O fracasso do direito internacional humanitário em Gaza

Em apenas um dia, durante o mês de maio, Israel atingiu dois hospitais em Gaza, alegando serem redutos ou abrigarem militantes do Hamas. De acordo com a Defesa Civil palestina, morreram pelo menos 28 pessoas na madrugada de 15 de maio após os ataques realizados sobre um hospital em Khan Younis.

Segundo relatos da imprensa internacional, os hospitais em Gaza que ainda se mantêm em funcionamento têm sido os principais alvos das forças israelitas e, segundo fontes médicas citadas pela BBC, o Exército de Israel ataca estas instalações de saúde sem nenhum aviso, matando mulheres, crianças, médicos e profissionais de saúde, indiscriminadamente, sob o frágil argumento de que havia militantes do Hamas escondidos no hospital.

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Essa rotina de carnificina travestida de “direito de defesa” pelo Estado de Israel continua passados mais de 18 meses desde o ataque do Hamas à Israel. No entanto, os ataques sistemáticos de Israel contra instalações de saúde palestinas não são novidade e já haviam sido muito bem documentados no Relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) sobre a situação em Gaza.

O documento, intitulado “Relatório temático: Ataques indiscriminados e desproporcionais durante o conflito de Gaza”, abrangeu o período de 7 de outubro de 2023 a 30 de junho de 2024 e apresentou fatos graves, levantando preocupações em relação aos ataques a hospitais, bem como às operações de guerra realizadas dentro deles e em suas proximidades em Gaza.

No contexto da escalada contínua das hostilidades, o ACNUDH documentou, desde o início de outubro de 2023, repetidos ataques a hospitais e operações dentro e nas proximidades de hospitais, ataques estes sucedidos de combates contínuos dentro e ao redor de muitos hospitais. Esse padrão de guerra levou à destruição da maioria dos hospitais em Gaza e o sistema de saúde ao ponto de um colapso quase completo.

Ataques a hospitais foram relatados em cada uma das áreas onde os militares israelenses conduziram operações terrestres, começando em novembro de 2023 com um ataque ao Complexo Médico Al Shifa e outros hospitais na Cidade de Gaza.

O relatório coletou, avaliou e verificou as informações que embasam suas conclusões, tiradas com base no direito internacional dos direitos humanos e no direito internacional humanitário. Para a elaboração do relatório, o ACNUDH aplicou sua metodologia padrão que segue rígidos protocolos de checagem.

O texto do relatório informa que o monitoramento e a verificação das violações foram extremamente desafiadores devido a restrições de acesso, alto nível de insegurança e ameaças e ataques diretos também a funcionários, monitores e agentes humanitários das Nações Unidas.

Ainda assim, os representantes da ONU continuaram seu trabalho de verificação e coletaram as informações de diversas fontes independentes, incluindo vítimas e testemunhas; especialistas militares e em armas; fontes abertas, incluindo imagens de satélite, vídeos e fotos; organizações e indivíduos confiáveis; documentação oficial e de outra natureza.

De acordo com o relatório, a análise das informações envolveu expertise jurídica e em armas, inclusive de especialistas independentes. As conclusões incluídas no relatório foram embasadas em provas com “fundamentos razoáveis” a partir de provas obtidas com base nos rígidos padrões de checagem da ONU. Ou seja, são informações verificadas e pode-se acreditar, com alto grau de legitimidade, que os fatos relatados caracterizam todos os elementos de violação ao direito internacional.

Antes de sua publicação, o relatório foi compartilhado com as Missões Permanentes de Israel e o Estado da Palestina para comentários factuais. O Estado da Palestina e Israel responderam com comentários. Ou seja, houve direito de defesa e de contraditório de ambas as partes.

Conforme aponta o texto final do relatório, elaborado após as respostas dos dois Estados, o sistema de saúde em Gaza era extremamente inadequado mesmo antes de 7 de outubro de 2023. O bloqueio de Gaza, que durou 17 anos, no contexto da ocupação israelense de 57 anos, combinado com a destruição causada pelas repetidas escaladas de hostilidades desde 2008, durante as quais as forças israelenses bombardearam Gaza regularmente, criou uma ampla dependência da ajuda externa e restringiu fortemente o acesso e a circulação de pessoas e bens dentro e fora de Gaza, incluindo os bens essenciais para os cuidados de saúde.

Essa realidade criou as condições para deficiências endêmicas na prestação de cuidados de saúde e violações recorrentes dos direitos humanos dos palestinos em Gaza, incluindo os seus direitos à vida e à saúde.

A situação se deteriorou a um nível catastrófico desde outubro de 2023, com este sistema de saúde já danificado sendo alvo de ataques sistemáticos e programados como estratégia de guerra, resultando na morte de centenas de profissionais de saúde e médicos. O relatório apresenta padrões na condução dos ataques a hospitais e suas proximidades, examinando diversos casos monitorados de perto pelo ACNUDH.

