O pesquisador Felipe Drumond tem se debruçado sobre alternativas para tornar o Estado mais efetivo. Além do estudo sistemático de experiências internacionais, ele também progride na investigação da trajetória de reformas ou adaptações pelas quais o serviço público brasileiro passou no último século. E aponta lacunas nesse processo, que poderão ser enfrentadas pelo Congresso em um Grupo de Trabalho que tem sido articulado pelo deputado Zé Trovão (PL-SC), com o respaldo do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB), para tratar da reforma administrativa.
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Atuante em debates com a sociedade organizada, com as entidades sindicais e com o próprio governo, o estudioso vê um momento especial para que o Congresso volte a discutir a Reforma Administrativa, desde que faça um “pacto” com o Executivo para construir propostas sobre o Estado melhor, e não sobre o menor.
Em entrevista ao JOTA e à newsletter Por Dentro da Máquina, Drumond defende a estabilidade para todos os servidores, porém com mecanismos de desligamento por mau desempenho. E define como prioritário o debate sobre carreiras. Para ele, uma reforma na legislação só cumprirá seu papel se priorizar pessoas e estados e municípios. A seguir, os principais trechos da conversa.
Na sua visão, quais são os ingredientes indispensáveis para uma reforma administrativa?
O primeiro ponto é o foco. Quando falamos de serviço público, falamos de pessoas. Os serviços públicos são intensivos em pessoal. Quando falamos de educação, de professores. Em saúde, de médicos. Em segurança pública, de policiais… Os grandes serviços públicos são movidos por pessoas. A essência de qualquer reforma administrativa vai estar ligada à modernização das regras de pessoal. Existem outros desafios, mas eu entendo que essa é a principal despesa do Estado, é onde também estão os nossos principais problemas e limites…
Por outro lado, escolhemos deixar muito claro, inclusive na Constituição, as regras do serviço público. Então, é um tema legal. Uma reforma tributária muda a Constituição, faz alterações legislativas para mudar o sistema tributário. Precisa mexer nas leis. Reformas trabalhista, previdenciária? A gente também está falando de mexer nas leis. Se a gente está falando de uma reforma administrativa, a gente precisa alterar leis.
Portanto, é necessário dar enfoque para a questão legal e para a questão de pessoal. São os ingredientes que não podem faltar.
E para tratar de pessoas, quais são os grandes temas?
Praticamente todo ciclo de vida do servidor é legislado. O estágio probatório, o ingresso, a carreira… tudo é legislado e alguns desses pontos estão na própria Constituição.
O que eu entendo como grandes pontos? A primeira coisa é o concurso público. A experiência do Concurso Nacional Unificado foi muito interessante, mas eu pensaria também na melhoria do concurso em estados e municípios. [O Congresso aprovou, em 2024, a Lei Nacional de Concursos Públicos, que dá a estados e municípios a prerrogativa de optar por editar normas próprias].
Tem um período intermediário, o estágio probatório, que hoje não funciona. A estabilidade é algo muito sério, é uma defesa do Estado. Mas, evidentemente, também é muito benéfica para aquele profissional. Garante mercado de trabalho para o resto da vida. Para que você tenha esse benefício, precisa ter passado do estágio probatório rigoroso. Isso, praticamente, não funciona. É um desrespeito com o instituto da estabilidade. A gente precisa de um estágio probatório com avaliações mensais. Se o profissional não tiver perfil, você pode desligar. Isso que a gente vê em outros país.
Chegamos ao universo das carreiras, que é o principal desafio que temos no Brasil. A Constituição já prevê direito a plano de carreira e trouxe diretrizes, como foi feito em 1998, para melhorar a organização dos salários, mas isso não aconteceu. Temos salários altamente desiguais, pessoas fazendo coisas muito similares, ganhando salários diferentes. Por toda a produção acadêmica que temos visto, estamos avaliando que, hoje, o salário que uma carreira recebe está muito mais ligado ao poder que ela tem do que à relação dela com complexidade da atividade, que deveria ser razão de um bom salário.
Temos que nos preparar enquanto país para o futuro. E a gente vê que muitos países da OCDE não acabaram com a estabilidade, mas estão criado alternativas. Acho que é esse o caminho. Por exemplo, na administração pública brasileira, temos carreiras obsoletas. Têm pessoas que eram operadores de máquinas de escrever, isso acabou. Daqui a 20 anos, outras carreiras vão acabar, e a gente precisa ter a flexibilidade necessária para cuidar disso.
O desligamento por obsolescência, pagando uma devida indenização para o profissional, deve ser seriamente discutido. A gente vai passar por uma revolução de trabalho muito grande, que não sabemos dimensionar, mas o Estado precisa ter capacidade para lidar com esta revolução.
