A Conferência das Partes sobre Mudança do Clima da ONU (COP30) se aproxima — e, pela primeira vez na história, será realizada no coração da maior floresta tropical do mundo: a Amazônia. Trata-se de um marco simbólico e geopolítico poderoso. Mas, diante dessa escolha histórica, uma pergunta precisa ecoar desde já, alta e clara: como cobrar compromissos climáticos globais se falhamos em proteger aqueles que arriscam suas vidas para defender o meio ambiente?
O fato de a Amazônia sediar a COP30 é, por si só, um reconhecimento do seu papel central no equilíbrio climático do planeta. Mas, entre negociações sobre transição energética, mercados de carbono e metas de desmatamento, corre-se o sério risco de uma realidade visceral ser varrida para debaixo do tapete: a violência sistemática contra os verdadeiros guardiões da floresta.
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A Amazônia, hoje, é o epicentro de uma batalha brutal entre a conservação e a exploração predatória. E quem está na linha de frente dessa luta desigual — povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, ativistas, pesquisadores — vive sob constante ameaça. Perseguições, criminalização, assassinatos: essa é a rotina de quem ousa proteger o que resta da floresta. A visibilidade internacional contrasta brutalmente com o apagamento cotidiano de suas vozes.
Afinal, quem defende os defensores do meio ambiente?
O Brasil figura entre os países mais letais do mundo para defensores da terra e do meio ambiente. A repressão à proteção ambiental, especialmente na Amazônia, é profunda, estrutural — e subnotificada. Segundo a Global Witness (2023), desde o Acordo de Paris, mais de 1.500 defensores foram assassinados no mundo; 85% dos casos registrados em 2023 ocorreram na América Latina. O Brasil teve 25 assassinatos, ficando atrás apenas da Colômbia.
Mas os números contam apenas parte da história. A violência na Amazônia está intrinsecamente ligada a fatores históricos (como a concentração fundiária), econômicos (modelo primário-exportador) e políticos (sucateamento de políticas ambientais). Entre 2012 e 2022, 1.910 defensores foram mortos globalmente — em 2022, 177 mortes foram registradas, 36% delas envolvendo indígenas. Só no Brasil, 60 pessoas foram assassinadas, representando 34% do total mundial.
Essa tragédia não é acidental. É efeito direto da pressão incessante do agronegócio, da mineração e do extrativismo ilegal. Os povos indígenas são os alvos preferenciais: expulsos de seus territórios, ameaçados, silenciados. A Comissão Pastoral da Terra aponta mais de 300 mortes em conflitos fundiários na última década. A Human Rights Watch documentou 28 assassinatos relacionados ao desmatamento ilegal. Apenas dois chegaram ao tribunal.
Diante disso, não basta denunciar — é preciso agir. E um novo elemento pode se somar a essa resistência: a inteligência artificial.
Como empregar a tecnologia em defesa de quem protege a floresta? Como a IA pode ajudar a preservar vidas, combater a desinformação climática e fortalecer a justiça ambiental?
A aplicação ética e estratégica de sistemas de IA pode ser decisiva na proteção de defensoras e defensores ambientais. Desde a detecção de ameaças até o enfrentamento à desinformação — que mina a legitimidade de ativistas e confunde a opinião pública —, a IA pode atuar como aliada poderosa.
Ferramentas automatizadas já são capazes de mapear redes de desinformação, identificar narrativas falsas e detectar campanhas coordenadas de difamação. Sistemas inteligentes podem emitir alertas em tempo real a plataformas digitais e autoridades, auxiliar na checagem de fatos, moderar conteúdos perigosos e gerar relatórios que embasem políticas públicas e ações judiciais.
O avanço da desinformação climática, reconhecido pela própria ONU como um fator corrosivo à governança ambiental, demanda respostas tecnológicas à altura. A IA pode classificar, rotular e verificar automaticamente a origem de conteúdos falsos, atuando na linha de frente da proteção informacional e reputacional de quem luta por justiça ambiental.
