Em ensaios e entrevistas, Ferreira Gullar criticou o esvaziamento técnico da arte produzida a partir dos anos 1970, especialmente da arte conceitual, observando que, ao substituir a invenção plástica por ideias pré-concebidas, parte da produção contemporânea tornara-se simples enunciação de intenções.[1]
A crítica, ainda que situada no campo estético, permite um paralelo fértil com o direito: linguagem, e isso vale muito apropriadamente para a linguagem jurídica, é forma acumulada, organizada, transmissível; discurso é intenção, visão de mundo, projeto. A vitalidade do pensamento jurídico, como a da obra de arte, exige a conjugação de ambas.[2]
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Algumas inovações recentes no direito civil brasileiro ilustram esse ponto. Uma delas é a Lei 14.711 de 2023, o Marco Legal das Garantias. Seu texto não ficou imune a críticas. Inovou, porém, a partir de referências legislativas e doutrinárias debatidas e experimentadas. Introduziu hipótese de recarregamento da hipoteca, autorizou segunda alienação fiduciária sobre o mesmo bem imóvel e regulamentou certificações extrajudiciais de condições típicas e atípicas, para ficarmos com apenas três exemplos.
São operações baseadas em conceitos disponíveis, de formulação sóbria, voltadas para o reequilíbrio autônomo de posições negociais e a redução de custos de transação. O discurso que as embasa — ampliação do crédito e redução do custo do dinheiro — está formulado com clareza e não transborda os limites da linguagem que o viabiliza.
Outro caso de boa técnica a serviço de objetivos institucionais claramente definidos está na Lei 15.040 de 2024, que atualizou e consolidou a disciplina dos seguros no Brasil. O texto, amplamente discutido por juristas e agentes do setor ao longo de 20 anos, substituiu com precisão técnica o regime instituído em 2002. Alinhou-se a tradição internacional consolidada e promoveu a racionalização de práticas já adotadas na esfera regulatória, agora incorporadas com critério ao plano legislativo.
A nova lei supera a defasagem conceitual do sobresseguro, as contradições em torno do aviso de sinistro e a obscura distinção entre agravamento e causação dolosa do risco. Devolve ao domínio da lei ordinária critérios técnicos cuja definição vinha sendo deslocada, de modo indevido, para o plano infralegal, em detrimento da segurança jurídica.
O contraste com inovações que privilegiam o discurso em detrimento da linguagem é inevitável. Convertida em lei a partir de medida provisória editada no mesmo ano, 2019, a Lei da Liberdade Econômica se distingue pela enunciação de propósitos grandiloquentes em vocabulário de autoajuda. Proclama intervenção mínima e presunção de autonomia, mas o faz sem domínio do terreno normativo que pretende transformar, sem dialogar com a tradição jurídica, sem distinguir vontade de arbítrio.[3]
Impõe verificação de paridade e simetria a relações nas quais a desigualdade não deveria importar; presunções de boa-fé a negócios que não poderiam ser compreendidos de outro modo; interpretações contra proferentem a contratos detalhadamente negociados, gerando, não fosse letra morta — destino usual das normas desprovidas de justificação —, exigências kafkianas de instrução processual. Uma aula de iliberalismo.
Ainda no campo patrimonial, a mais recente e controvertida proposta de renovação — o projeto de reforma do Código Civil — amplia o quadro de indefinição inaugurado pela Lei da Liberdade Econômica. Seu texto não responde a demandas sociais claras, nem a conflitos jurídicos relevantes.
No lugar das respostas, novas perguntas. Em centenas de proposições, aglutina projetos, teses, decisões e demandas que isoladamente careceriam de força e reconhecimento para se converter em norma geral. Projetos, teses, decisões e demandas de membros da comissão elaboradora, convém enfatizar: não da sociedade.[4] Em alguns pontos, nem mesmo inova: apenas insiste. Multiplica as referências a paridade e simetria por trinta, em sanha que se estende sobre a função social, a boa-fé objetiva e a ordem pública. Ainda no direito das obrigações, ignora o conteúdo da Lei 15.040 e se propõe a redefinir o direito dos seguros. O discurso da inovação suplanta a linguagem da codificação.
Os exemplos mais dramáticos, no entanto, vêm do novo livro dedicado ao “Direito Civil Digital” — novidade que não encontra paralelo na estrutura dos códigos civis de outros países. Ali encontramos referências a categorias como “ampliação ou melhoria cerebral”, “privacidade mental” e “alterações não autorizadas no cérebro” — expressões que estão muito além tanto do vocabulário jurídico quanto da compreensão comum.
O resultado é um conjunto de regras herméticas, mais próximas do marketing da indústria de tecnologia do que da linguagem do direito. Borges talvez visse aí um livro perdido de um império inexistente, redigido em dialeto secreto para pessoas que jamais poderão compreendê-lo. Mas, ao contrário dos seus labirintos, esse não fascina: desorienta.
