silva. Direitos Humanos das Mulheres. 1° Edição. Ribeirão Preto. Editora FDRP. 2017. P. 97-104.

[10] Essa normatividade internacional deve ser tratada como vetor de interpretação constitucional e parâmetro vinculante para o redesenho das obrigações estatais. Incorporar o cuidado como categoria jurídica transversal nesse arcabouço normativo é condição para concretizar o direito à igualdade de forma substancial e efetiva, superando tanto as omissões legislativas quanto as limitações de políticas públicas fragmentadas. Para mais, ver: FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo multinível: diálogos e(m) direitos humanos. Revista Ibérica do Direito, volume 1, número 1, em 2020. Disponível em:

https://www.revistaibericadodireito.pt/index.php/capa/article/view/26

[11] MORAES, Alana; BONILLA, Oiara; SARTI, Thamires. Conversa com Silvia Frederici. Entrevistada: Silvia Federici. Revista DR. Rio de Janeiro. V. 4. 2016. Disponível em:

https://revistadr.com.br/posts/conversa-com-silvia-federici/. Acesso em: 21 maio 2025.

[12] Todas estas dimensões discutidas na obra: SOARES, Inês Virgínia Prado; PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; BARBOUR, Vivian (Orgs.). Proteção Jurídica dos Cuidados. São Paulo: Revista dos Tribunais | Thomson Reuters, 2025.

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