O recente caso envolvendo a plataforma Resolve Juizado evidencia o embate entre inovação tecnológica e modelos tradicionais de advocacia. Esta discussão transcende questões éticas pontuais e revela dilemas fundamentais sobre o acesso à justiça na sociedade brasileira.
Os Juizados Especiais, criados para simplificar o acesso à justiça, enfrentam hoje um paradoxo operacional. Tornaram-se terreno fértil para demandas repetitivas que seguem um padrão quase industrial: petições iniciais padronizadas, contestações replicadas e decisões judiciais padronizadas que aplicam uma espécie de “tabela” para indenizações. Este ciclo de “CTRL+C / CTRL+V” cria uma “Justiça Formulário” – ineficiente e extremamente custosa aos cofres públicos.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
A decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no Agravo de Instrumento 5005734-72.2025.4.02.0000 trouxe novos contornos a esta discussão. Ao suspender os efeitos da decisão de primeira instância que havia proibido o funcionamento da plataforma Resolve Juizado, o desembargador relator reconheceu que a ferramenta não configura captação de clientela nem mercantilização da advocacia.
Pelo contrário, destacou que a plataforma apenas oferece apoio à redação de petições iniciais em causas que dispensam a obrigatoriedade de advogado, favorecendo assim o acesso à justiça.
Esta abordagem alinha-se perfeitamente com o espírito da Lei 9.099/95, cujo artigo 9º estabelece que causas de até 20 salários-mínimos dispensam a representação por advogado – um claro reconhecimento do legislador de que existem situações em que o cidadão comum pode buscar seus direitos diretamente. Nos Juizados Federais, este limite é ainda maior: 60 salários-mínimos.
Foi justamente neste espaço legalmente reconhecido que surgiu o Resolve Juizado, utilizando inteligência artificial para gerar petições iniciais padronizadas, de modo similar ao trabalho realizado há décadas pelos conciliadores no setor de triagem dos Juizados Especiais. A prática já é particularmente visível nos Juizados administrados em convênio com Faculdades de Direito, onde estudantes elaboram petições iniciais como parte de seu estágio.
Classificar tal iniciativa como exercício ilegal da advocacia constitui um equívoco conceitual. Se o próprio sistema jurídico permite que o cidadão elabore e apresente sua petição, uma ferramenta de auxílio nessa tarefa não pode ser considerada ilegal. Como bem observou o professor Richard Susskind em seu livro Tomorrow’s Lawyers: An Introduction to Your Future, frequentemente surge o dilema entre protecionismo e progresso. A questão fundamental permanece: trata-se realmente de proteger a sociedade ou apenas de preservar um modelo que não atende plenamente às necessidades coletivas?
É crucial reconhecer: existem funções insubstituíveis do advogado – a análise estratégica, a mediação de conflitos complexos, a elaboração de contratos sofisticados, a interpretação contextualizada da lei e a aplicação de experiência ao caso concreto. No entanto, certas tarefas jurídicas rotineiras e padronizadas podem ser automatizadas sem prejuízo à qualidade, ampliando o acesso à justiça.
Além disso, a própria advocacia pode se beneficiar de plataformas como o Resolve Juizado, utilizando-as como ferramentas auxiliares na elaboração de minutas iniciais – semelhantes às primeiras versões produzidas por estagiários – que posteriormente podem ser revisadas e complementadas pelo profissional.
Foi exatamente isso que reconheceu o TRF2 em sua decisão liminar: a tecnologia, neste contexto, não representa uma violação ética, mas uma oportunidade para que a população menos instruída ou com recursos limitados consiga acessar o Judiciário com maior autonomia e dignidade.
Em vez de simplesmente proibir, uma regulação inteligente e responsiva poderia estabelecer parâmetros claros: exigir que plataformas como o Resolve Juizado incluam avisos sobre riscos, responsabilizem-se por erros graves e implementem filtros contra ações temerárias, especialmente aquelas formuladas contra súmulas, teses ou jurisprudência dominante.
A seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo tem adotado uma postura mais propositiva quanto à tecnologia. Durante a gestão de Patricia Vanzolini, a OAB-SP criou o Marketplace de Lawtechs, um portal dedicado a apresentar ferramentas e plataformas tecnológicas úteis à advocacia, além de identificar atividades que poderiam ser automatizadas sem infringir as prerrogativas exclusivas da profissão.
O cenário atual revela um Judiciário ainda vinculado a paradigmas do século 20 tentando enfrentar desafios do século 21. A assimetria é evidente: enquanto pessoas com recursos contratam os melhores escritórios, milhões de brasileiros permanecem com seus pequenos litígios sem solução devido à falta de acesso.
A reabilitação judicial da plataforma Resolve Juizado demonstra a possibilidade de harmonizar inovação e responsabilidade jurídica. O papel do Judiciário, da OAB e dos juristas não deve ser obstruir inovações por inércia institucional, mas orientar a transformação de maneira prudente e construtiva.
O episódio envolvendo o Resolve Juizado representa apenas um capítulo de uma narrativa mais ampla sobre a integração entre inovação e tradição no Direito. Os advogados não serão substituídos pela tecnologia – apenas precisarão redefinir seu papel neste novo contexto. Isso não constitui uma ameaça, mas uma oportunidade de construir um sistema jurídico mais democrático e acessível. Tanto a OAB quanto o Poder Judiciário devem ser parceiros nesta missão transformadora.
O futuro da advocacia não está na construção de muros contra a tecnologia, mas em estabelecer pontes que a utilizem em benefício de toda a sociedade.