Advocacia pública é advocacia

Em sessão do último dia 8, o plenário do STF iniciou a votação no RE 609517, paradigma do tema 936 de Repercussão Geral, “em que se discute, com base nos arts. 131 a 133 da Constituição da República, a constitucionalidade da exigência de inscrição de advogado público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para o exercício de suas funções”.

Naquela sessão, quatro dos ministros que já proferiram votos acompanharam a posição do ministro relator, Cristiano Zanin, que, após ajuste ocorrido durante os debates em plenário, votou por fixar tese no sentido de que “[é] inconstitucional, por violar o art. 131 da CF/1988, a exigência de inscrição do Advogado Público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, para o exercício das atividades inerentes ao cargo público”.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Um sexto voto, do ministro Luiz Fux, embora a rigor divergente da maioria, converge com ela ao entender pela inconstitucionalidade da exigência obrigatória de inscrição de advogados públicos na OAB sempre que houver vedação à prática da advocacia privada por parte de advogados públicos. Assim, há, ao menos por ora, maioria formada no sentido da inconstitucionalidade da inscrição obrigatória na OAB para a advocacia pública. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

A natureza da advocacia pública, seu estatuto jurídico e o regime ético que rege seus membros são temas a respeito dos quais pairam confusão e obscuridade no Brasil[1]. Neste artigo, a partir de pesquisa de doutoramento que conduzi sobre o tema, defenderei que tanto o conceito de advocacia pública quanto seu tratamento na lei positiva brasileira a caracterizam como advocacia e, portanto, tornam obrigatória a inscrição de seus membros nos quadros da OAB.

Não abordarei especificamente o julgamento em curso no STF, dada a abundância de argumentos proferidos em tribuna e nos autos do RE sobre ele; procurarei, em vez disso, apresentar uma perspectiva doutrinária sobre a celeuma.

Na doutrina brasileira, existe, desde a constitucionalização da advocacia pública em âmbito nacional com a promulgação da Constituição da República de 1988, uma posição amplamente majoritária de que advocacia pública é uma forma de advocacia. Essa posição aparece tanto entre autores cujo campo central de interesse é a própria advocacia pública quanto entre administrativistas e mesmo processualistas[2]. É dessa constatação que surge o tema central de discussão para essa doutrina: a tensão existente entre o regime jurídico da advocacia e o regime do serviço público, ambos aplicáveis aos membros da advocacia pública[3].

Essa tensão se consubstancia na coexistência de dois regimes jurídicos a regerem a atuação desses profissionais do direito. O primeiro é o regime do serviço público em geral, disciplinado pelos estatutos de servidores públicos (em âmbito federal, por exemplo, a Lei 8.112/1990), que abrange não só membros da advocacia pública, mas uma variedade de outros servidores que integram administração por vínculos estatutários, de agentes policiais a analistas de políticas públicas.

O segundo é o regime da advocacia, também regulado por normas legais – em especial, no Brasil, pela Lei 8.906/1994 –, mas, em acréscimo a elas, por aquilo que se convencionou chamar de ética profissional da advocacia, ou, às vezes, deontologia jurídica. As leis orgânicas das procuradorias, a exemplo da Lei Complementar 73/93, da AGU, frequentemente funcionam como meios de conexão entre os regimes, mas não dão conta de todos os problemas que surgem entre eles.

Embora essa sobreposição leve às aludidas tensões de que a doutrina especializada se ocupa – por exemplo: entre os princípios que determinam a transparência como norma na administração pública e a regra de sigilo que se impõe à relação entre advogados e clientes (ver art. 34, VII da Lei 8.906/1994) –, a coexistência entre regimes é fundamental para uma normatização abrangente da atividade da advocacia pública. Em especial, o regime do funcionalismo público estatutário não basta para dar conta das demandas que essa atividade estabelece.

O principal motivo para isso é que a relação entre advogados e seus representados (no caso da advocacia contenciosa) ou assessorados e consulentes (no caso da consultiva) pressupõe uma parte que estabelece objetivos e prioridades – o cliente – e outra que fornece ferramentas jurídicas para seu atingimento – o advogado.

Na advocacia privada, essa circunstância se materializa naquilo que a literatura internacional sobre ética advocatícia denomina “princípio da neutralidade”[4], que demanda que advogados não façam juízos, com base em critérios extrajurídicos (políticos ou religiosos, por exemplo), a respeito dos atos de seus clientes. Ele implica, por exemplo, que um criminalista tem o dever ético de oferecer defesa técnica a seus clientes ainda que julgue reprováveis as condutas de que são acusados.

Esse princípio também desempenha uma função fundamental para a advocacia pública. Nela, a neutralidade quanto aos objetivos e motivações do cliente transforma-se em uma espécie de deferência aos fins da administração pública – em última análise, ao interesse público –, conforme estabelecidos por meio do processo democrático.

Em outras palavras, assim como advogados privados devem exibir respeito à autonomia de seus clientes, advogados públicos devem deferência à vontade democrática da povo. Esse dever decorre da ética ínsita a eles em sua condição de advogados.

É claro que servidores públicos que não são advogados também têm um dever de deferência democrática, mas, no caso deles, esse dever decorre de estarem situados em cadeias hierárquicas de organização administrativa que culminam em autoridades com maior legitimidade democrática, em especial o presidente da República.

