Nas duas últimas décadas, especialmente após o fracasso da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o progressivo bloqueio do funcionamento do seu Órgão de Solução de Controvérsias, o comércio internacional passou por uma transformação significativa. Observa-se o enfraquecimento do paradigma da liberalização incondicional e a ascensão de uma abordagem mais pragmática, voltada à proteção de interesses estratégicos nacionais.
A atual política tarifária do presidente Trump representa um marco emblemático da guinada protecionista, com a adoção de medidas destinadas a fortalecer a competitividade da indústria americana frente à crescente concorrência externa.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Essa estratégia foi particularmente acentuada em relação à China, com a imposição de tarifas de até 125% sobre diversos produtos industriais chineses, institucionalizando um regime de tarifas recíprocas por meio de aprovação legislativa no Congresso norte-americano. Com isso, boa parte das exportações chinesas tiveram bloqueado o acesso ao mercado americano, criando um cenário de desvio de comércio de grandes proporções.
Diante da necessidade de redirecionar seu excedente produtivo, a China buscará novos mercados para seus produtos, o que coloca o Brasil em uma posição vulnerável. Com um mercado interno relevante e regras comerciais mais permissivas, o país pode se tornar um dos principais destinos desse fluxo desviado, intensificando os desafios já enfrentados por setores industriais estratégicos brasileiros. É hora de o Brasil discutir seriamente a criação de um mecanismo similar ao dos EUA para proteger a sua indústria nacional. É hora de criarmos uma Seção 232 brasileira.
Existe, atualmente, uma reconhecida limitação dos instrumentos disponíveis para enfrentar surtos de importações derivados de desvios de comércio. O Brasil conta com dois principais mecanismos: os instrumentos de defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas) e as medidas de alteração tarifária (como a Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum [Letec] e Lista de Desequilíbrios Comerciais Conjunturais [Lista DCC]). Ambos são inadequados ao novo contexto geopolítico.
Com relação às investigações de defesa comercial, estas são conduzidas pelo Departamento de Defesa Comercial (Decom) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e são marcadas por sua morosidade, com duração de 10 a 18 meses – um tempo que pode ser fatal para diversos setores industriais. Já as alterações tarifárias são limitadas pelas bound tariffs estabelecidas nos acordos da OMC, o que reduz sua efetividade como barreira temporária ao avanço de importações.
Nos EUA, a Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962 autoriza o presidente a impor restrições às importações sempre que estas forem consideradas uma ameaça à segurança nacional. O Brasil deve, portanto, trilhar caminho semelhante com a criação de legislação específica.
A indústria nacional é um ativo estratégico de segurança nacional. Uma base industrial forte é condição essencial para a autonomia tecnológica, geração de empregos qualificados e capacidade de resposta em situações críticas, como vimos durante a pandemia de Covid-19.
A construção jurídica para esse novo instrumento não exige ruptura normativa. O artigo 21 do GATT, que trata das exceções de segurança, permite aos países adotarem medidas comerciais excepcionais para proteger interesses essenciais de segurança nacional.
O Brasil pode, de maneira legítima, argumentar que determinados setores industriais se enquadram nessa exceção. Soma-se a isso o Tratado de Montevidéu de 1980, base jurídica da Aladi e, por extensão, do Mercosul, que assegura, em seu artigo 50, a possibilidade de adoção de leis nacionais de segurança mesmo no contexto de compromissos comerciais regionais. Há, portanto, robusto amparo jurídico internacional para a instituição de uma Seção 232 brasileira.
O MDIC precisa assumir a liderança na elaboração de um projeto de lei que crie esse novo instrumento. A legislação deve prever que o Decom seja a autoridade responsável por conduzir as investigações, com prazo máximo de 4 meses para conclusão, focando em análises econômicas dos danos atuais ou potenciais causados pelas importações.
Recomenda-se ainda a inspiração nos critérios da legislação norte-americana da Seção 232, de forma que a investigação brasileira inclua uma avaliação técnica aprofundada do volume, tipo e evolução das importações, da capacidade de produção doméstica, do nível de emprego nos setores afetados, da dependência tecnológica e da presença de infraestrutura crítica vulnerável. O impacto das importações na estabilidade econômica setorial e na capacidade de resposta industrial em contextos de emergência nacional também deve ser analisado.
Ao final do processo, a recomendação do Decom será submetida ao Gecex/Camex, que decidirá sobre a aplicação de medidas, que podem ser tarifas adicionais ou o estabelecimento de quotas de importação. Para a eficácia do novo modelo, o Decom, que já opera no limite de sua capacidade com os casos de defesa comercial atualmente em curso, precisará ser reforçado institucionalmente.
Não se trata de protecionismo disfarçado, mas de uma agenda de Estado voltada à preservação da segurança econômica e produtiva do país. O Brasil precisa estar preparado para reagir de forma célere e legal a eventuais crises provocadas por surtos de importações. Caso contrário, o país corre o risco de assistir ao desmonte de setores industriais estratégicos com efeitos devastadores sobre o emprego, a renda e a soberania nacional.