Preços de transferência e seus impactos no IBS/CBS

Recentemente, o ordenamento jurídico brasileiro passou por importantes atualizações tributárias. A Lei 14.596/2023 modernizou as regras de preços de transferência aplicáveis ao IRPJ e à CSL, alinhando-as ao Princípio Arm’s Length[1].

Também merece atenção a reforma da tributação do consumo, promovida pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar 214/2025, que instituiu o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), nos moldes de um Imposto sobre Valor Agregado dual (IVA dual).

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De um lado, as regras de preços de transferência buscam alinhar transações com partes relacionadas no exterior aos parâmetros de mercado para fins de tributação da renda corporativa (IRPJ e CSL). De outro lado, temos o IBS/CBS que adota base ampla para a tributação do consumo, alcançando operações onerosas e, em alguns casos, não onerosas.

Dada a ampla base de incidência do IBS/CBS, este artigo foca nos potenciais efeitos de ajustes contábeis/fiscais decorrentes das regras de preço de transferência na apuração desses tributos sobre o consumo, ainda que, em regra, tais ajustes estejam direcionados à apuração do IRPJ e da CSL.

Por exemplo, se uma subsidiária brasileira realizar ajustes compensatórios ao final do ano para se manter dentro do intervalo de comparáveis, com base no método da Margem Líquida da Transação (MLT), nos termos do art. 11, IV, da Lei 14.596/2023[2], esses ajustes podem ser formalizados por notas internacionais de débito/crédito, refletindo a equalização financeira por fornecimentos de bens ou prestações de serviços durante o período. Nesse contexto, surge a dúvida quanto à incidência de IBS/CBS sobre receitas lançadas pela brasileira em decorrência de nota internacional para ajuste compensatório de preços de transferência.

Esse debate não é novo no Brasil. Em 2016, no acórdão 3402-003.072 (Caso Nokia), o Carf abordou o tema no contexto do PIS/Cofins, adotando o voto do então conselheiro Carlos Augusto Daniel Neto[3]: valores apurados no Brasil em decorrência de nota de crédito internacional recebidas por companhia brasileira para ajuste de preços de transferência sobre bens adquiridos de parte relacionada no exterior não configurariam receita tributável pelo PIS/Cofins, por terem natureza semelhante à de bonificações, com efeito de redutor de custo. A 3ª Turma da CSRF, contudo, reverteu o entendimento em 2018 (acórdão nº 9303-006.245), reconhecendo a incidência das contribuições.

Embora a caracterização como redutor de custo, semelhante à bonificação, seja um argumento plausível para afastar a exigência do PIS/Cofins (que incide sobre faturamento ou receita), ela, isoladamente, não afasta a incidência de tributos que têm como fato gerador transações efetivas (como é o caso do IBS e a CBS). Já mencionamos que esses tributos alcançam uma gama ampla de operações, com bens, serviços e direitos, inclusive em situações não onerosas entre partes relacionadas e bonificações.

Mesmo com a ampla base do IBS/CBS, entendemos que ajustes compensatórios, em regra, não deveriam sofrer incidência destes tributos, por se tratar de movimentações contábeis ou financeiras sem transações efetivas com bens, serviços ou direitos. Ainda assim, não se descarta controvérsia futura com o fisco, sobretudo quando tais ajustes estiverem contratualmente atrelados ao valor das operações do período.

A propósito, o Conselho Municipal de Tributos de São Paulo (CMT/SP) decidiu, recentemente – em setembro de 2024 –, que incidiria Imposto sobre Serviços (ISS) sobre receitas decorrentes de ajustes de preço de transferência lançadas na contabilidade como “receita de licença de uso intercompany”, por entender que tais valores configuram efetiva contraprestação por serviços prestados e, portanto, fato gerador do imposto (Processo 6017.2024/0023560-7).

Assim, persistem pontos de atenção, como a forma de previsão dos ajustes compensatórios nos contratos — por exemplo, quando vinculados à correção de fornecimentos anteriores ou à garantia de margem de lucro —, o que poderá impactar a apuração do IBS/CBS, especialmente quanto à sua caracterização (ou não) como fato gerador, conforme corroboram também estudos realizados no contexto do IVA europeu.[4]

Se admitida a incidência de IBS/CBS sobre ajustes compensatórios, deve-se avaliar o direito ao crédito correspondente. Ainda que defendamos a não tributação, entendemos que, em hipóteses com clara vinculação direta e individualizada a operações anteriores geradoras de IBS/CBS — e desde que haja efetiva incidência e recolhimento pela companhia brasileira — o creditamento seria legítimo.

