Função social da propriedade, crise climática e o papel do STF

Poucos temas são tão centrais para o capitalismo quanto a propriedade. Sua importância transcende o plano jurídico e alcança a própria legitimidade democrática, ao refletir a forma como o poder econômico incide sobre o destino das nações. As discussões a respeito da propriedade foram grandes catalisadores da crise do sistema liberal. Estabelecida como um direito “sagrado” pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a propriedade foi progressivamente ressignificada.

A partir dos movimentos sociais do fim do século 19 e início do século 20, o instituto, visto como a “origem de todas as desigualdades[1], foi reinterpretado à luz do preceito iluminista de que o homem deve ser considerado como um “fim em si mesmo[2]. Crítica que alcançou o seu ponto máximo com Proudhon: La propriété, c’est le vol!.

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Assim desenhada, a propriedade não poderia representar um instrumento de conversão dos homens em mero meio, privando-lhes da dignidade humana. O mesmo enfoque atingiu a organização dos meios de produção: destes não poderiam vir os grilhões da existência humana.

A sacralização da propriedade foi, então, relativizada com a percepção de que ela corresponderia a um produto do desenvolvimento histórico social: um instituto inserido nas estruturas de mercado e condicionado pelas transformações sociais do capitalismo, somente nesse contexto adquirindo sentido e efetividade.

Nem por isso, contudo, a propriedade deixou de conservar seu caráter liberal. Se por um lado o conceito escapou — ao menos em parte — de sua antiga sacralização, por outro, foi capturado pela racionalidade instrumental do mercado, que absolutizou seu uso, independentemente dos custos sociais envolvidos. Reforçou-se, assim, sua expressão como manifestação do indivíduo e sua permanência como metáfora jurídica plena — uma “ficção completa”, como profetizou Karl Polanyi[3].

A crise climática contemporânea reabre esse debate. Expõe os limites da apropriação individual e da racionalidade mercadológica. O novo cenário coloca em xeque a ruptura social que a noção moderna de propriedade historicamente produziu, ao dissociá-la das condições coletivas de existência, abrindo espaço para o seu redimensionamento constitucional e à efetivação concreta de sua função social.

A função social da propriedade no plano constitucional

A positivação da função social da propriedade remonta às Constituições mexicana de 1916 e alemã de Weimar, de 1919. Esta última foi particularmente marcante ao afirmar que “a propriedade obriga” e que sua utilização deve ocorrer em prol do interesse geral. Medida semelhante foi tratada na previsão de que os trabalhadores tinham o direito de se associar e participar nas decisões da empresa[4].

No Brasil, a incorporação do conceito seguiu trajetória própria. Longe de representar concessão estatal, a função social da propriedade foi produto de lutas sociais e tensionamentos históricos, tendo encontrado esvaziamentos no plano infraconstitucional e político.

A matéria se fez presente no primeiro governo Vargas. Já nos trabalhos da célebre Comissão do Itamaraty, Themístocles Cavalcanti cunhou a máxima segundo a qual “a propriedade privada é função social[5]. As Constituições de 1934 e 1937[6] romperam com a concepção absolutista da propriedade, autorizando a imposição de limites ao seu exercício — em linha com o modelo de Weimar[7]. 

Na Constituição de 1946, as discussões ampliaram-se em torno da reforma agrária e da necessidade de democratizar o acesso à terra. O texto de 1946 encabeçou a ambição de orientar a construção do mercado interno, por meio da industrialização e diversificação econômica, a fim de sair da dependência da política agrário-exportadora[8]. A Carta de 1967, com alterações posteriores, manteve a previsão da função social, mas sua efetivação foi negligenciada.

A Constituição de 1988, elaborada sob o signo da redemocratização e do resgate da dívida social, concedeu lugar especial à função social, enfatizando a ideia de que esta consubstancia o direito de propriedade. De acordo com o texto de 1988, a propriedade — urbana ou rural — não pode ser concebida como um direito ilimitado, mas sim como um instituto funcionalizado pelo interesse coletivo, pela justiça social e pela sustentabilidade.

O artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”, regra que é reiterada com princípio da ordem econômica (artigo 170, III) e pormenorizada nos artigos 182, § 2.º, e 186.

Uma velha noção para um novo mundo?

Antes de sua consagração constitucional, a função social da propriedade já era objeto de elaboração teórica relevante. Em 1904, Karl Renner tratou do tema no seu livro Die Soziale Funktion der Rechtsinstitute. A ideia trazida por Renner é a de que as instituições do Direito Privado permanecem formalmente as mesmas sob diferentes sistemas econômicos, mas as suas respectivas funções se alteram.

Renner antecipou uma compreensão do direito como estrutura mediadora entre a base econômica e a superestrutura jurídica, capaz de adaptar-se às transformações sociais.

Essa reflexão se estendeu à empresa e aos meios de produção. Em The Modern Corporation and Private Property, Adolf Berle e Gardiner Means explicaram a transformação da grande corporação e o fenômeno de uma nova forma de poder de controle, que não mais poderiam ser tratados da maneira tradicional. Era, pois, necessário repensar a função da empresa e desenvolver mecanismos legais e institucionais de controle público.

