Modelos de monetização primária
A despeito dos debates conceituais sobre a titularidade ou propriedade dos dados pessoais, o fato é que a monetização primária desses dados — isto é, a relação direta entre titular e controlador com a finalidade de exploração econômica da informação — já é uma realidade operacional em diversos setores.
Os dados são tratados como ativos, seja como moeda de troca (monetização indireta), seja como produto com valor intrínseco (monetização direta). O desafio jurídico e normativo reside, então, em desenhar modelos de governança que permitam tal exploração de forma transparente, voluntária e proporcional.
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Modelos de monetização indireta: dados como moeda
Na monetização indireta, o titular paga com seus dados para acessar serviços ou produtos. Ainda que o dinheiro não circule, a transação é econômica: os dados têm valor e são trocados como se moeda fossem. Eis os modelos mais comuns:
- “Pay or Consent” (o dado como escolha): esse modelo permite ao usuário optar entre ceder seus dados (geralmente para publicidade) ou pagar para preservar sua privacidade. Embora inicialmente rejeitado por autoridades europeias, hoje esse modelo encontra respaldo tanto na jurisprudência do TJUE quanto na Diretiva (UE) 2019/770. A exigência é que haja consentimento livre, informação adequada e opção real.
- Programas de fidelização (troca invisível): esses programas oferecem benefícios tangíveis (descontos, prêmios, status) em troca do compartilhamento de dados. Amplamente utilizados, inclusive no Brasil, esses programas precisam seguir os requisitos da LGPD e do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo no que tange à transparência, finalidade e possibilidade de oposição. A validação europeia, por CNIL e AEPD, reforça que, respeitados os direitos do titular, tais práticas são compatíveis com a proteção de dados.
- Descontos por Dados: a prática de conceder descontos mediante compartilhamento de dados é comum em setores como o securitário e o farmacêutico. Embora funcionalmente eficaz, ela levanta preocupações jurídicas, principalmente quando afeta bens essenciais, como medicamentos.
- Taxação (redistribuição e justiça fiscal): outra proposta de monetização indireta é a criação de um regime tributário específico sobre a exploração econômica de dados. Essa medida teria por finalidade devolver ao coletivo parte do valor gerado com dados pessoais, seja por meio de fundos públicos, seja por redistribuição direta. No Brasil, o PLP 234/2023 propõe tanto a formalização do mercado de dados como a sua tributação.
Modelos de monetização direta: dados como produto
Na monetização direta, os titulares recebem compensação econômica explícita pelo tratamento de seus dados. Aqui, os dados são tratados como um produto que pode ser licenciado, aproximando-se da lógica da cessão de direitos da personalidade, como no caso do direito de imagem.
- Compensação Financeira (dinheiro pelo consentimento): plataformas como Tapestri ou Tiki permitem que o titular receba valores monetários ou créditos em troca do fornecimento e tratamento de seus dados. O modelo exige transparência contratual, informação clara sobre a finalidade e possibilidade de revogação. Embora ainda pouco testado no direito europeu, a jurisprudência e a doutrina apontam para a viabilidade da prática, desde que respeitados os parâmetros da proteção de dados. No Brasil, a ANPD já se manifestou com reservas, embora não haja vedação normativa expressa.
- Personal Data Exchanges (PDEs): as PDEs propõem um modelo disruptivo, centrado no controle individual e voluntário dos dados pessoais. Utilizando carteiras digitais, criptografia e gestão granular de consentimentos, as PDEs permitem que o titular gerencie e monetize seus dados de forma autônoma. Apesar das dúvidas sobre sua compatibilidade com o direito europeu, especialmente quanto à finalidade e liberdade do consentimento, a experiência californiana indica a viabilidade técnica e econômica desses arranjos.
- Cooperativas de Dados: esse modelo oferece a possibilidade de uma governança coletiva, permitindo que grupos de titulares decidam conjuntamente sobre o uso de seus dados, inclusive com finalidades altruísticas ou científicas. Inspiradas nos princípios do cooperativismo, essas entidades devolvem o poder de decisão aos titulares e promovem o uso socialmente orientado da informação. A regulamentação europeia já reconhece o papel dessas estruturas
Considerações finais
A exploração econômica dos dados pessoais já é uma realidade. Contudo, essa monetização, se conduzida de forma transparente, voluntária e justa, pode reforçar — e não reduzir — a autodeterminação informacional dos titulares. O direito brasileiro, ao admitir modelos contratuais análogos (como a cessão de imagem), já oferece base normativa para a regulação dos modelos de monetização primária.
A chave está em reconhecer que a proteção de dados não deve infantilizar o cidadão, mas sim permitir que ele atue como agente da sua própria vida digital. A autodeterminação não se realiza negando a dimensão econômica dos dados, mas regulando sua exploração de modo proporcional, informado e não discriminatório.
A criação de um ecossistema legítimo de monetização de dados exige critérios claros de liberdade de escolha, transparência adaptativa, proteção contra abusos e inclusão regulatória, com base em modelos testados e ajustados à realidade brasileira.
Nesse sentido, a agenda da monetização de dados não é apenas jurídica, mas também política, econômica e social. Requer o envolvimento de múltiplos atores — legisladores, reguladores, setor produtivo, academia e sociedade civil — para construir uma estrutura normativa capaz de reconciliar dignidade e inovação, proteção e liberdade, valor econômico e justiça social.
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Esta é uma série de três artigos (leia o primeiro e o segundo textos) com o objetivo de apresentar um recorte introdutório e acessível de um projeto de pesquisa acadêmica mais amplo sobre os desafios e as possibilidades jurídicas da monetização de dados pessoais.
A proposta é provocar a reflexão crítica sobre os limites do modelo atual de proteção de dados centrado exclusivamente na defesa contra abusos e explorar alternativas que considerem também a autonomia do titular como fundamento legítimo para o uso econômico de suas informações.
Uma análise com maior aprofundamento teórico, levantamento de modelos existentes e extenso aparato bibliográfico pode ser acessada nesta versão ampliada do texto. Críticas e sugestões serão bem-vindas.