Iniciativas já em curso mostram o potencial dessa abordagem. O Troll Patrol, da Anistia Internacional, usa IA para detectar discursos de ódio e ameaças online. O Guardian Project desenvolve aplicativos de segurança para ativistas e jornalistas. A plataforma EyeWitness to Atrocities verifica a autenticidade de imagens e vídeos de violações de direitos humanos. O sistema HunchLab, criado para segurança urbana, pode ser adaptado para áreas de conflito socioambiental.
No plano jurídico, há base normativa para essa proteção: a Declaração da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos (Resolução 53/144), o Acordo de Escazú (ratificado pelo Brasil em 2023), a Lei de Acesso à Informação, a LGPD e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH). Esses instrumentos impõem ao Estado o dever de proteger integralmente — inclusive no plano digital — os defensores da floresta.
No entanto, esses mecanismos ainda esbarram em lacunas de implementação. A IA pode ser uma aliada estratégica, mas seu uso exige marcos regulatórios robustos. Ferramentas de vigilância, se mal utilizadas, podem ser sequestradas por interesses contrários aos direitos humanos. Por isso, seu uso deve se pautar pela legalidade, necessidade, finalidade, transparência e autodeterminação informacional.
Outro ponto crítico a ser superado é a exclusão digital. A maioria dos defensores da Amazônia pertence a comunidades tradicionais, com acesso precário à internet e à tecnologia. A introdução de IA nesse contexto exige soluções acessíveis, desenhadas de forma participativa, com respeito às culturas locais e à proteção de dados sensíveis.
A IA pode ainda ser útil na responsabilização criminal. Ferramentas como o VIDERE empregam análise automatizada de vídeos, documentos e imagens para identificar padrões de violência e subsidiar investigações. Essas tecnologias podem reforçar a atuação de organismos internacionais e do sistema de justiça ambiental, ampliando a visibilidade das violações e combatendo a impunidade.
Essas possibilidades tecnológicas não devem ser vistas como soluções mágicas, mas como ferramentas que, quando aliadas à ação política, ao engajamento social e à mobilização internacional, podem transformar a maneira como protegemos os ecossistemas — e principalmente, as vidas humanas que os sustentam. Não há justiça climática possível sem justiça social. E não haverá futuro sustentável enquanto persistir a lógica de sacrificar corpos em nome do “progresso”.
A COP30 não pode ser apenas uma vitrine de compromissos ambientais. Ela precisa marcar uma inflexão real: o momento em que a comunidade internacional reconhece que a proteção da floresta passa, necessariamente, pela proteção de seus defensores. Que cada protocolo, cada acordo e cada índice de desmatamento reflita também o compromisso com a integridade física, digital e simbólica de quem arrisca tudo para manter a floresta viva.
Se a Amazônia é o termômetro da crise climática, seus povos são a linha de frente da resistência. Ouvir suas vozes, garantir suas vidas, reconhecer seus saberes e assegurar sua proteção com todos os instrumentos disponíveis — inclusive a inteligência artificial — é um imperativo ético e civilizatório.
Mais do que um território, a Amazônia é um campo de disputa por narrativas, por modelos de desenvolvimento e, sobretudo, por futuros possíveis. Que a tecnologia, longe de perpetuar desigualdades ou reforçar silenciamentos, se converta em ponte — entre mundos, entre saberes, entre gerações. Porque proteger a floresta, no fim, é também escolher que tipo de humanidade queremos ser.
A verdade é simples e urgente: proteger a Amazônia implica proteger quem a defende. E isso exige um novo pacto entre tecnologia, justiça e direitos humanos. Se usada de forma ética, inclusiva e normativa, a inteligência artificial pode deixar de ser apenas uma ferramenta — e tornar-se um escudo.
A COP30 será histórica. Mas que ela também seja um divisor de águas na forma como reconhecemos, valorizamos e protegemos os defensores da vida. Que a floresta não fale sozinha. Que a tecnologia fale com ela — e por ela.