Após a Segunda Guerra Mundial, esse debate tornou-se ainda mais central, diante da consolidação das economias mistas e do papel ativo do Estado na organização do mercado.

As premissas dos autores mencionados indicam que um dos aspectos centrais da função social da propriedade reside na possibilidade de um instituto jurídico alterar sua natureza econômica subjacente, independentemente de modificações normativas formais. Hipótese que se confirma na medida em que, na marcha histórica da ideia de função social, o protagonista principal não foi a “função social”, mas a noção de propriedade em si e a consequente realocação de sentido que esta tomou ante distintos dilemas sociais.

A indicar que, historicamente, a função social não limita a propriedade, mas redefine seu conteúdo e a protege enquanto direito fundamental com fins sociais. É essa mutação que legitima uma nova forma de entender a propriedade no século 21.

O posicionamento do STF

Se os desafios de outrora foram suficientes para endereçar um novo substrato ao direito de propriedade, o que dizer das alterações climáticas e ambientais recentes? É o que parece ter respondido o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 743, de relatoria do ministro Flávio Dino.

Longe da timidez da Suprema Corte quando o assunto é função social, o ministro Flávio Dino registrou que é possível a desapropriação de terra por incêndio e desmatamento ilegais, desde que comprovada a responsabilidade do proprietário. A Corte reconheceu que a proteção ambiental, via combate à emergência climática, integra o próprio conteúdo do direito de propriedade: não há proteção ao direito de propriedade que descumpre a preservação ambiental.

A diretiva enfatiza a premissa de que os institutos de Direito Privado não podem ser eficazes ou mesmo compreendidos sem considerações de Direito Público. A propriedade, assim, estaria recebendo nova natureza socioeconômica, ante a atual conformação da conjuntura climático-ambiental.

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Ainda que louvável, a decisão do STF chega tardiamente. A Constituição de 1988 já consagra, de forma inequívoca, o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum e direito de todos, impondo o dever de sua preservação às presentes e futuras gerações.

O artigo 170 condiciona a ordem econômica à proteção ambiental. A interpretação adotada pelo Supremo, portanto, é apenas o reconhecimento, ainda que tardio, de um imperativo civilizatório.

O combate à crise climática como princípio-objetivo da ordem econômica

O direcionamento dado pelo STF abre espaço para uma necessária – e legítima –ousadia acadêmica. Como indicado no início deste texto, a reflexão que começou com a reconfiguração do direito de propriedade também afetou o exercício da liberdade empresarial. A Constituição de 1988 não apenas condiciona o exercício da propriedade à função social, mas insere a proteção ambiental como princípio da ordem econômica. A crise climática, nesse contexto, não é mero tema ambiental, mas fator estrutural da legitimidade do poder econômico.

Ao incluir a proteção ao meio ambiente na organização econômica (artigo 170, III), a Constituição deixa espaço para que a emergência climática e as suas repercussões – e não só a defesa do meio ambiente – passem a ser consideradas como elemento estruturante dessa mesma ordem econômica, elencando-as como uma norma-objetivo, ou seja, uma norma atribuidora de competência para a elaboração e implementação de política econômica[9]. O uso do poder econômico que ignora essa dimensão compromete sua própria legitimidade e contraria a finalidade social que a Constituição lhe atribui.

Frente a essa proposta, o dever de combate à emergência climática aparece não como um limite externo ao mercado, mas critério interno de sua conformação jurídica. A ideia afasta-se da visão tradicional que percebe a crise climática como um “interesse difuso” secundário. Entendendo a crise climática com um estado de exceção permanente, o combate a ela define-se como um princípio organizador da ordem econômica[10].

Mais que um imperativo jurídico, essa diretriz projeta um desafio político. Sobretudo diante da emergência climática, a função social da propriedade e dos meios de produção é também um critério de legitimidade democrática. Logo, a omissão do Estado na regulação socioambiental da atividade econômica representa não apenas violação de deveres constitucionais, mas ameaça à própria democracia. Afinal, que projeto democrático se sustenta, quando se ignora a dimensão pública da propriedade?


[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes. Paris: Union Générale d’éditions, 1963.

[2] KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Hofenberg: Taschenbuch, 2013.

[3] POLANYI, Karl. Nossa obsoleta mentalidade de mercado. In: POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 209-227.

[4] ALEMANHA. Die Verfassung des Deutschen Reiches (“Weimarer Reichsverfassung”), 11 aug. 1919. Arts. 153-156.

[5] CAVALCANTI, Themistocles Brandão. À Margem do Ante-Projecto Constitucional: notas e apontamentos. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1933. p. 144-146.

[6] BRASIL, Constituição de 1934, Art. 113; e BRASIL, Constituição de 1937, Art. 122.

[7] BERCOVICI, Gilberto. A Questão Agrária na Era Vargas (1930-1964). História do Direito – Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito, v. 1, p. 183-226, 2020.

[8] BRASIL, Constituição de 1946. Arts. 141, § 6.º; e 146.

[9] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 190-193.

[10] MEDEIROS, J. A e PEIXOTO, B. T. O estado de exceção climático permanente. Le Monde Diplomatique Brasil, site, 19 set. 2024. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-estado-de-excecao-climatico-permanente/ 

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