A tensão entre estabilidade contratual e dinamicidade normativa sempre foi um dos temas centrais nos contratos administrativos, sobretudo nas concessões de infraestrutura. Esses contratos, por sua natureza, estão submetidos a um ambiente regulatório em constante evolução.
De um lado, o poder concedente invoca a supremacia do interesse público e a necessidade de adaptar normas e políticas às novas realidades sociais, econômicas e ambientais. De outro, o concessionário busca previsibilidade, proteção contra riscos não assumidos e a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro.
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Nessa zona de fricção, o Direito Regulador surge não apenas como instrumento de coordenação entre os interesses público e privado, mas também como arena de conflitos, sobretudo quando alterações normativas impactam diretamente as obrigações contratuais assumidas em contexto anterior.
Em setores intensamente regulados, como transportes, energia e saneamento, é natural que o marco normativo evolua, seja por mudanças tecnológicas, exigências ambientais ou diretrizes de política pública. O desafio jurídico não reside na mudança em si, mas nos seus efeitos sobre contratos em curso.
A prerrogativa de revisão unilateral por parte da Administração Pública não é ilimitada. A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos tribunais superiores tem reiterado a necessidade de compatibilização entre a legalidade do ato normativo e os princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança legítima e da vedacão ao comportamento contraditório. Tais princípios se conectam com a teoria da imprevisão e com os mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, como forma de mitigar impactos oriundos de fatos supervenientes ou de atos do poder concedente.
A Lei 8.987/95, marco legal das concessões, é clara ao assegurar que o equilíbrio econômico-financeiro deve ser mantido durante toda a execução contratual, cabendo sua recomposição sempre que fatos imprevisíveis, casos de força maior ou atos unilaterais da Administração afetem a equação inicial. Contudo, a comprovação do nexo causal, a quantificação dos efeitos e a tempestividade do pleito permanecem como desafios concretos à efetiva proteção contratual.
O exercício do poder regulatório, especialmente quando promovido por meio de normativos infralegais como resoluções, portarias ou circulares, exige parcimônia e fundamentação qualificada. O uso excessivo desses instrumentos para alterar substancialmente a execução contratual pode comprometer a própria lógica das concessões.
Afinal, os contratos são construídos com base em premissas regulatórias vigentes à época da licitação, refletindo uma alocação de riscos pactuada entre as partes. Romper esse equilíbrio sem a devida compensação fere não apenas o contrato, mas a própria função da regulação: promover previsibilidade, segurança jurídica e eficiência alocativa.
Nessa linha, ganham especial relevo os princípios consagrados na Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que reforça os limites ao abuso do poder regulatório. O artigo 4º, inciso III, veda expressamente a edição de normas que criem reservas de mercado ou imponham obrigações desproporcionais e sem justificação técnica. Embora voltada às relações de mercado em geral, essa diretriz também se aplica ao contexto das concessões, nas quais o concessionário atua como agente econômico delegado do Estado. A imposição de exigências não previstas no edital ou no contrato, sem a devida compensação, pode configurar interferência indevida na livre iniciativa e desequilíbrio contratual.
Ainda nesse contexto, a Lei também valoriza o princípio da segurança jurídica ao dispor que as decisões administrativas devem respeitar os padrões legais vigentes à época em que o agente econômico assumiu seus compromissos. Tal comando reforça a necessidade de que a mutabilidade regulatória seja compatibilizada com a previsibilidade exigida pelos concessionários, sobretudo em contratos de longo prazo e de alto investimento.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), especialmente em suas alterações mais recentes, também impõe à Administração Pública o dever de fundamentação qualificada de suas decisões. O artigo 20 da LINDB exige que atos administrativos que imponham novos encargos considerem as consequências jurídicas e econômicas da medida, evitando soluções abruptas ou desproporcionais. Essa exigência é particularmente relevante quando se trata de alterações regulatórias com impacto direto sobre contratos em curso.
Ademais, a Análise de Impacto Regulatório (AIR), prevista na Lei das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019) e institucionalizada por diversos regulamentos infralegais, deve ser vista como instrumento essencial para conferir racionalidade, previsibilidade e transparência ao processo regulatório. Por meio da AIR, a Administração deve avaliar os custos e benefícios das alternativas regulatórias, bem como o impacto de cada uma sobre os agentes regulados. A omissão dessa análise em mudanças relevantes pode ser interpretada como falha no dever de motivação, colocando em xeque a legitimidade do ato normativo.
Por fim, o papel do Poder Judiciário e dos órgãos de controle externo é cada vez mais relevante na aferição da legalidade e da proporcionalidade de atos regulatórios. O Supremo Tribunal Federal tem reforçado, em diversas decisões, a importância da segurança jurídica e da confiança legítima, inclusive em matéria de concessões. O TCU, por sua vez, tem exigido a adoção de análises técnicas e estudos de impacto regulatório como condição para a validade de alterações com efeitos econômicos significativos.
A compatibilização entre a mutabilidade regulatória e a estabilidade dos contratos de concessão continua sendo um desafio relevante, mas não intransponível. O direito administrativo contemporâneo já oferece instrumentos e princípios que permitem enfrentar esse tema com equilíbrio, especialmente a partir das diretrizes da LINDB e da Lei de Liberdade Econômica, que reforçam a importância da segurança jurídica, da confiança legítima e da racionalidade na atuação estatal.
A análise de impacto regulatório, quando aplicada de forma consistente, contribui para decisões mais transparentes, proporcionais e sustentáveis ao longo do tempo. Da mesma forma, o diálogo contínuo entre reguladores e concessionárias tende a produzir soluções mais eficientes, reduzindo a judicialização e promovendo maior previsibilidade para todos os envolvidos.
A regulação está em constante evolução, e é natural que o ambiente contratual também se adapte a novas realidades. O ponto central está em conduzir essas adaptações com responsabilidade, respeitando os compromissos assumidos e fortalecendo o ambiente de confiança mútua que deve sustentar as parcerias público-privadas.
Mais do que um conflito, o tema representa uma oportunidade: a de aperfeiçoar a governança regulatória, com segurança jurídica e foco no interesse público — sempre com base no diálogo, na técnica e na previsibilidade.