Segundo o relatório, os ataques a hospitais frequentemente seguiram um padrão semelhante, envolvendo ataques com mísseis a prédios hospitalares, destruição de instalações hospitalares, disparos contra civis, cercos, bem como a tomada temporária de prédios hospitalares.

O relatório não examinou em detalhes os muitos casos de detenção arbitrária, desaparecimento forçado e maus-tratos a profissionais de saúde e outros palestinos, incluindo pessoas deslocadas internamente, detidos de dentro de hospitais. No entanto, o texto do relatório deixa evidente que esses fatos ocorreram e que resultaram em perdas de pessoal qualificado, perdas estas que contribuíram para o colapso do sistema de saúde palestino.

Os impactos das operações militares israelenses dentro e ao redor de hospitais, que levaram, em muitos casos, a combates nessas áreas e foram significativos, estendendo-se muito além das estruturas físicas. Resultaram na perda de acesso a tratamentos essenciais que salvam vidas; perda de acesso a espaços seguros, incluindo abrigos necessários; e perda de cuidados para doenças crônicas, transformando condições que não ameaçam a vida em condições potencialmente fatais.

O relatório informa também que a destruição do sistema de saúde de Gaza, juntamente com as restrições israelenses à entrada e distribuição de suprimentos médicos e de alimentos, levou à drástica deterioração dos resultados de saúde em toda a população e a uma catástrofe sanitária, com a disseminação de doenças infecciosas, incluindo poliomielite, hepatite A, diarreia aguda e icterícia. Isso vem causando sofrimento significativo entre a população e milhares de civis palestinos morreram e continuarão a morrer até que o sistema de saúde seja reconstruído.

O relatório do ACNUDH lembra que uma regra fundamental do direito internacional humanitário é que os feridos e doentes devem ser recolhidos e cuidados. Todos os feridos e doentes, incluindo civis e pessoas fora de combate, devem receber proteção e não podem ser considerados alvos legítimos em uma guerra. Além disso, o direito internacional humanitário oferece proteções específicas aos profissionais de saúde e às unidades médicas onde os feridos e doentes são atendidos, incluindo hospitais.

Com base em uma descrição detalhada dos ataques a hospitais sistematicamente conduzidos pelo Estado de Israel contra Gaza desde outubro de 2023, o relatório conclui que o sistema de saúde em Gaza está completamente destruído, com consequências previsivelmente devastadoras para o povo palestino.

O documento destaca, ainda, que a destruição do sistema de saúde em Gaza e a extensão da matança de pacientes, funcionários e outros civis nesses ataques são uma consequência direta do desrespeito ao direito internacional humanitário e aos direitos humanos pelo Estado de Israel.

O relatório conclui ser essencial a realização de investigações independentes, confiáveis ​​e transparentes desses ataques a hospitais, profissionais de saúde e pacientes civis, e que haja plena responsabilização por todas as violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos ocorridas.

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, dadas as limitações do próprio sistema de justiça israelense em relação à conduta de suas forças armadas, isso deve incluir investigações independentes para coletar e preservar evidências para futuros processos por tribunais nacionais competentes, sob os princípios aceitos de jurisdição universal, consistentes com o direito internacional, ou por tribunais internacionais.

Também deve ser uma prioridade para Israel, como potência ocupante, garantir e facilitar o acesso a cuidados de saúde adequados para a população palestina, e para futuros esforços de recuperação e reconstrução, priorizar a restauração da capacidade médica perdida nos últimos meses de intenso conflito.

Em tempos de conflitos e polarização, é angustiante verificar que o Direito Internacional está falhando gravemente em seu dever de garantir a paz e evitar graves violações de direitos humanos ao redor do mundo. No caso da situação do conflito Israel-Palestina, a fragilidade do sistema de governança global está explícita e nos aponta um futuro sombrio no qual imperará a lei do mais forte e no qual lideranças insanas poderão impor suas vontades, ainda que absurdas, à populações e grupos vulneráveis, a países mais fracos e, no limite, ao planeta e à humanidade.

A própria noção de humanidade e igualdade entre todos está ameaçada quando testemunhamos ao vivo a destruição de um povo, em um conflito desleal e absolutamente desproporcional, sem que haja qualquer reação a contento do Conselho de Segurança da ONU, de outros organismos multilaterais criados após a Segunda Guerra Mundial ou ainda das grandes potências globais.

É lamentável e incompreensível testemunhar o Estado que abriga o povo judeu, povo este que mais sofreu perseguições atrozes durante a Segunda Guerra Mundial, patrocinar agora, 80 anos depois, a matança indiscriminada e cruel do povo palestino. Por mais que os ataques do Hamas à Israel tenham sido brutais e injustificáveis (e foram), a reação de Israel já passou há muito tempo de qualquer limite de razoabilidade, proporcionalidade e humanidade. O argumento da legítima defesa já não é mais cabível.

Até quando o atual sistema de governança global de conflitos assistirá impassível às sistemáticas violações ao direito internacional erigido após 1945?

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