As regras institucionais influenciam o comportamento dos atores políticos. Por sua vez, no dia a dia da política, os atores preenchem as regras de significado, ou mesmo as ressignificam. Ao passo que o texto vigente da Constituição brasileira é facilmente acessível online, a prática constitucional frequentemente merece maior escrutínio.
Por exemplo, mesmo prevista desde 1988 na Constituição, nenhuma intervenção federal nos estados havia sido decretada até 2018.[1] Nas aulas de Direito Constitucional, o não acionamento desse dispositivo era comumente atribuído ao ônus político dele decorrente.
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Contudo, em 2018, o então presidente da República, Michel Temer, decretou intervenção federal por duas vezes: a primeira entre fevereiro e dezembro de 2018, na segurança pública do Rio de Janeiro; e a segunda, em dezembro de 2018, no estado de Roraima. Anos mais tarde, o presidente Lula também decretou, em janeiro de 2023, intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal.
Os três Decretos – editados em contextos muito diversos – tinham o mesmo objetivo declarado: “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, III, CRFB). A possibilidade jurídica de intervenção federal já estava presente no sistema brasileiro desde a promulgação do texto constitucional, mas é a partir de 2018 que este mecanismo, necessariamente excepcional em uma federação, ganha substancial relevância.
Em maio de 2025, mais um comando constitucional foi, de forma inédita no plano federal, acionado: a possibilidade de a Casa legislativa sustar processo criminal de parlamentar por crime ocorrido após a diplomação, prevista com o advento da Emenda Constitucional 35, de 2001. Caso isso se torne prática frequente, possivelmente estaremos diante de um novo cenário de forças entre as cúpulas dos Poderes Legislativo e Judiciário. Para melhor discutir a matéria, contudo, é necessário, primeiro, apresentar um contexto histórico e normativo do artigo 53 da Constituição.
Segundo o texto originário da Constituição, os parlamentares, desde a diplomação, não poderiam ser presos, salvo flagrante de crime inafiançável, nem processados, sem a prévia licença da Casa legislativa respectiva. Ambas as garantias – da improcessabilidade e da incoercibilidade pessoal relativa – eram relacionadas à imunidade parlamentar formal.
Esse cenário normativo, contudo, gerou, ao menos em nível federal, distorções no cenário político. Os pedidos de licença prévia feitos pelo Supremo Tribunal Federal não eram concedidos e, por consequência, poucos parlamentares respondiam a processos criminais. Um levantamento publicado pela Folha de S.Paulo em 2001 identificou que, entre 1991 e 1999, dos 151 pedidos de licença prévia que a Câmara dos Deputados recebeu, 2 foram concedidos, 62 foram negados e 87 não foram sequer analisados antes de os congressistas terem deixado o mandato.[2]
Dentre os casos de grande repercussão, está o do assasinato de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em 1998. A Assembleia Legislativa da Paraíba negou, por duas vezes, autorização para instauração de processo criminal em face do então deputado estadual Aécio Pereira de Lima, um dos acusados do crime. Em 2000, submeteu-se o caso ao sistema interamericano e, em 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela violação do direito de acesso à justiça aos familiares de Márcia Barbosa (Caso 12263).
Em 2001, o Congresso Nacional, em um “pacote ético”, aprovou a Emenda Constitucional 35. Dentre as alterações promovidas no artigo 53, a improcessabilidade foi abolida. Em seu lugar, previu-se a possibilidade de a Casa legislativa a que pertence o parlamentar sustar o andamento de processo criminal de parlamentar, por crime ocorrido após a diplomação, em pedido de iniciativa de partido político nela representado e pelo voto de maioria absoluta (art. 53, § 3º, CRFB). Durante eventual sustação do processo, o prazo prescricional fica suspenso (art. 53, § 4º, CRFB).
Apenas a partir desse momento o Supremo Tribunal passou a exercer de fato a sua competência penal. Conforme apuraram Felipe Recondo e Luiz Weber: “de 1988 a 2001, seis ações penais tramitaram no Supremo. De 1996 e 2001 nenhum processo dessa natureza foi aberto. Depois da emenda constitucional e até 2019, 661 ações penais foram instauradas no STF”.[3]
Assim, a Emenda 35 foi um fator inicial de mudança da configuração de forças entre o STF e o Congresso. A partir dela, questões posteriormente foram alvo de disputas entre as esferas, como a possibilidade ou não de prisão de congressista por condenação transitada em julgado e os efeitos de referida condenação no mandato parlamentar.