Outro grande ponto é o desligamento por desempenho insuficiente. Isso é uma dívida que temos enquanto país. Isso é uma reforma que deveria ter sido feita há muito tempo, é um legado não implementado da Constituição, e tem que ir para frente. Paralelamente, coloco outras duas coisas: lidar com o servidor temporário e o comissionado.
Em relação aos comissionados e temporários, qual é a sua visão?
No caso do comissionado, a gente fez um desenho muito frágil no qual falou: ‘olha, o servidor de carreira vai estar submetido a um sistema de mérito, e para o servidor comissionado o sistema de mérito não entra’. Mas, na prática, um sistema interfere no outro. Temos muitos servidores em cargo de comissão, com uma lógica que às vezes é política. Não que eles vão se partidarizar, mas começam a pensar mais no sentido político do que sobre o serviço público.
Temos que estabelecer que o sistema de mérito pode ser usado para parte dos cargos comissionados.
E para os temporários, a gente vê nos entes subnacionais uma completa autonomia que resulta em sérios problemas trabalhistas. Professoras temporárias sem direito à licença maternidade, que precisam judicializar. Professores temporários que, em dezembro, têm o contrato suspenso, não é pago no salário de janeiro, e eles voltam a trabalhar em fevereiro.
Há uma série de abusos sob o ponto de vista trabalhista, do ponto de vista de ambiente de trabalho. A gente não quer de forma alguma tirar a capacidade do Estado de ter esse instrumento que é necessário, mas aperfeiçoar o uso dele e, então, trazer mais garantia a esse trabalhador.
Outra coisa: temos muitas disparidades dentro do serviço público, dentro dos Poderes, dentro das carreiras. Muitos países aproximaram regras do servidor público com o setor privado. As licenças, os prazos, todos muito próximos. Eu acho que a gente tem que pensar que o trabalhador brasileiro é um trabalhador, independente de onde ele estiver trabalhando. A gente tem que ter uma parametrização, uma baliza de direitos trabalhistas em ambas as situações.
A agenda remuneratória
“Não tem dinheiro para pagar um salário super alto para todo mundo, e nem é o caso de conseguir estabelecer prioridade de quem vai ganhar bem ou mal. As pessoas têm que ganhar aquilo que é justo. A gente tem que ter a seriedade de desenhar uma reforma que dê a capacidade de fazer isso.”
Dentro desse tema das carreiras e das disparidades e eventuais distorções, entra o assunto dos salários. Reformar o Estado passa por dar mais transparência aos rendimentos, em todos os Poderes?
Com certeza. Infelizmente, tem um legado de muitas camadas que vão se acumulando, formando uma estrutura mais difusa, confusa e difícil de entender. A simplicidade tem que ser um pilar básico. Todos os países que trabalharam nessa discussão buscaram simplificar suas bases salariais.
No próprio Executivo, você tem carreiras que recebem por subsídio, outras por vencimento básico, com vários tipos de adicional, com gratificações regulamentadas por decreto, como no caso da Receita. Tudo é muito particular de cada um. É tudo muito confuso. Sinceramente, a gente tem que mudar nosso modelo para uma remuneração simples, baseada em tabela salarial.
O próprio caso das carreiras da magistratura, dos membros de Poder. Os juízes têm uma complexidade de trabalho elevadíssima. A pessoa está tomando decisões sobre a vida dos outros. É inegável que essas pessoas têm que ganhar melhor, mas o teto não está sendo factível. Então, vamos discutir o teto. Se a gente acha que existem servidores que têm que ganhar determinada remuneração, acho que a gente tem que discutir o teto, e pensar que pode ser até melhor para elas.
A gente tem que parar de buscar contornar as coisas. Quando você tem um sistema com pouca transparência e com pouca governança, ele é contornado e gera distorções. Quando olhamos pesquisas que falam do Executivo, vê aumentar nas últimas décadas os salários das carreiras mais fortes, que não seguem uma lógica técnica. Segue uma lógica política.
Em relação aos salários, precisamos de comitês técnicos que decidam isso. Não é uma discussão política. A gente tratar isso como uma discussão política diz muito sobre o nosso país, sobre o nosso estágio de desenvolvimento. Aquilo ali é recurso público! Países mundo afora têm critérios de complexidade, critérios técnicos, pesquisas de distorção do salário do público e do privado, que são a base da negociação e da definição dos salários. Os salários tendem a ser em tabelas únicas, os reajustes tendem a ser os mesmos.
Aqui no Brasil, a gente tem uma lógica de que, dependendo de quem for o governo e para qual carreira ele vai estar mais inclinado, alguém vai ganhar mais, outros não vão ganhar ou vão ganhar menos. Essa disparidade traz uma distorção, e vai se acumulando em camadas.. Isso gera um sistema que vai pingando toda hora uma gotinha até que explode. A gente tem que ser bem sincero porque esse nosso modelo não conseguiu entregar aquilo que esperava do serviço público.