Essa espécie de estrutura não se amolda perfeitamente à posição da advocacia pública (ou privada), que não se situa em subordinação hierárquica em relação aos seus clientes, já que tem também um dever de fidelidade ao direito. Esse dever implica a obrigação de informar quando a administração e seus membros agem em ofensa ao direito, bem como de manter uma conduta processual de boa-fé, que às vezes proscreve defender argumentos juridicamente implausíveis, ainda que endossados por seus clientes.

É nisso que consiste a autonomia técnica da advocacia, ideia bem conhecida pela doutrina, e que tem sede constitucional (no art. 133, que trata da advocacia em geral, não da advocacia pública em especial).

É fundamental que seja respeitada a distinção entre as autoridades administrativas como entidades que presentam a administração – ou seja, falam como órgãos dela[5] – e advogados públicos como agentes que a representam, por força da lei (o “mandato ex lege”). Derrubar essa distinção seria temerário por borrar esses vínculos, com consequências práticas e jurídicas difíceis de prever.

Seria possível, é claro, imaginar um sistema em que toda a ética profissional da advocacia se aplicasse à advocacia pública, sem que se considerasse, porém, que seus membros sejam advogados – ou simplesmente sem serem vinculados à OAB.

Essa solução esbarra na lei positiva (a Lei 8.906/1994, sobretudo), que, no Brasil, condiciona o exercício da advocacia à inscrição nos quadros da Ordem. Igualmente importante, trata-se de solução sem nenhum lastro em décadas de doutrina, que organizaram os conceitos de advocacia e advocacia pública a partir de uma relação de gênero e espécie.

Não cabe a aplicadores do direito, de juízes a ministros de corte suprema, reescrever a lei a partir de preocupações, ainda que meritórias, sobre a conjuntura que em um ou outro momento se estabeleça entre a OAB e os órgãos de advocacia pública.

Não se trata, aqui, apenas de uma discussão sobre a política das corporações envolvidas. Trata-se de bom direito, de respeito à lei e atenção à evolução dos conceitos jurídicos de advocacia e advocacia pública ao longo da história do Brasil, e sobretudo desde 1988. E eles não permitem outra conclusão senão que, sim, advocacia pública é advocacia.


[1]  Veja-se, só para citar um exemplo, a instabilidade da jurisprudência do STF quanto à organização da advocacia pública nos estados, ora privilegiando a autonomia estadual e modelos institucionais próprios, ora impondo um desenho simétrico ao modelo federal (PRADO, Arthur Cristóvão; MEDEIROS, Leandro Peixoto. A constituição estadual e a definição dos requisitos para o cargo de Procurador-Geral do Estado: uma revisão crítica da aplicação do princípio da simetria na jurisprudência do STF. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito, [S. l.], v. 33, p. B282310, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rppgd/article/view/51176. Acesso em: 14 maio. 2025), como procurei mostrar em artigo com Leandro Peixoto Medeiros.

[2]  DI PIETRO, M. S. Z. Advocacia pública. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Município de São Paulo, v. 3, 1993, p. 13; DIDIER JUNIOR, F.; CUNHA, L. C. da. Art. 131. Em: CANOTILHO, J. J. G.; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed., 2018, ebook; FARIA, D. A. C. A ética profissional dos procuradores públicos. Revista Forense, v. 321, n. 89, p. 78, mar. 1993. MACEDO, R. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008, p. 28; MACEDO, R. A atuação da Advocacia-Geral da União no controle preventivo de legalidade e de legitimidade: independência funcional e uniformização de entendimentos na esfera consultiva. Em: GUEDES, J. C.; SOUZA, L. M. DE. Advocacia de Estado: questões institucionais para um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 156; MADUREIRA, C. O problema da autonomia técnica da Advocacia Pública. A&C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional, v. 16, n. 66, p. 182, dez. 2016; MOREIRA NETO, D. de F. Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. Debates em Direito Público: Revista de Direito dos Advogados da União, v. 4, n. 4, p. 25, out. 2005.

[3] Esse também é um tema relevante para a doutrina estadunidense e canadense, onde, entre muitos outros países, o mesmo fenômeno se verifica: ver KEYES, J. M. Loyalty, Legality and Public Sector Lawyers. Canadian Bar Review, v. 97, n. 1, p. 134, 2019.

[4] Ver, por exemplo, WENDEL, B. W. Lawyers and Fidelity to Law. Princeton: Princeton University Press, 2010, p. 29; WENDEL, B. W. The Limits of Positivist Legal Ethics. Canadian Journal of Law & Jurisprudence, v. 30, n. 2, p. 443–465, ago. 2017, p. 450; WINDSOR, M. The Special Responsability of Government Lawyers and the Iraq Inquiry. British Yearbook of International Law, v. 87, n. 1, p. 123, 2019. O princípio da neutralidade é um dos três princípios que integram a chamada “concepção padrão” sobre ética profissional, ao lado dos princípios da parcialidade (partisanship) e irresponsabilidade (non-accountability).

[5] Ver MEIRELLES, H. L.; BURLE FILHO, J. E. Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 72. Sobre presentação em geral, ver PONTES DE MIRANDA, F. Tratado de Direito Privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. III, p. 308.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.