Naquilo que importa, o texto do novo livro faz tábula rasa de debates em curso, como no caso da responsabilidade por danos oriundos de conteúdos gerados por terceiros, tema cuja disciplina, hoje estabelecida nos artigos 19 e 21 do Marco Civil da Internet, está prestes a ser revista pelo Supremo Tribunal Federal.
O projeto atravessa a deliberação da corte e impõe regime abrangente de responsabilidade objetiva — outra vez, orientação que não encontra paralelo fora do Brasil. Em prol da proteção da projeções obscuras da personalidade, instaura-se regime de higienismo digital. Deixa-se de lado a aguda percepção de que o direito não se distingue pelas funções que desempenha, e sim pelo modo de desempenhá-las.[5]
A conclusão infelizmente não é positiva. Discursos carentes de linguagem não ultrapassam a contingência do poder. Não se constroem em termos verdadeiramente públicos. Não comunicam generalidade, não asseguram consistência. Não atendem, em suma, àquelas exigências modais mínimas, de natureza política, voltadas à salvaguarda do direito — exigências que agrupamos sob a rubrica da legalidade, do rule of law. No direito, tal qual na arte, boas vibrações não são suficientes.[6] A linguagem é vital.
[1] Ensaios reunidos, por exemplo, em Ferreira Gullar, Argumentação contra a morte da arte, Rio de Janeiro: Revan, 1993; a entrevista que vale por todas é a de Ariel Jiménez, Conversa com Ferreira Gullar, São Paulo: Cosac Naify, 2013.
[2] Ferreira Gullar não esclarece o pedigree filosófico dos termos, mas é possível reconduzi-los a referências semióticas que estavam em voga por volta do mesmo período: “the problem of discourse has become a genuine problem because discourse now can be opposed to a contrary term, which was not recognized or was taken for granted by the ancient philosophers. This opposite term today is the autonomous object of scientific investigation. It is the linguistic code which gives a specific structure to each of the linguistic systems, which we know as the various languages spoken by different linguistic communities. Language here then means something other than the general capacity to speak or the common competence of speaking. It designates the particular structure of the particular linguistic system.” Paul Ricoeur, Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning, Fort Worth: The Texas Christian University Press, 1976, p. 2. Tradução: “o problema do discurso tornou-se um problema genuíno porque agora o discurso pode ser contraposto a um termo oposto, que não era reconhecido ou era simplesmente presumido pelos filósofos antigos. Esse termo oposto, hoje, é objeto autônomo de investigação científica. Trata-se do código linguístico que confere uma estrutura específica a cada um dos sistemas linguísticos que conhecemos como as diversas línguas faladas por diferentes comunidades. Linguagem, aqui, portanto, significa algo distinto da capacidade geral de falar ou da competência comum de fala. Designa a estrutura particular de um sistema linguístico particular.”
[3] Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 90-96, dez. 2023, p. 95, nt. 15: “A distinção entre os conceitos de vontade e arbítrio está no centro da filosofia prática de Kant. O arbítrio (Willkür) é uma faculdade de caráter executivo; a vontade (Wille), uma faculdade de caráter legislativo. O arbítrio é mais do que o simples desejo (bloße Wunsch), que nada diz sobre os meios para sua realização, mas é menos do que a vontade, que deve ser não apenas factível, mas universalizável. E a diferença entre vontade e arbítrio encontra eco no Direito Positivo brasileiro vigente. O art. 122 do CC, por exemplo, proíbe a submissão da eficácia do negócio jurídico a condições puramente arbitrárias – curiosamente, a doutrina prefere designá-las potestativas –, mas permite, em contrapartida, a subordinação dos efeitos negociais a condições voluntárias – condições meramente potestativas, na terminologia doutrinária. Poderes que se esgotam em escolhas são reconhecidos como arbitrários, e não voluntários, a exemplo do poder de satisfação da cláusula penal (art. 411) ou o poder de fixação do preço por terceiro (art. 485). Manifestações intencionais juridicamente relevantes (arts. 107, 116, 121 e outros) são manifestações de vontade, não de arbítrio. Poderíamos seguir com os exemplos.”
[4] Paula Giliker, Codifying tort law: lessons from the proposals for reform of the French Civil Code, International & Comparative Law Quarterly, Cambridge, v. 57, n. 3, p. 561–582, 2008. p. 580: “One must query whether ex post facto consultation can really achieve the consensus needed to produce a code representing the law of a nation.” Tradução: “É preciso questionar se uma consulta ex post facto pode realmente alcançar o consenso necessário para produzir um código que represente o direito de uma nação.”
[5] John Gardner insistia que o direito não deveria ser definido por suas funções, mas por seu modo de operar. A distinção é sutil, mas poderosa: o direito não é o que resolve disputas, mas um modo específico de resolvê-las, por meio de regras públicas, estáveis, eficazes e aplicadas por agentes públicos que reivindicam autoridade. John Gardner, Law as a Leap of Faith, Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 212.
[6] Frederick Wilmot-Smith, “Good Vibrations”, London Review of Books, London, vol. 46, n. 17, 2024.