Não tem dinheiro para pagar um salário super alto para todo mundo, e nem é o caso de conseguir estabelecer prioridade de quem vai ganhar bem ou mal. As pessoas têm que ganhar aquilo que é justo. Outros países conseguiam passar por esse caminho. A gente tem que ter a seriedade de, enquanto país, desenhar uma reforma que dê a capacidade de fazer isso. Pessoalmente, acho que gente não tem nem capacidade legal, nem institucional, para ir nesse caminho.
Cada estado, cada município, cada carreira federal tem suas legislações… Cada um tem uma autonomia muito grande, o CNJ, o CNMP têm sua autonomia em relação aos salários, e a gente não tem nenhuma governança geral em relação a esses pontos.
Até quem defendia a versão final da PEC 32 viu graves erros políticos na condução do processo. Esse discurso de “estado mínimo” ou de “máquina inchada” já não cola mais?
Já não cola mais. Naquele momento da discussão da PEC, teve muito estudo, teve muito trabalho, a gente se aprofundou. Todo mundo se aprofundou no tema. O grande resultado foi abandonar a discussão de que a Reforma Administrativa sobre o Estado menor. A Reforma Administrativa é sobre o Estado melhor. Eu acho que a discussão se vai privatizar, se vai ser público ou privado, de como vai ser para outra esfera, a PEC 32 não conseguiu passar essa mensagem com os pés no chão.
A própria esquerda brasileira não gosta de discutir reforma porque ela sempre esteve muito associada a uma visão de diminuição do papel do Estado, o que é muito triste. A gente precisava ver direita e esquerda debater o tema de forma séria, principalmente quando a gente não tá falando do governo federal, mas estamos falando de uma reforma do Brasil, dos Estados, dos municípios, que são 90% dos servidores.
A estabilidade
“Acho que hoje existe sim exagero das proteções contra o desligamento do servidor. Precisamos aprimorar esses instrumentos, não falar que um grupo não tem nenhuma proteção e outro continua sendo promovido, protegido da forma que é hoje.”
Existe um debate sobre a estabilidade de carreiras chamadas típicas de Estado e uma diferenciação com outras, que atuam na ponta, como na saúde e educação… Na sua avaliação, a estabilidade deve ser para todos os servidores?
Já existe hoje flexibilidade. Você pode contratar professor temporário, pode transformar a gestão da rede de saúde, via PPP, concessão, por diversos modos. As grandes áreas de política pública já estão, de uma forma ou de outra, se virando para conseguir executar seus serviços de forma mais flexíveis. A realidade sobrepõe à falta de recursos também.
Agora, do meu ponto de vista e muitos países foram nesse caminho, a estabilidade e a autonomia funcional garantem a autonomia daquele profissional frente a interesses que não são republicanos. Para defender, acima de tudo, a sociedade, o Estado e o cidadão. Por isso, a gente tem que ter um corpo permanente. Isso também é uma questão de efetividade. A autonomia funcional é uma das coisas mais importantes para o país. Dentro de uma escola, você vai ter situações ali que podem beirar a corrupção, que podem beirar a perseguição política, que podem beirar o assédio.
Você pode colocar um diretor com determinada orientação política. Se aquele professor ali não tiver uma certa autonomia, ele vai se prejudicar, mas, provavelmente, não pode ser demitido. Não acho que nós temos que enfraquecer a autonomia funcional nem para o fiscal da Receita, nem para o professor.
A flexibilidade se dá de outras formas, se bem geridas. Você pode ter uma boa educação executada de outra forma, mas deve ter um time bom para fazer a gestão. E esse time tem que ter essa autonomia funcional porque não pode aceitar a propina numa PPP. Isso é garantido através da estabilidade. De um lado, o primeiro ponto é continuar no modelo onde a estabilidade para todos, e, de outro, que a gente discrimine menos o servidor.
Isso é histórico do Brasil. Em todas as áreas que pode-se pensar, gostamos muito de separar as coisas. No lugar de colocar leis para todo mundo e regras para todo mundo, a gente separa. Eu quero que todo servidor brasileiro permanente tenha autonomia, tenha proteção.
Agora, essa proteção pode ser grande demais. Você pode ter uma proteção que mal medida, que, mal gerenciada, favorece o servidor que não tem um bom desempenho. Então, em algum momento, essa proteção passa por limites, ela pode ser contra a própria administração pública. É interessante para a administração pública, para o Estado e para a sociedade que pessoas com mau desempenho sejam desligadas.
