Como era de se esperar, depois que o STF “abriu a porteira” e “passou a boiada”, os contratos de trabalho “pejotizados” estão se alastrando por todos os setores da economia e para todo tipo de trabalho, independentemente da qualificação e remuneração do contratado: enfermeiros, técnicos de informática, pedreiros, marceneiros, cuidadores de idosos, vendedores de loja no shopping, garçons, professores de colégio e, acredite leitor, até garis e lixeiros pejotizados já temos! Que modernidade, não?
Em Porto Alegre, a companhia de limpeza urbana local terceirizou o serviço e a empresa terceirizada contratou os trabalhadores como “microempreendedores individuais”, empresários cujo “empreendedorismo” consistia na insalubre atividade de recolher e arremessar sacolas de dejetos no caminhão de lixo, em horário noturno. Noto que não vai aqui nenhuma carga de preconceito a esses nobres trabalhadores, cujo labor tem utilidade social maior do que a de muitos juristas (podemos viver sem estes, mas não sem aqueles).
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O TRT da 4ª Região, julgando um desses casos, em lavra do eminente desembargador Alexandre Corrêa da Cruz, decidiu que a contratação de garis e lixeiros por meio de “pessoa jurídica” era uma fraude nos termos do art. 9º da CLT, já que presentes os elementos de subordinação caracterizadores da relação de emprego previstos no art. 3º da mesma Consolidação.
Decisão rotineira da Justiça do Trabalho, que julga casos que tais há mais de 80 anos, sem que a “constitucionalidade” destas decisões fosse jamais questionada. Mas agora os ministros do Supremo, a partir do abstrato conceito de livre iniciativa, concluíram, out of thin air, que contratos civis prevalecem sobre a realidade fática, contrariando doutrina e legislação prevalecente em todo o mundo civilizado, bem como a Recomendação 198 da OIT (para não falar que tal entendimento fere a lógica mais elementar, possível de ser compreendida por uma criança do ensino fundamental).
Pois bem, essa decisão da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, que nada mais fez do que aplicar a lei e a Constituição que estão em vigor, agora está “suspensa” por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, que resolveu paralisar todos os processos em que trabalhadores alegam desvirtuamento de contratos civis ante à presença de elementos fáticos de subordinação.
Está suspensa essa decisão, como outras dezenas que envolviam lixeiros e garis naquele estado e, também, estima-se, mais de 500 mil outras causas assemelhadas de trabalhadores que foram logrados com a promessa falsa de empreendedorismo e autonomia! Pergunto-me se os ministros do STF não estão vivendo no mundo do alecrim dourado, no qual todos os contratos de pejotização sempre são usados com o melhor dos propósitos…
Esse exemplo extremo e concreto deveria servir para que os nossos ministros repensassem os erros terríveis que vêm cometendo ao tratar do tema “pejotização”. O ministro Gilmar Mendes declarou recentemente que quem é “contra” a pejotização está a favor do atraso. Veja-se como Mendes está colocando o debate de forma completamente enviesada.
A questão não é ser “contra” ou “a favor” da pejotização. Contratos de prestação de serviços pessoais por pessoas jurídicas são legítimos quando sua execução se dá sob a forma de trabalho autônomo e há milhares de decisões da Justiça do Trabalho que negam o vínculo quando isso ocorre. O problema advém quando estes contratos servem de simulacro a um efetivo contrato de trabalho, o que é muito mais comum do que os ministros podem imaginar desde seu Olimpo de privilégios, muito distante da realidade da classe trabalhadora.
O que o STF deveria fazer (admitindo, por amor ao debate, que a matéria seja constitucional) é estabelecer em que situações é legítima a contratação de trabalho não eventual regulado pelo Direito Civil (algo que já está pacificado pela jurisprudência da Justiça do Trabalho, mas vá lá, poderiam apenas reforçá-la).
Observe-se que, de início, o Supremo chegou a manifestar que esse tipo de contratação somente seria admissível para trabalhadores hipersuficientes, que têm grau superior e remuneração expressiva. No entanto, na prática, temos vistos trabalhadores manuais de dois a três salários mínimos com seus direitos reconhecidos na Justiça do Trabalho sendo cassados pelo STF, como no caso de entregadores de pizza e pedreiros!
Observe-se que por mais que o STF fixe critérios supostamente objetivos para determinar em que situações a pejotização seria aceitável, o esforço de “engenharia social” será vão e a litigância não cessará, já que, repita-se, tais critérios somente podem ser apreciados verificando-se premissas fáticas, que não comportam escrutínio em tribunal de jurisdição constitucional, não concebido para análise de provas. Essa é a missão constitucional da Justiça do Trabalho, clara e cristalinamente definida no art. 114 da Carta Republicana.
Em toda essa história horripilante da pejotização no STF, algo chama atenção. Por que os ministros, ao julgar as reclamações constitucionais baseados unicamente no princípio da “livre iniciativa”, não aplicam o disposto no art. 20 da LINDB, o qual determina que “não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”?
Será que os ministros – dentre eles alguns que tanto prezam o consequencialismo e a análise econômica do direito em suas obras – não refletiram, por um raro momento, que as decisões permitindo a pejotização “ampla, geral e irrestrita” acabariam por incentivar as “escolhas racionais” dos empresários de trocar contratos de CLT por “PJs”?
Parece que não, e assim segue o baile, com trabalhadores que do dia para a noite perdem os direitos sociais previstos no art. 7º, transformados que foram em “microempreendedores de si mesmos”, e com a previdência social condenada à falência por redução abrupta de contribuições do patronato. Parabéns, ministros do STF! Vossas Excelências, com genialidade iluminista, estão criando algo sem par no mundo!