Fato é que, de 2001 a 2025, a sustação do andamento de processo criminal de parlamentar nunca havia sido aprovada em nível federal. Em 2022, Guilherme Florentino argumentou que essa alteração da imunidade formal, “que poderia ter sido ineficaz, mostrou-se, afinal, efetiva”.[4]
De forma inédita, porém, um pedido de sustação foi bem-sucedido na Câmara. No dia 3 de abril de 2025, o Partido Liberal apresentou o pedido de Sustação de Andamento de Ação Penal 1/2025, relativa ao processo decorrente do recebimento da denúncia contida na Petição 12100, em desfavor do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). No dia 7 de maio, o plenário aprovou o parecer da CCJC por 315 votos favoráveis, 143 contrários e 4 abstenções.
No dia 8 de maio, a Câmara enviou ao STF a Resolução 18, de 2025, que susta “o andamento da Ação Penal contida na Petição 12.100”. Do dia seguinte ao 13 de maio, a Resolução foi debatida pela 1ª Turma em sessão virtual, por meio de uma Questão de Ordem.
A 1ª Turma, seguindo o voto do ministro Alexandre de Moraes, suspendeu parcialmente a Ação Penal 2668: (i) em relação exclusivamente a Alexandre Ramagem Rodrigues e (ii) somente em relação aos crimes supostamente por ele praticados após a diplomação. No entender do colegiado, alguns dos crimes imputados a Ramagem – quais sejam, organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado – foram praticados antes da diplomação.
A celeridade das ações e reações chama atenção. Após a decisão da Câmara, o plenário virtual tornou quase imediata a reação do Supremo, que deliberou entre a sexta-feira (9/5) e a terça-feira (13/5). Contudo, no mesmo dia (13/5), a Mesa da Câmara dos Deputados propôs a ADPF 1227, contestando a decisão da 1ª Turma e solicitando a suspensão integral da Ação Penal 2668. Anteriormente, duas ADPFs, a 1225 e a 1226, já haviam sido protocoladas, mas em desfavor da Resolução da Câmara. Todas estão sob a relatoria do ministro Moraes.
As ressalvas do ministro Flávio Dino na AP 2668 – de que a suspensão deveria valer exclusivamente para a Legislatura em curso e de que ela deixaria de subsistir se o parlamentar for afastado judicialmente e/ou preso, haja vista que a suspensão subsistiria exclusivamente durante o exercício do mandato – não parecem ter sido detidamente analisadas pela Turma. Porém, possivelmente serão objeto de discussões futuras no tribunal.
Ainda não decidido pela Câmara, o caso da Deputada Carla Zambelli também já causou repercussões jurídicas. No dia 15 de maio, a parlamentar afirmou à imprensa que o pedido do Partido Liberal para suspensão da Ação Penal 2428, em seu desfavor, teve um “sinal verde” para ser pautado.
Porém, em decisão monocrática do dia 12 de maio, o ministro Moraes havia entendido que a referida Ação não poderia ser suspensa (i) porque os crimes imputados foram supostamente praticados antes da diplomação e (ii) porque já estaria encerrada a instrução processual.
O acionamento desse dispositivo constitucional não pode passar despercebido, especialmente diante do risco de que se consolide como praxe na dinâmica política, e não mais como um ônus político demasiado grande para ser encarado. Nesse caso, o Supremo atuará não como um mero espectador, mas como um ator decisório. E nas discussões institucionais o texto constitucional não atuará, necessariamente, como um limite.
Em 2021, a Corte IDH decidiu que a Casa legislativa, na eventual decisão de suspensão de processo criminal de parlamentar, deve velar para que a aplicação e interpretação da norma se ajuste aos critérios estabelecidos na condenação, de forma a proteger o direito de acesso à justiça. Esse deve ser um dever do Estado e de toda a sociedade. Atenção, constitucionalistas: estejamos de olhos atentos às novidades do Direito Parlamentar.
[1] “Mas várias intervenções de estados em municípios já haviam ocorrido, sobretudo nos casos de não prestação de contas (art. 35, II) e não cumprimento de decisões judiciais (art. 35, IV)” (SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, nota de rodapé nº 73).
[2] COSSO, Roberto. Congresso protege parlamentares de ações. Folha de S. Paulo, 5 ago. 2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0508200109.htm. Acesso em: 16 maio 2025.
[3] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: O STF, seus bastidores e as suas crises. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 242.
[4] FLORENTINO, Guilherme. Imunidades parlamentares: a trajetória brasileira. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2022, p. 146. O autor critica as Assembleias Legislativas e a Câmara Legislativa do Distrito Federal, ainda que tenham regra semelhante, “parecem ainda aferrados ao compromisso corporativista de sustar processos (e relaxar prisões), diferentemente do que se dá no Congresso Nacional” (p. 147).