Acho que hoje existe sim exagero das proteções contra o desligamento do servidor. Precisamos aprimorar esses instrumentos, não falar que um grupo não tem nenhuma proteção e outro continua sendo promovido, protegido da forma que é hoje.
Não há uma contradição falar em defesa da estabilidade, com capacidade de desligamento do servidor para o mau desempenho?
Não, porque é totalmente possível fazer um bom processo de desligamento que não fira a estabilidade. Eu não posso deixar ter perseguição. Como é que a perseguição se dá? Se eu tenho, por exemplo, só uma chefia avaliando aquela pessoa, se aquela chefia acha aquela pessoa ruim, manda ela embora.
Se essa pessoa está mal, vamos mudar ela de setor, vamos fazer com que tenha uma comissão só de servidores efetivos acompanhando essa pessoa, de diferentes pessoas. Vamos criar um processo onde a gente dê oportunidade, dê incentivos, capacite.
Você garantiu que os servidores permanentes a acompanharam, deu oportunidade para trabalhar em outros setores. Se, depois disso, não melhorou, ai sim, pode falar em desligamento. Vai precisar desenhar um processo que tenha um certo rigor, mas que precisa existir. A gente tem que ter alguns processos com rito sumário para alguns tipos de comportamento e também para algumas questões.
Estabilidade não é direito, é dever. Prestar um bom serviço para a sociedade. Então, a partir do momento que a pessoa não tem condições de fazer isso, de cumprir com o que o interesse público necessita, ela tem que ter um processo que gere desligamento. O trabalho não é para o servidor, é para o cidadão.
Uma proposta que não seja vinculante para estados e municípios pode ser vista como uma verdadeira reforma administrativa?
Muito pouco. Apenas 9% do serviço público está na União. 91% estão nos estados e nos municípios. A União tem problemas? Tem. Mas na União tem sido feito um trabalho nas últimas gestões, nessa gestão, de transformação, de melhoria. Tem sido um avanço significativo. Mas se a gente pensar uma reforma administrativa, é uma reforma que passa pela Constituição, assim como a tributária. Seria uma reforma tributária se a gente discutisse só os tributos da União? Não seria.
Seria uma reforma trabalhista se eu tratasse de 20% da CLT? Não seria. Assim como não vai ser uma reforma administrativa se eu tratasse de 9% de serviço público e deixar de fora mais de 5.500 municípios. Se eu não pensar numa reforma que atinja todos eles, não vai conseguir ter a densidade de alcance que precisa ter.
É inocência nossa achar que todos os estados e todos os municípios vão ter condição aumentar os vinculo de trabalho temporário, o que é complexo. É inocência achar que vai partir deles uma modernização dos cargos comissionados de forma estrutural, de forma coletiva. Felizmente, eu tenho visto o próprio Congresso com essa visão.
O papel do governo
“Tem que se pensar muito bem nisso, porque não participar de um debate agora pode fazer com que tenhamos depois um debate menos diverso. Por mais que a gente tenha um Congresso hoje com orientação mais direita, a gente tem um governo com outra orientação. A receita de países de sucesso mostra que diversidade traz boas propostas.”
Se o governo não der o sinal verde para que se dialogue sobre uma PEC, vê condições desse debate evoluir no Congresso?
Confesso que não tenho muitas leituras da variável política em torno desse tema. Agora, se o Congresso se propor fazer uma discussão de Estado melhor, pactuar que não vai discutir estado menor, uma conversa madura entre os dois, eu acho que é interessante que o governo entre no debate. Acho que sem o governo nessa discussão, perde-se muita qualidade técnica, perde-se muito. O governo pode embargar essa agenda, mas eu tenho muito medo de que quanto mais a gente posterga, mais ela pode cair em um momento errado.
O governo que, na oposição, foi tão crítico à PEC 32, está dentro da administração pública. Se não for fazer essa discussão nesse período, corre risco de estar numa situação muito mais frágil para fazer esse debate em 2026 ou em 2031, ou seja lá quando for, porque vivemos em uma democracia. Uma hora os lados mudam, não é? Então, tem que se pensar muito bem nisso, porque não participar de um debate agora pode fazer com que tenhamos depois um debate menos diverso.
Por mais que a gente tenha um Congresso hoje com orientação mais direita, a gente tem um governo com outra orientação. A receita de países de sucesso mostra que diversidade traz boas propostas. Temos, talvez, um dos melhores cenários para essa discussão agora, porque a gente vai ter uma diversidade. Ao mesmo tempo, com a PEC 32, nós aprendemos muito. A gente tem uma Academia que produz muito, todo mundo tem estudado o tema.
Eu acho que é muito importante fazer isso dentro de equilíbrio de forças, que seria esse cenário agora, não perder essa oportunidade.