A proposta de reforma do Código Civil brasileiro, formalizada pelo Projeto de Lei 4/2025, apresentada pelo então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, foi baseada em um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a pedido do próprio Pacheco. Na entrega, o senador afirmou que “a comissão produziu uma peça capaz de dialogar com a onda de inovações tecnológicas, as mudanças comportamentais e as alterações demográficas que estão em curso. Posso dizer, sem exageros, que ganhamos uma bússola”.
Para parte da comunidade jurídica, no entanto, a bússola está descalibrada. Em evento promovido pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, com apoio do JOTA, três especialistas, Judith Martins-Costa, da Universidade de São Paulo, Cristiano Zanetti, do ICC, e Paulo Doron, da Fundação Getulio Vargas, apontaram para os riscos legislativos, econômicos e institucionais da proposta, e pediram pelo seu arquivamento.
Para Martins-Costa, o PL representa não apenas uma reforma, mas uma “substituição integral do sistema jurídico privado”, com impactos que podem comprometer a previsibilidade contratual, a responsabilidade civil e a segurança normativa de setores como infraestrutura, crédito e plataformas digitais.
O Projeto de Lei 4/2025 propõe a revisão quase total do Código Civil de 2002, reestruturando todos os livros do código, incluindo obrigações, contratos, responsabilidade civil, família e sucessões, e adiciona novos temas como o “Direito Civil Digital” e a “função social dos dados”. “Este projeto não foi solicitado por ninguém. Não houve clamor popular. Não houve estudo de impacto econômico. Não havia qualquer urgência”, diz Doron.
Judith Martins-Costa: ‘O Código virou peça de populismo jurídico’
Professora da Faculdade de Direito da USP e presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC), Judith Martins-Costa afirma que o projeto representa uma “hecatombe no direito, na cultura e na economia”. Para ela, a linguagem vaga e o desprezo pela tradição jurídica resvalam no que chamou de populismo jurídico: “É uma tentativa de redimir o povo contra as elites jurídicas, como se os professores fossem cúmplices das empresas e estivessem divorciados da realidade”, afirmou.
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A professora criticou o uso inflacionado e descriterioso de cláusulas gerais no PL 4/2025. “O método das cláusulas gerais requer muita prudência e contenção. […] Não se pode inserir dezenas de expressões vagas, como função social, merecimento de tutela, confiança subjetiva ou objetiva, sem qualquer densidade normativa consolidada. O resultado é a multiplicação de insegurança e de arbítrio judicial”, explicou.
“O que está sendo proposto aumenta de forma desmedida o poder do juiz. O cidadão não poderá saber o que é lícito, válido, o que gera indenização. Isso rompe com a segurança jurídica, pilar do Estado de Direito”, disse. Com as cláusulas gerais, o legislador não fornece diretamente a norma, mas entrega ao juiz a tarefa de criá-la a posteriori, após os fatos ocorrerem. Ou seja, o cidadão não sabe previamente o que é permitido ou proibido, o que viola o princípio da legalidade e o ideal de previsibilidade do direito.
As cláusulas gerais existem para dar maleabilidade ao sistema jurídico e permitir que ele se adapte à complexidade das relações sociais, evitando o engessamento típico de normas excessivamente rígidas. Assim, são úteis em contexto dinâmicos, como os tecnológicos e de costumes. Mas, segundo Martins-Costa, o sucesso no seu uso também depende de ordenamentos com doutrina jurídica densa e jurisprudência amadurecida e harmonizada.
Caso aprovado, os efeitos do novo código serão sentidos rapidamente por diversos setores da economia, diz a professora, inclusive aqueles que acabaram de passar por mudanças regulatórias, como o caso do Marco Legal dos Seguros, aprovado no início do ano. “Foi uma elaboração legislativa exemplar neste país. […] Durante 23 anos foi pensada, discutida, refinada e elaborada, ouvindo-se todo mundo: seguradores, consumidores, resseguradores, companhias, empresas estrangeiras”, diz. “Como calcular prêmio se não se sabe o que é o risco? Como precificar um contrato se há regras tão incertas?”
Cristiano Zanetti: ‘Estamos criando um experimento jurídico sem paralelo no mundo’
Vice-presidente da Comissão de Arbitragem da ICC Brasil, Cristiano Zanetti criticou a inovação trazida pela proposta em relação à categorização inédita dos contratos entre “paritários e simétricos” e “díspares e assimétricos”. “Esses conceitos não são encontrados em nenhum ordenamento jurídico do mundo. O projeto cria distinções que não têm definição legal, nem critério objetivo de aplicação. Não sabemos se a paridade será medida pela renda, pelo porte das empresas ou por qualquer outro fator”, disse.
A consequência de uma mudança como a proposta, segundo ele, será a imprevisibilidade. “Essa proposta é um convite ao arbítrio. O juiz terá de decidir, caso a caso, se o contrato é simétrico ou não, e isso determinará se a cláusula é válida, se pode haver limitação de responsabilidade, se há confidencialidade ou não”, diz.
“Com esse conjunto de normas, o Brasil terá um código contratual singular, exótico, sem paralelo no mundo, cujos termos não têm significado jurídico reconhecido. O resultado será insegurança, arbitrariedade e instabilidade”, afirma. “Nós vivemos em uma economia globalizada. O Brasil exporta commodities, importa insumos. Essas trocas dependem de contratos previsíveis, estáveis e minimamente harmonizados com o direito internacional”, completa.
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Zanetti também criticou a forma como o projeto lida com o princípio da função social do contrato, hoje consagrado no art. 421 do Código Civil. “Ela foi elevada a critério de validade, eficácia, revisão, resolução e até regulação de serviços digitais — mas sem definição de conteúdo.”
Paulo Doron: “Estamos institucionalizando a indústria do dano moral”
Professor da FGV-SP, Paulo Doron afirmou que, na redação do PL, “foi adotada a técnica da terra arrasada. Nenhum artigo da disciplina atual foi preservado”, e chamou o projeto de “tsunami jurídico”. O especialista rejeita a ideia de que isso se justifique por avanços sociais ou tecnológicos. Ao contrário, afirma que os conceitos centrais da responsabilidade civil seguem válidos desde o século XIX, tanto em países de sistemas romano-germânicos quanto nos de common law.
Segundo ele, a nova estrutura rompe com os pilares tradicionais da responsabilidade civil, ilicitude, dano e nexo causal, e os substitui por conceitos fluidos. “A proposta prevê indenização por dano estatístico, probabilístico, futuro, indireto, presumido. E permite que o juiz fixe o valor com base em sua estimativa pessoal. Isso abre margem para judicialização desenfreada”, alertou. “Estamos institucionalizando uma indústria do dano moral, que explora o sistema de justiça em detrimento da segurança jurídica e da economia nacional.”
O artigo 944 da proposta, por exemplo, permite que danos morais sejam multiplicados por quatro caso a empresa já tenha sido sancionada administrativamente. “Estamos criando um regime de punição civil cumulativa. Isso agrava a litigiosidade e afeta toda a lógica da previsibilidade jurídica”, afirmou.