Novo Código Eleitoral: ‘seguro morreu de velho’ define abuso do poder religioso

A Constituição brasileira, em seu art. 14, § 9º, estabelece que a normalidade e a legitimidade das eleições devem ser protegidas contra a influência do “poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. A norma em questão foi regulamentada pelo art. 22 da LC 64/90, que, além das vedações constitucionais para o abuso de poder, também incluiu o “uso indevido dos meios de comunicação social”.

É fato, no entanto, que a realidade das campanhas eleitorais no Brasil é absolutamente dinâmica, e eventuais novas formas de manipular a vontade do eleitorado surgem sem que a legislação consiga acompanhar. Foi no contexto recente de maior interferência de líderes religiosos na política, em especial com o crescimento das igrejas evangélicas, que os Tribunais Eleitorais começaram a enfrentar inúmeras ações por “abuso do poder religioso”, não obstante tal instituto nunca tenha sido objeto de tratamento pela lei.

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Após uma série de julgados em diferentes sentidos sobre o tema, o TSE firmou o entendimento, desde 2020, no julgamento do REspe 8285 (Rel. Min. Edson Fachin), de que o abuso do poder religioso não existe como instituto autônomo. Isto é, se não houver elementos no caso concreto que possam atrair a incidência de uma das formas de abuso de poder previstas na norma (econômico, político ou de mídia), eventual desvirtuamento do discurso religioso com finalidade de obter votos não pode ser objeto de sanção.

À época, a corte conseguiu travar um debate sério sobre a legitimidade do pleito, a liberdade do voto e o princípio da liberdade religiosa. Não se ignorou o fato de que líderes religiosos têm alto poder de influência sobre os fiéis. Esse debate, mais natural da ciência política do que do Direito, não foi o ponto central da decisão, mas sim a necessidade de uma autocontenção do Judiciário em assunto que deveria ser enfrentado pelo Parlamento, mas nunca foi.

O argumento vencedor foi o de que o abuso do poder religioso deve decorrer de expressa previsão legal, tendo em vista a magnitude da proteção constitucional à liberdade religiosa em suas diversas dimensões.

Em 2024, esse entendimento foi consagrado pelo TSE na Resolução 23.735, que passou a prever, em seu art. 6º, que “a apuração de abuso de poder em ações eleitorais exige a indicação de modalidade prevista em lei, sendo vedada a definição jurisprudencial de outras categorias ilícitas autônomas”.

Mesmo assim, os parlamentares, no projeto do novo Código Eleitoral (PLP 112/2021), preferiram pecar pelo excesso e positivaram, em seu art. 608, que “não configura abuso de poder a emissão, por autoridade religiosa, de sua preferência eleitoral, nem a sua participação em atos regulares de campanha, observadas as restrições previstas nesta Lei”.

O ditado popular consagra que “o seguro morreu de velho”; os mandatários, seguindo a sabedoria popular, optaram pela segurança — e não por serem surpreendidos com eventual virada jurisprudencial que poderia lhes causar a morte.

Além disso, asseguraram que “as manifestações proferidas em locais em que se desenvolvam atividades acadêmicas ou religiosas, tais como universidades e templos, não configuram propaganda político-eleitoral e não poderão ser objeto de limitação” (art. 467, § 3º). Neste caso, a preocupação, além do abuso de poder, é principalmente com a regra atual que proíbe a propaganda eleitoral em bem de uso comum — um ilícito de menor importância, mas que tem gerado multa de R$ 2.000 a R$ 8.000 aos líderes religiosos e políticos por eles apoiados (art. 37 da Lei das Eleições).

Há algo de positivo nessa mudança, que é lida por alguns como uma carta branca à interferência da religião na política: ela proporciona uma uniformização ao tratamento do discurso religioso nas campanhas eleitorais. Há, hoje, um contrassenso em se punir a prática discursiva com multa pelo local em que ela ocorre — a igreja —, mas entender que o seu conteúdo está protegido pela liberdade religiosa e não pode gerar a cassação do mandato.

Além disso, não se poderá mais dizer que existe um vácuo legislativo a atrair a atuação do Judiciário: os parlamentares agiram, mas, ao invés de positivarem o abuso de poder, eles, a princípio, o rechaçaram. Enquanto há projeto de lei, no entanto, há esperança, e deve-se aproveitar que o debate está se desenvolvendo na instância correta — o Parlamento — para cobrar eventual mudança que se deseje.

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