Partindo dos princípios da neutralidade e da não cumulatividade, previstos no art. 156-A, §1º, VIII, da EC 132/2023[5], é razoável concluir que tais operações deveriam gerar créditos de IBS e CBS à contribuinte brasileira que realizou os ajustes de preço de transferência. Afinal, se se conferiu tratamento de importação tributável pelo IBS/CBS, esses valores deveriam gerar crédito ao adquirente.

Nas operações entre partes relacionadas, é preciso atenção ao creditamento. O art. 5º, IV e §7º, da LC 214/2025 demonstra a intenção do legislador de tributar, via IBS/CBS, operações intragrupo gratuitas ou abaixo do valor de mercado. Já o art. 12, §4º, define esse valor como aquele praticado entre partes independentes, adotando implicitamente o Princípio Arm’s Length, à semelhança da Lei 14.596/2024.

Como a legislação do IBS/CBS busca garantir neutralidade nas operações intragrupo, a observância do Princípio Arm’s Length é crucial também para validar créditos fiscais, sem prejuízo dos demais requisitos legais e da vinculação da operação à atividade do contribuinte.

Por fim, vale mencionar que a controvérsia sobre o creditamento em ajustes compensatórios também surgiu no contexto do IVA europeu. No caso C-726/23, discute-se se ajustes com base no Transactional Net Margin Method (TNMM) entre matriz belga e subsidiária romena configuram prestação de serviço sujeita ao IVA e se geram direito a crédito.

De acordo com parecer apresentado pelo Advogado-Geral da Corte de Justiça da União Europeia (CJEU), a simples emissão de fatura não basta — é necessário comprovar a efetiva prestação e sua vinculação à atividade tributada da contribuinte.[6]

Portanto, mesmo com a simplificação trazida pelo IBS/CBS, algumas complexidades persistirão — a exemplo das operações internacionais entre partes relacionadas sujeitas às regras de preços de transferência.


[1] A Lei 14.596/2023 assim define o Princípio Arm’s Length em seu artigo 2º: “Para fins de determinação da base de cálculo dos tributos de que trata o parágrafo único do art. 1º desta Lei, os termos e as condições de uma transação controlada serão estabelecidos de acordo com aqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.”

[2] “Art. 11. Para fins do disposto nesta Lei, será selecionado o método mais apropriado dentre os seguintes:
(…) IV – Margem Líquida da Transação (MLT), que consiste em comparar a margem líquida da transação controlada com as margens líquidas de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas, ambas calculadas com base em indicador de rentabilidade apropriado;”

[3] Vale citar trecho do voto proferido: “Colocando em parênteses as vicissitudes de se tratar de uma operação sujeita a  regras  de  tributação  internacional,  o  que  se  verifica,  no  caso,  é  a  presença  de  uma  forma  análoga  de bonificação  ­ a Nota  de Crédito  opera como  um redutor  de custos  da adquirente  dos produtos, haja vista que os custos não podem ser aproveitados na contabilização do lucro  real para além do preço parâmetro estipulado nos termos da lei 9.430/96”

[4] Nesse sentido, vale mencionar estudo técnico do regime do IVA europeu sobre possíveis implicações de preços de transferência no campo do imposto sobre o consumo: European Commission, VAT Expert Group, VEG No. 71 Rev2 – Possible VAT implications of transfer pricing, CIRCABC, Annex to Document 945 Rev. Disponível em: https://circabc.europa.eu/sd/a/96aa53b0-f2b6-4b06-b93a-9dd07bde6e51/945%20rev%20-%20annex%20-%20opinion%20of%20the%20vat%20expert%20group%20on%20transfer%20pricing.pdf. Acesso em: 25/04/2025.

[5] “Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. § 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte: (…) VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição;”

[6] CJEU, Processo C‑726/23, G. S. contra Agenția Națională de Administrare Fiscală – Direcția Generală Regională a Finanțelor Publice București – Administrația Sector 1 a Finanțelor Publice, Parecer do Advogado-Geral, 21 mar. 2024. Disponível em: https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=297550&pageIndex=0&doclang=en&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=14198724. Acesso em: 25/04/2025.

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